segunda-feira, 12 de junho de 2017

[2996] Praia, campo de batalha... há 200 anos

Emanuel "Munaya" d'Oliveira
Uma espessa cortina de fumo tomou conta da baia enquanto se ouvia o som ensurdecedor dos canhões de elevado calibre, tiros de mosquetes, velas queimadas e mastros a caírem. O cheiro da pólvora a misturar-se com o da madeira em chamas, imagino que nesse momento areia ou cascas de ovos eram esmagadas e espalhadas pelo chão para evitar que marinheiros e militares escorregassem no sangue dos colegas mortos ou feridos, o cirurgião de bordo a preparar as suas ferramentas para intervenções mais urgentes, centena e meia de homens movimentam-se ao mesmo tempo, cada um com uma função precisa de usar peças de artilharia, içar ou arriar velas, trepar mastros acima, deitar âncoras, gritar ordens… da terra olhos escancarados dos nossos antepassados não deviam estar a perceber o que se passava, muitos devem ter fugido aterrorizados, pensando poder tratar-se de mais um ataque de piratas ou de alguma invasão…

Os muitos acontecimentos históricos que tiveram lugar nos nossos mares só reforçam a ideia que antes de mais somos uma nação marítima. Em todo o nosso vasto espaço aquático tiveram lugar tantos feitos que ao serem contados e recontados engrandece-nos lembrando que apesar da nossa relativa curta existência, ela é rica.

A batalha, vista por Pierre-Julien Gilbert
Durante vários séculos Praia serviu de ponto de passagem, desembarque de piratas, descanso de armadas, centro de comércio, enfim quase tudo o que se pode imaginar, até de luta entre grandes potencias militares.

Há pouco mais de duzentos anos, a baía da Praia era sacudida por uma violenta batalha entre franceses e ingleses, foi na manhã do dia 16 de Abril de 1781.

Os países da Europa estavam sempre em guerra entre eles, a França e a Inglaterra tinham-se envolvido numa renhida guerra que parecia não ter fim. Nos mares de todo o mundo atacavam-se mutuamente e em certos casos não respeitavam o território em que se encontravam. Cabo Verde, território português, portanto neutro, devia ser respeitado como tal, não foi o que aconteceu. Mas também não era para menos, até barcos de pesca ingleses recusavam-se a reconhecer as autoridades lusas na vizinha ilha do Maio, quando vinham desaforadamente abastecer-se em sal, imaginem se os vasos de guerra o iriam fazer, sendo os melhores armados em todo o mundo naquela época.

Este incidente da baía da Praia aconteceu durante a guerra de independência dos EUA de 1775 a 1783 depois de 13 colónias norte americanas e a coroa inglesa entrarem em rota de colisão. A França aliou-se então aos americanos seguidos dos espanhóis e mais tarde imitados pelos holandeses.

Foi nessa situação de tensão internacional que a armada francesa comandada por Pierre André de Suffren deparou com a esquadra inglesa ancorada em plena baía. Apesar das normas militares proibir ataques nessas circunstâncias, Suffren não hesitou, inclusive em desrespeitar a neutralidade portuguesa. Atrás disso havia igualmente uma rixa pessoal, Pierre André tinha sido igualmente atacado e feito prisioneiro no porto de Lagos na Nigéria em circunstâncias idênticas.

O comboio inglês, estacionado na Praia de Santa Maria da Esperança a descansar, destinava-se a atacar as colónias da Holanda na Africa do Sul, era constituído por oito barcos de guerra, doze que transportavam munições e catorze da marinha mercante que pertenciam à Companhia Inglesa das Índias.

Para além do envolvimento numa guerra declarada, os franceses tinham outra razão bem forte para efectuarem esse ataque.

Tudo indica que surgiram dos lados da Ponta Bicuda com todas as velas içadas, inferior em número e em poder de fogo, conhecido como chefe enérgico, audaz e impaciente, Suffren resolve por em prática uma táctica revolucionária. Em vez de mandar colocar os barcos em linha de combate, resolve destruir a retaguarda ao mesmo tempo que neutraliza o seu comando.

Com "Le Heros" à frente, seguido de "L’Annibal", de "L’Artesien", de "Le Vengeur" e mais atrasado vinha "Le Sphinx", às 10 horas da manhã os vasos de guerra encontravam-se em plena baía da Praia, surpreendendo totalmente os ingleses que eram comandados por George Johnstone. Este encontrava-se nesse preciso momento dentro de um bote a circular entre os barcos que comandava e teve que saltar para o Romney por se encontrar mais à mão.

Os três primeiros barcos franceses passaram tão perto que era impossível falhar um tiro sequer. Primeiro utilizaram canhões de 24 e 36 mm seguidos de peças ligeiras de 8 mm e finalmente até tiros de mosquetes fizeram-se ouvir feitos pelos soldados, varrendo todo o convéns de Monmouth.

Embora desordenadamente os ingleses ripostaram atingindo seriamente "L’Annibal" que saiu da cena rebocado pelo "Sphinx" enquanto na ponte de "L’Artesien" o seu comandante Cardillac tombava, fulminado por uma bala. Instalou-se uma certa confusão após a perda do chefe, o que fez com que não deitassem âncora e o barco saiu derivando quase sem tomar parte na batalha.

Entretanto os dois barcos que se encontravam atrasados não perceberam a táctica inovadora de Suffren, tendo empreendido manobras desajeitadas o que não possibilitou que também participassem na peleja propriamente dita.

Instalado a confusão os dois primeiros navios encontravam-se numa situação de perigo e à mercê da esquadra inglesa que dava sinais de recuperação. Foi então que contra a sua vontade e temendo o pior Pierre André de Suffren, manda cortar os cabos das âncoras e forçar a sua saída do campo da batalha.

Fora da baía, já ao largo os franceses se reagruparam, preparando-se para um contra ataque inglês, que se previa ser devastadora devido à supremacia inglesa. Tal não aconteceu. O Commodore Johnston, intimidado pela determinação do comandante francês, mas certamente ciente da sua principal missão, levantou âncora mas não se aproximou, recolhendo definitivamente ao porto às nove horas da noite. Além de enorme prejuízo material, teve uma baixa de 183 homens, 36 dos quais mortos e 147 feridos. Do lado dos franceses, não se conhece o numero de mortes e feridos.

Placa comemorativa, baía da Praia
O sucesso francês foi de grande valia estratégica. Atrasou os ingleses de tal forma que esses só puderam fazer-se ao largo no dia 2 de Maio após todos os consertos que se mostravam necessários. Entretanto o percurso até ao Cabo da Boa Esperança e para a Índia apresentava-se segura para as frotas francesas e holandesas. Sobretudo possibilitou o reforço dos holandeses que iam ser atacados no Cabo e assim evitou o assalto e conquista daquele território pelos ingleses, saldando-se apenas no aprisionamento de alguns navios.

Para fixar essa data na história, no museu da Marinha francesa existe um quadro de Rossel com a pintura deste confronto militar que teve lugar na nossa capital, um dos submarinos da armada de França foi baptizado com o nome da cidade da Praia, nas proximidades da ponta Temerosa (extremo sudeste da baía) chegou a ser colocada uma placa comemorativa. E, se um dia alguém se lembrar de valorizar os vestígios arqueológicos subaquáticos do nosso país poderá tentar encontrar e identificar uma ou mais âncoras do "Le Heros" e "L’Annibal", enriquecendo assim com mais uma vírgula a nossa história marítima e nacional.

Texto de apoio: Bertrand, Michel, En Plein age d’or de la marine en bois, une campagne de monsieur de Suffren

5 comentários:

  1. Respostas
    1. Emmanuel C D'Oliveira - Monaya13 de junho de 2017 às 10:01

      Pois, diazá na mundo que as nossas aguas tem coisas pa contar, vamos tentando. Obrigado pelo comentario

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  2. Desconhecia de todo este episódio de guerra naval, ignorando que a baía da Praia tivesse sido palco de um confronto do género.
    Sim senhor, belo texto, que li com muito gosto e que pelo qual felicito o autor do mesmo e o blogue PdB.

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    1. Eu também desconhecia o assunto que comparo com o dos navios "Kearsarge" e "Alabama" na batalha entre um barco do Norte e outro do Sul, durante a guerra civil americana, em 1864, mas... em Cherburgo e que deu quadro do Manet.

      Braça com BUMMMMMMMM, BUMMMMMMMMMM,PAMMMMMMMMMM
      Djack

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    2. Emmanuel C D'Oliveira - Monaya13 de junho de 2017 às 10:11

      "alguem" podia adquirir copias das pinturas (à venda mesmo na net) para enriquecer nosso museu do mar, salões nobre, halls de instituiçoes, etc. Procurar e tentar encontrar as ancoras deixadas pela frota francesa, podia ser tb um exercício interessante.

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