O primeiro capítulo e um excerto do segundo, onde se fala de uma das levas de povo de São Nicolau transportado no Senhor das Areias para São Vicente, em fuga à fome que em 1943 ali se fazia sentir.
Senhor das Areias |
Empurrados do interior, os povos buscavam o litoral na esperança de uma mandioquinha, de um caldinho de peixe, de uma cana para chupar, ou de folhas verdes para mastigar. Qualquer coisa que lhes desse, ao menos, a ilusão de alimento. Mas nas povoações da beira-mar, mesmo nas terras maiores, os haveres tinham também sido arrasados pelos ventos da miséria. Nem a sopa da Assistência evitava que no alvor da madrugada a carroça da Câmara levasse os que haviam tombado, de noite, na rua, inteiriçados, frios. Nem a sopa da Assistência o evitava, bem se pode dizer: as bocas famintas, senhor, eram às dezenas de milhar.
De ponta a ponta, um pesadelo perpassava pelas aldeias e casalejos galgando pela amarelidão da terra nua e requeimada.
Dondê quelas bananeiras verdinhas de cachos pendidos em arco ao rés do chão? Dondê queles pés de papaia carregadinhos, e quelas batatas-doces e quele feijão, quele mandioca, quele nhame, e quele milho crescendo na achada, dando a fartura de gente e dos animais? Ervas, rebentos, raízes, tudo sumido na voragem da sede e do calor.
Lá no interior, casas intactas só as de gente rica ou remediada, e nem sempre. Tantas sem janela, sem tecto, sem portas, ficaram abandonadas na paisagem descarnada.
A maldição varrera a ilha. A maldição da estiagem. Da fome. Os sobreviventes dessa fúria ciclónica, que eram? Restos de vida absurda e degradada na luta impiedosa pela sobrevivênci.
E nesse tempo da fome a ilha de São Vicente era o porto de salvamento, como vamos ver. (...)
Fascinados pela presença do lugre, partir, não interessava de que modo, eis o último recurso a que poderiam deitar mão. Para os famintos, São Vicente era a terra sonhada. E o Senhor das Areias, velho amigo do arquipélago, o mensageiro da vida. Iam então deixá-lo perder, ali tão juntinho a eles, a sorrir-lhes de esperança?
É um romance que li duas vezes e em que somos confrontados com o rosto cruel da miséria e da morte.
ResponderEliminarEste excerto nos demonstra que S. Vicente não virava as costas aos necessitados e dava tudo o que podia.
Nunca hei-de esquecer esta época. Dessas pequenas caveiras (ainda)vivas não tenho ideia pois me proibiram ver o triste espectàculo. Guardo a figura de ANA uma devotada sanicolaense que procurava "encaixar" cada criancinha. Um capitulo muito triste.
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