sábado, 10 de setembro de 2016

[2412] Texto de Emanuel d'Oliveira,"Monaya" (que esperamos continuar a ter aqui, como colaborador e sobretudo como comentador)

Barcos atacados no Porto Grande de São Vicente levam o Brasil à guerra

Emanuel d'Oliveira (in blogue Barros Brito)
Apesar do clima de guerra à escala planetária, S Vicente deve ter amanhecido calmo no dia 2 de Novembro de 1917. Calma abalada por dois estrondos por volta das sete horas da manhã. Era uma sexta-feira, a baía do Porto Grande, embora sofresse forte concorrência de Dakar, Canárias e também de Marrocos no negócio de carvão, aconchegava vários vapores de diferentes nacionalidades. O mundo estava em guerra, era a Primeira Grande Guerra, tendo Portugal tomado parte, lutando em França, defendendo o vasto e cobiçado território ultramarino, particularmente Moçambique que estava sob ameaça de iminente ocupação germânica.

Nos anos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) os portos carvoeiros das Canárias e no Senegal competiam com a baía de Mindelo, mas juntos continuavam a abastecer com carvão, na nossa região geográfica, um bom número de navios que ainda utilizavam a hulha negra como combustível. Além de depósito de carvão mineral de referência no Atlântico-sul, o Porto Grande servia também de ponto de amarração de nove cabos submarinos, importante base de comunicação telegráfica intercontinental.  

Os ingleses, proprietários das firmas dos cabos submarinos e do negócio do carvão, tinham motivos de sobra para proteger a baía e, assim foi durante os primeiros meses da guerra. Mais tarde, deixaram a defesa de Mindelo a cargo da marinha portuguesa para irem combater os alemães de Paul Emil Von Lettow-Vorbeck no sudeste da África. 

O Acary, encalhado em São Vicente de Cabo Verde
Em Fevereiro de 1916, a pedido da Grã Bretanha, Portugal apresou 72 navios alemães em todo o seu território, tendo oito desses eventos ocorrido no Porto Grande. Do outro lado do Atlântico, em Maio de 1917, acontecia a mesma coisa. O Brasil, reagindo a sucessivos ataques à sua frota mercante, decide também apropriar-se de 46 embarcações germânicas que se encontravam nos seus portos. Porém a declaração de guerra, pelo Brasil, só acontece nos finais de Outubro. Uma semana depois, no início de Novembro, o Acary e o Guahyba, cargueiros de bandeira brasileira, fundeados no Porto Grande, em escala a caminho da França (Havre) foram torpedeados e afundados por um submarino inimigo, o U-151. O facto serviu de argumento para o presidente Venceslau Brás solicitar ao Congresso Nacional a necessária autorização de uso de medidas de retaliação. O Brasil entrava assim efectivamente em guerra. Foram enviadas forças à Europa e África e para Cabo Verde veio o contratorpedeiro Piauí. Abel Fontoura da Costa Duarte, capitão-de-fragata, era quem estava no governo das ilhas quando se deu o ataque de Mindelo e para onde se deslocou no mesmo mês.

Kophamel Waldemar, comandante do U-151
Muitos foram os vasos de guerra que estiveram no Porto Grande. Uns de passagem, outros fixaram-se para a defesa do militarmente estratégico ponto de abastecimento e comunicação tanto para Portugal como para a Tríplice Entente, liderada pelo Imperio Britânico. Entre cruzadores, rebocador, canhoneiras, patrulhas, destaca-se a Ibo, canhoneira que esteve de serviço durante todos os quatro anos de guerra seguido da também canhoneira Beira. Houve pelo menos três incursões de submarinos no Porto Grande. A última saldou-se no afundamento de Guahyba de 1891t e do  Acary de 4275t. A até então eficiente intervenção das canhoneiras Ibo e Beira mais o posto de vigilância do ilhéu dos Pássaros, as fortificações de João Ribeiro e Morro Branco que repeliram duas outras tentativas, não impediram, desta vez, que o submersível, alemão U-151 sob o comando do capitão de corveta Waldemar Kophamel (1880-1934), com a possível cobertura de um navio holandês ali ancorado, fizesse grandes estragos nas embarcações brasileiras. 

Os barcos transportavam peles e café para o porto do Havre, proveniente o Guahyba de Montevideo e Acary do Rio de Janeiro. O primeiro aprontava-se para sair naquela mesma tarde, a tripulação achava-se na rotineira preparação das máquinas e demais apetrechos antes de cada largada. Em 1917 os habitantes de São Vicente passavam por uma grande penúria alimentar. A crise havia-se instalado na sequência dos frequentes despedimentos de trabalhadores da estiva do carvão. A Câmara Municipal, nesse ano, ao resolver dar uma refeição à faminta população, provocou o aumento da procura de Mindelo pelos habitantes das ilhas vizinhas que também sofriam com a seca, desemprego e fome. A situação agravou-se ainda mais. Uma dupla “móia” pode ter sido providencial.

O submarino U-151
Os dois navios, atingidos ao nível da água por um torpedo cada, ficaram irremediavelmente perdidos com rombos de largos metros quadrados. O Guahyba teve duas vítimas mortais confirmadas na hora, os fogueiros António de Lima e Octaviano Vasques. Alguns feridos foram internados no hospital, sendo que um deles estava em estado grave. No total, seis rebocadores ingleses e portugueses além do Ibo, prestaram socorro aos náufragos. O Guahyba foi ainda rebocado para um baixio, para assim serem facilitadas as operações de resgate da carga. 

Um deles, encalhado na parte Sul da Baía, diz-se ser o Guahyba, popularmente referido como Guiba, Dele se via a proa até há bem pouco tempo. O torpedo que o atingiu passou à frente do Acary, ancorado a cerca de 300 metros. Temos a localização certa dos destroços de um dos barcos. Resta identificar de qual deles se trata e localizar o outro. Os vestígios ainda existentes devem ser bem poucos visto que nunca mais se falou do Acary (ex-Ebernburg) ironicamente apreendido aos alemães poucos meses antes. Por outro lado, o que restava do Guahyba foi desmantelado por dificultar manobras de barcos nas imediações, tendo até provocado alguns incidentes.

Jovens mindelenses no que talvez tenha sido a proa do Guahyba
Sob os auspícios da UNESCO, desde 2014 até 2018, o mundo assinala o centenário da primeira Grande Guerra como forma de promover a paz. Todos os países envolvidos nessa contenda organizam conferências, palestras, ou seja acções de reflexão com o fito de reconhecer o sofrimento e a destruição na tentativa de evitar mais guerras. O programa Dive for Peace Day (Mergulho para a Paz), fortemente encorajado pelo secretariado de defesa da herança cultural subaquática da UNESCO, consiste na realização e divulgação de um mergulho num naufrágio ou qualquer outro elemento submerso pela acção dessa guerra. O mergulho para a Paz serve também para proteger e divulgar o património histórico e cultural subaquático de cada país. No dia 6 de Novembro deste ano será a vez de o Porto Grande de Mindelo receber o Mergulho para a Paz.

O próximo ano será o do centenário do afundamento dos navios brasileiros, irremediavelmente torpedeados por um submarino alemão em território português e também cabo-verdiano com fortes interesses britânicos. Cabo Verde e São Vicente em particular, assim como as demais nações envolvidas, têm muito para dizer sobre o dia 2 de Novembro de 1917 e, com isso, mais uma oportunidade de realçar a nossa contribuição para a história de outros países e do mundo, mas também na promoção da paz mundial.

18 comentários:

  1. Cedo ouvi os meninos a falar do Güiba mas so mais tarde vim a saber o que sucedeu.
    Fica-nos a vontade de ouvir, com detalhes, outros acontecimentos.
    Força !!!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Felicito o Manuel d’Oliveira por esta preciosa síntese histórica. Vale a pena ler peças como esta. É certo que o que é dito é já conhecido de todos os cabo-verdianos que se interessam pela sua história. Os mindelenses, em particular, são sempre sedentos de informação sobre factos e acontecimentos relacionados com o período áureo da história do seu Porto Grande.
    Satisfeito por saber que o nosso Porto Grande será palco do Mergulho para a Paz em 6 de Novembro deste ano. Vários mergulhos são necessários para a Paz, sejam eles no mar, em terra ou no ar, cenários diversificados da sanha destruidora do bicho homem. Mas o mais importante mergulho que se impõe é no limbo da consciência humana. O outro tipo de mergulho, no mar, em terra ou no ar, vale pelo seu simbolismo, pelo sentido de uma homenagem às vítimas da guerra. O mergulho na nossa consciência é hoje um imperativo da humanidade, pois é a única maneira de nos confrontarmos com o nosso lado sombrio, de interpelar as causas profundas do Mal.
    Apareça sempre, Manuel d'Oliveira!

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    1. Trata-se de EMANUEL e não de Manuel.

      Braça nominal,
      Djack

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    2. Comentario encorajador... obrigado.
      A ideia é impedir que o envolvimento de CV na 1ª GG não seja esquecido e reunir o maximo de informaçoes, conhecimentos e devolver à sociedade (nossa e nao só) instrumentos que ficarão definitivamente na memoria da actual e futuras geraçoes... Pd'B há muito que vem contribuindo para isso.

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  4. Um assunto de extrema importância para a História de CV e para a paz. Prova que estas ilhas nunca estiveram alheias ao Mundo

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  5. Obrigado pelo reparo à minha desatenção, Djack. Pois, EMANUEL.

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  6. Foi bom ficar a conhecer a foto do Emanuel d'Oliveira.

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  7. Interessante este texto histórico do meu amigo e antigo colega (professores no Liceu da Praia) Monaya, Emanuel Charles D'Oliveira. Afinal, trata-se de mais uma prova de como fora estratégico, desde a I Grande Guerra Mundial, o porto de Mindelo. São factos que merecem ser conhecidos. Esta crónica, levou-me ao romance de Domingos Amaral, «Enquanto Lisboa Dormia» que relata os combates por mar e por ar e a espionagem nos hotéis de Lisboa, durante a II Guerra Mundial. E por semelhança...enquanto Mindelo acordava...

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    1. Com a conferencia do proximo ano para assinalar o centenario do ataque alemão a Acary e Guahyba esperamos descobrir ou reavivar muitas historias dos anos da 1ª GG.
      Com amizade e estima.

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  8. Por lapso, faltou apontar que a foto da proa do "Guiba" foi-nos cedida pelo Djibla, o sempre generoso Daniel Mascarenhas.

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    1. O grande e insubstituível Djibla.

      Braça ao Emmanuel e ao Djibla pelo contributo,
      Djack

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  9. Parabéns pelo excelente artigo. Todos pela paz! Um abraço
    Manuela Vieira

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    1. Obrigado Manuela, em nome do Monaia.
      Apareça sempre.

      Braça,
      Djack

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  10. Sob os auspicios do M_EIA, acabei de regressar de mindelo onde estive à procura do Acary. Com a preciosa ajuda do Manu Coronel (mergulhador) e do Brás (marinheiro) encontramos o que acreditamos ser o Acary. Pela caracteristica, posição e distancia do Guahyba, dficilmente sera outro naufragio. esta a 7-8 m de profundidade. A água lamacenta das ultimas chuvas não nos facilitou. Foi um alivio tê-lo encontrado... "a prova do crime"

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