sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

[4086] Um delicioso texto enviado ao Pd'B pelo nosso amigo Arsénio Fermino de Pina

E depois dizem que os cabo-verdianos não gostam do português (língua). Adoram-no. Só que, sobretudo a partir do momento em que o crioulo foi alçado à categoria de língua, através da sua marsianuzação, esqueceu-se que há outras variantes, saindo da categoria de dialeto do português, necessitando ainda de muito estudo para aí chegar. Noutros tempos, quando ainda havia professores formados no famoso Seminário-Liceu de S. Nicolau, é que se falava o português de lei. As pessoas perderam o gosto pela língua de Camões, e até na Assembleia Nacional, deputados licenciados pontapeiam a gramática sem nenhum respeito. É cada pontapé que até parece coice de mula brava, que dá para “esmaiar”.

Vejam lá a prosa de um santantonense, ainda meu parente não muito afastado, que não teve meios para frequentar o Seminário de S. Nicolau, nem o liceu, mas que fez questão e sacrifícios para qualificar todos os filhos no Liceu Gil Eanes. Entretinha-se a ler "Os Lusíadas", deixado por um dos filhos durante as férias, e também o Lunário Perpectuo, colecionando palavras sonantes e bonitas dos "Lusíadas" para impressionar os amigos; adorava a conjugação reflexa. O homem, que tinha certo peso social na ilha, era também de uma basófia lendária! Mas, para podermos avaliar a sua paixão pela língua de Camões, vejam lá uma a descrição de uma das suas façanhas, relatadas a uma roda de amigos:

”Cheguei-me à Chã d´Igreja. Lancei-me sobre o meu fogoso ginete, cavalo, corcel, e este disparou-se numa corrida assaz vertiginosa por montes, vales e concavidades que mais parecia um raio despenhado da atmosfera aquática sobre o arquipélago. Vitupérios.” É o mesmo patrício que, depois de ter contado uma história com cabeça, tronco e membros ao mesmo grupo de amigos-do-peito, este quis saber donde vinha a história. Resposta: “Das profundezas subterráquias do meu crânio cerebral”.
Não há dúvidas de que nesse tempo falava-se o português vernáculo!
                                                                                               
Arsénio Fermino de Pina

1 comentário:

  1. Verdadeiramente saboroso, Djack. O nosso Arsénio sabe deliciar-nos com a sua prosa, e o sentido de humor é uma constante no que escreve, mesmo nos assuntos mais graves.

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