Esta é a segunda e última parte do texto escrito por Arsénio de Pina em Janeiro do presente ano sobre o seu processo existente na Torre do Tombo, Lisboa (arquivos da ex-PIDE-DGS), gentilmente disponibilizado pelo autor para publicação no Praia de Bote. Um obrigado em nome do blogue e dos leitores que com ele aprendem ou relembram as patifarias de uma organização que fez parte da nossa história comum, portuguesa e cabo-verdiana.
NACOS DA HISTÓRIA COLONIAL RECUPERADOS NO MEU PROCESSO NA PIDE (2/2)
Foto de Joaquim Saial
Veja-se a proposta e a opinião da PIDE. No ofício enviado ao Presidente da Câmara Municipal – omitida pela polícia política – definia a cidade do Mindelo da época, parafraseando a definição de ilha, como um aglomerado de casas e ruas rodeado de esterco por todos os lados:
… "Em 2 de Setembro do ano findo, foi endereçado à Câmara Municipal de S. Vicente, pelo D. Arsénio Daniel Fermino de Pina, um ofício, cujo conteúdo a seguir se transcreve:
“Até ao momento (Setembro de 1970), o lixo tem sido incinerado (o da cidade), e o dos bairros periféricos, incluindo os bairros de lata, de difícil acesso para os carros da CM, vazados em qualquer local, enterrado ou recolhido periodicamente – melhor dizendo – esporadicamente. O processo de incineração exige que se estabeleça uma temperatura apreciável, pois, com baixas temperaturas, além de se provocarem maus cheiros, não se incineram todos os constituintes do lixo. Como o lixo da cidade e arredores é heterogéneo, contendo muita matéria orgânica, não parece recomendável tal processo de tratamento. De apoiar o plano de remoção do lixo para valas abertas por Buldozer ou a sua descarga em desníveis de terreno, eliminando-se assim zomas baixas potencialmente pantanosas, fazendo-se o que chama de ´colmatagem sanitária´; no fim de cada dia, o depósito deve ser coberto com uma camada de terra ou areia de 20 a 30 cm de espessura para impedir os maus cheiros, as moscas, os ratos e os corvos, isto para os bairros periféricos de difícil acesso pois, para o lixo da cidade, o ideal seria o despejo no mar, como adiante se explica.
Visitada a lixeira junto ao cemitério municipal, foram encontradas crianças a revolver o lixo à procura de coisas imprestáveis mas, para elas, aproveitáveis: latas, garrafas, cartões e restos de comida. E o que aí se passava repete-se em outros locais com graves prejuízos para a saúde dessas e outras crianças…
Estudada a costa marítima, foi fácil constactar a existência de um local, entre o Lazareto e o Morro Branco, mesmo defronte do barco grego encalhado (Markar), que oferece as melhores condições para o efeito. A Câmara teria, simplesmente de fazer um pequeno desvio na estrada, de menos de 50 metros, para os carros de lixo vazarem, directamente, no mar, o seu conteúdo. Nesse local, o terreno cai a pique sobre o mar e o sentido do vento impede que o lixo flutuante seja arrastado para a Baía.
Por outro lado, constacta-se que os três carros de que a CM dispõe para a remoção de lixo são manifestamente insuficientes, mormente porque dois deles são já velhos e estafados. A aquisição de mais três unidades de tal tipo torna-se imperativa para a tarefa a empreender.
A experiência levada a cabo de recolha de lixo em recipientes volumosos – os célebres bidons – colocados em determinados locais da cidade, foi mal sucedida devido à falta de carros, não selecção de lixo e à acção de alguns díscolos da cidade. De sugerir, portanto, recipientes com um terço da capacidade dos bidons, com tampa, de um tipo estandardizado, para cada lar, à semelhança do que se faz noutras cidades. Estes recipientes seriam obrigatórios para os inquilinos, vendidos pela CM ou outra entidade escolhida por esta, e recolhidos diariamente, de manhã, pelos carros da Municipalidade. Desse modo poder-se-ia responsabilizar cada inquilino pelo tipo de lixo vazado em tais recipientes.
Igualmente de aconselhar a criação de um corpo de guarda-nocturnos para vigilância das ruas (como freio até para os díscolos citadinos que entornam ou roubam os recipientes de lixo), dos prédios, etc. Esses guardas seriam remunerados pelos próprios inquilinos beneficiados, como acontece, por exemplo, em Lisboa, em que cada inquilino paga dez escudos mensais por tal benefício. A CM providenciaria no sentido de conceder algumas regalias a esses guardas e a polícia poderia dar-lhes preferência nos seus concursos de recrutamento de pessoal.
Vejamos, agora, a situação dos poços e balneários públicos: nos sítios da Bela Vista e Ribeira Bote há alguns poços secos sem protecção que constituem perigo para crianças e adultos. Alguns estão ao lado de locais de despejo de lixo e é bem provável que, à noite, sejam utilizados como fossas improvisadas pelos moradores vizinhos. Os poços particulares com água e balneários anexos da Bela Vista necessitam de beneficiação. Crê-se que o lucro arrecadado pelos proprietários deve bastar para a sua protecção e melhor arranjo das zonas circundantes.
O tanque construído pela CM defronte do fontenário de Monte Sossego, actualmente transformado em retrete clandestina, por o poço que o abastece ter secado, deve ser aproveitado para uma sentina pública com balneário, por beneficiar da proximidade do fontenário e do hábito já clandestinamente condicionado.
Vejamos outro aspecto: as sentinas públicas e latrinas. As sentinas municipais com balneários existentes em bairros periféricos são excelentes. É de desejar a construção de algumas na cidade, passando as dos bairros a ser gratuitas no tocante à retrete. Há ainda que instruir os condutores dos auto-tanques no sentido de darem incondicional preferência às sentinas municipais. A única coisa que se pode sugerir como remendo higiénico (um remendo que não encontra roupagem para o sustentar) são latrinas de fossa profunda. Construídas como mandam os cânones, são um sistema praticamente inodoro, económico e que dura muito tempo.
Os bairros de lata devem desaparecer a todo o custo, até porque um bairro chama outro e não é possível aos seus habitantes o mínimo de condições higiénicas. Por mais onerosa que seja a sua extinção, tudo deve ser tentado nesse sentido o mais cedo possível para evitar uma maior extensão do mal, visto ser a saúde pública o capital mais precioso na economia de uma nação. Resolvido o problema de esgoto e de abastecimento de água à cidade, há que mobilizar todos os esforços no sentido de fazer desaparecer esses abortos de habitações e esse tipo de vida tão degradante.
E somos chegados a um dos mais incomodativos problemas que se rodeiam a higiene pública: as moscas. Encarando a eliminação de moscas nas habitações, independentemente do combate generalizado ao insecto, parece de todo aconselhável seguir a política adoptada, por exemplo, em Moçambique, de tornar obrigatório o uso de redes anti moscas em todos os edifícios em construção ou em reparação. As janelas seriam providas de uma armação de madeira com rede fixada do lado de fora e as portas duplas, uma delas com rede, provida de mola, para fechar automaticamente. Sobre este pormenor, interessará frisar que o art. 100º do Regulamento Geral de Construção Urbana de Cabo Verde (parágrafo 4º) exige as citadas redes anti moscas, mas parece poder afirmar-se que nunca tal disposição legal foi aplicada…
Vejamos a situação dos mercados. Um mercado de peixe numa região tropical de clima propício à proliferação de moscas e de hábitos higiénicos por adquirir – dir-se-ia melhor – sem condições que estimulem a criação de bons hábitos de higiene, teria que ser totalmente protegido com redes e apertadamente vigiado. Tais mercados, pode-se assegurar, deveriam mesmo desaparecer, criando-se, no seu lugar, peixarias pequenas com frigorífico, dispersas pela cidade que facilitariam o abastecimento e diminuiriam o aglomerado de gente e de imundice. Teria de haver, certamente, um armazém frigorífico e carros para a distribuição do peixe. O mercado de peixe de S. Vicente é um exemplo flagrante do que não deve ser um mercado de peixe.
No que toca ao mercado municipal agrícola, antes de mais nada, é necessário um fiscal permanente e actuante, por ser difícil vê-lo ou encontra-lo quando dele se precisa, para além de ser difícil percorrer o mercado no meio de caixotes e cestos vazios. Aliás, ver vendedeiras de doces com o produto exposto às moscas é vulgar, o que desrespeita a legislação em vigor. Assim, atravancado de coisas supérfluas e sem vigilância, é impossível mantê-lo limpo e transitável. Seria, pois, de aproveitar os armazéns dos oito cantos do mercado para recolher os sacos, caixas e caixotes com mercadoria. Os continentes vazios não devem ter lugar no mercado. As caixas, mandadas construir pela Câmara, na melhor das intenções, transformaram-se em ninhos de ratazanas por ser difícil a sua limpeza a estarem a ser utilizadas para esconder tudo quanto fira a sensibilidade dos clientes. A substituição da parte anterior das mesmas por uma armação com rede talvez resolvesse o assunto.
Por outro lado, não se vislumbra explicação para o não funcionamento dos sanitários do mercado. Um mercado com tal movimento não pode dispensá-los por razões que nem é necessário aduzir.
Antigamente – lembro-me disso – havia um auto-tanque que regava as ruas da cidade. Deixou boas recordações. Porque não arranjar outro para o efeito (com água do mar que é gratuita e desinfectante), a fim de fixar a poeira, refrescar as ruas nos dias de canícula e vento? Serviria, igualmente, para a rega das árvores com água doce, o que impediria a corrosão do tanque e acessórios pela água salgada”.
Estas foram as questões abordadas pelo Senhor Dr. Arsénio Daniel Fermino de Pina, em Setembro do ano findo, perante a Câmara Municipal e na sua qualidade de Delegado de Saúde de Barlavento.
Mais informo V. Exa, que o conteúdo deste ofício era para ser difundido na “REVISTA SONORA”, semanário de actualidades da Rádio Barlavento, em 11 do corrente, e só o não foi, por a Comissão de Censura achar tal divulgação inconveniente.
A bem da Nação,
Mindelo e Posto da DGS, em 16 de Março de 1971
O CHEFE DO POSTO
Miguel Henriques Nunes"
Foi essa, afinal, a razão de não me terem chamado para expor o assunto na CM, e ninguém teve a coragem de mo dizer, embora alguns conhecedores do facto fossem “amigos”.
Depois da independência, contactou-me o representante do Partido na ilha, Nelson Atanásio, que acumulava as funções de presidente da CM, para o ajudar a elaborar um plano sanitário para a cidade, por saber que tinha formação em Saúde Pública. Contei-lhe a história da minha proposta no tempo colonial, aconselhando-o a procura-la no caixote de antiguidades da Câmara, dado que ainda não tinha desencaixotado todos os livros e outros dossiers, por haver pouco tempo que regressara a S. Vicente. Dias depois informou-me de que tinha encontrado a minha proposta, e, mais tarde, declarou publicamente que o meu documento o tinha ajudado muito e guiado na elaboração do Plano Sanitário do Mindelo.
Por uma questão de pudor não cito os nomes dos elementos nacionais da Comissão de Censura. Realmente a divulgação da minha proposta seria não só inconveniente como uma vergonha para aqueles elementos da CM, Administração Civil e delegados de saúde anteriores, que nunca se preocuparam com o assunto, face a uma proposta bem fundamentada de um jovem delegado de saúde.
Sem dúvida, Arsénio, uma proposta circunstanciada e bem fundamentada. Tanto que adorei lê-la por me transportar à realidade daquele tempo, que descreves e caracterizas com rigor e objectividade.
ResponderEliminarNão foi difundido pela Rádio Barlavento "por a Comissão de Censura achar tal divulgação inconveniente." Simplesmente espantoso! É como tapar o sol com a peneira. Já nos anos quarenta não se podia escrever nas certidões de óbito que o povo morria de fome. São com estes testemunhos que as gerações actuais têm de dar valor à Liberdade de que hoje fruem. Pena é não aparecerem alguns jovens aqui para dialogar connosco.
Bem-haja, Arsénio!
Viajei no tempo e no espaço, revi factos e lembrei-me de projectos que - infelizmente - não foram "jactos" devido a estupidez de esconder a miséria e encobrir suas (eventuais) soluções.
ResponderEliminarEstamos relendo a proposta do então Delegado de Saúde que nunca teve a ocasião de trabalhar com (ou para) o Edil Júlio Bento de Oliveira que projectava um piscina de água do mar por trás do lugar onde veio a aparecer o Miradouro Craveiro Lopes. O "batisseur" queria o esgoto na cidade e, com a água da piscina, proceder à sua limpeza regularmente.
Por vezes sinto certo embaraço em falar desse grande Presiente pois não era vereador nem sercretàrio do (mais tarde) Comendador mas tive o privilégio de trabalhar sob a suas ordens durante alguns anos e, como ele gostava de "ouvir", também falava.
O Arsénio, como alguns que conheço, não precisam do lugar para nada mas estou certo que ele daria tudo para que o ouvissem.
Não te desanimes, Arsénio.
V/
P.S. - Julim Oliveira instituiu o que se chamava "guarda de escocà-caca" que vigiava os despejos selvagens .
Val, o Julim Oliveira foi o Homem Grande que conhecemos, mas perante o sistema ele não podia ir muito além nas suas intenções.
EliminarAcho absolutamente incrível que se tranque um relatório deste na gaveta e não se lhe dá público conhecimento, só porque os tipos da comissão de censura entenderam não dever ser divulgado que havia casas de lata, imundice e miséria nas cercanias da cidade. Ora, ora! Eu estou convencido de que o Arsénio terá sido comedido nas palavras, pois poderia ter pintado o quadro com cores mais chocantes.
Quanto aos tipos da comissão de censura, é claro que eles próprios tinham medo do sistema.
O que me causa admiração, Arsénio, é o governador, brigadeiro Lopes dos Santos, um oficial de alta craveira e muito reputado, ter apoiado a tua iniciativa e não ter, mais tarde, retirado do caminho os empecilhos. Será que nem mesmo ele, governador, podia contrariar as conveniências do Regime?
ResponderEliminarEspero que o Arsénio escreva mais alguma coisa sobre este tema.
ResponderEliminarAssunto interessante estas revelações. O Arsénio tem mais história para contar.Adriano O último governador de CV, brigadeiro Lopes dos Santos, fez um excelente trabalho (lembro-me da sua acção em SV) mas estava limitado pelo sistema. Não se pode esperar um revolucionário na pessoa de um governador.
ResponderEliminarÉ inadmissível, criminoso e ultrajante que se cortem a (s) liberdade de acção a Homens que amavam Cabo Verde e pelo país se sacrificaram até ao limite...
ResponderEliminarPara que os jovens saibam (ou deviam saber) tão dejeta e criminosa foi a Pide/DGS como os primeiros tempos "pidescos" do PAIGCV...
..." Aristides Pereira, primeiro Presidente de Cabo Verde
Presidente recusou pedido de prisão do escritor BALTAZAR LOPES DA SILVA ... A. Pereira, indeferiu um pedido do então ministro da Defesa Silvino da Luz, para se prender o conhecido professor e escritor BALTAZAR LOPES DA SILVA..."
..." Renato Cardoso então membro do primeiro governo de A. Pereira. O antigo presidente revela que no dia anterior à sua morte Renato Cardoso pediu ao então presidente para o receber e que no encontro manifestou preocupações quanto à possibilidade de ser preso... A. Pereira não terá tomado essas apreensões muito a sério porque achou "que era intriga"... Por "coincidência ou não" Cardoso foi assassinado no dia seguinte"...
In: Memorias de Aristides Pereira
Homens como Arsénio Pina e Baltazar Lopes da Silva e muitos outros ... não mereciam tamanha afronta...
Artur, infelizmente, as afrontas continuam, sob as formas mais diversas, desafiando a nossa compreensão.
EliminarSó na cabeça de um verdadeiro estupor, para não dizer alienado, ingrato, malvado e F.D.P, ocorreria a ideia de prender o nosso Dr. Baltasar Lopes da Silva.
Continuando, é incompreensível que a sociedade cabo-verdiana não faça um julgamento simbólico dessa gente. Que nasça um movimento cívico para propor essa medida. A nação cabo-verdiana tem de fazer uma autognose e também uma catarse.
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