sexta-feira, 26 de março de 2021

[4813] Degredados

Colaboração do nosso amigo Artur Mendes que teve a amabilidade de nos enviar este texto e esta imagem.

Imagem ilustrativa
Foi numa madrugada de janeiro melancólica e lúgubre com um carme dantesco. Sob uma chuva miúda e fugida entre duas filas de guardas de baioneta armada, marcham para o cais os degredados.

Na rua erma e gélida, qual catacumba em que a romper o silêncio apenas ressoava o passo regular da soldadesca, um taberneiro madrugador abria a loja, especava-se depois entre portas a ver desfilar aquele cortejo de desgraça e, erguendo o braço espalmando a mão suja murmurava rindo alvarmente:-- “São vadios…”. E eles os párias que a justiça proscrevia, passavam cabisbaixos e andrajosos, dardejando olhares de fome.

Eu, quedei-me a examinar esses presos dos quais apenas uns seis, de melenas e ar gingão inspiravam asco; a maioria dos da leva, uns vinte talvez, tinham o tipo d’operários sem trabalho e caminhavam com uma atitude de verdadeiras vítimas da imperfetibilidade social.

Horrorizava ver, numa selva de baionetas, marchar para a morte lenta ou para o vício, esse contingente do grande exército dos sem pão; e levavam o sinete do vilipêndio, esses desgraçados que poderiam ser cidadãos honestos e generosos. O taberneiro o dissera! Eram vadios…

****

Chegada ao cais, a força fez alto, uniu as fileiras e as coronhas da Mauser batendo pesadamente no solo produziram um som cavo e profundo como um dum rumor subterrâneo; as águas barrentas e revoltas do rio batiam numa fúria impotente contra a muralha do molhe e, de lá em baixo, fortemente atracado, o rebocador bambaleava-se galhardamente de popa à proa, esperando fumegante o momento de conduzir os presos para o paquete.

Agora, no cais procedia-se à chamada; um sujeito grave, de certa idade bradava já em voz irritante o último nome da lista que tinha na mão: “João Maria”, pronto! Disse um rapaz ainda imberbe que chorava em silêncio.

Uma mulherzita sua conhecida que chorava a meu lado contou-me a sua história. Ele era enjeitado, aprendiz de carpinteiro, um dia despediram-no e o pobrezito, depois de procurar em vão em que ganhar a vida, viu-se sem dinheiro e sem abrigo e passou a dormir nas praças públicas; foi preso várias vezes; por último deram-lhe parte e agora lá o mandaram para essas áfricas …

Afastei-me confrangido, ao ouvir esta história que tinha tanto de singela como de trágica.

E enquanto os clarins dos navios de guerra tocavam a alvorada n’um tom plangente e triste como uma marcha fúnebre, a bordo do rebocador, esse contingente do grande exército dos sem pão dispunha-se de lágrimas nos olhos e coração opresso a partir para a morte ou para depravação se não morressem pelas febres aprenderiam a ser criminosos! 

Eram vadios….

Armando D’Aquino

Em “A luz”, Lisboa, 25 janeiro de 1909

Nota: A deportação portuguesa para Cabo Verde parece ter sido verdadeiramente significativa no século XIX. De acordo com os dados de António Carreira, foram deportados para o arquipélago 2433 condenados, dos quais 81 mulheres”.


3 comentários:

  1. História d'um degredado
    ...
    Comissão de Petições das Cortes
    Autor : José Gregório Bício
    Sumário:

    Requerimento, de 14 de Fevereiro de 1827, de José Gregório Bício, no qual, referindo que tendo sido degredado, por seis anos para as ilhas de Cabo Verde, teve "a felicidade de o Governador o mandar conduzir dois "LEÕES" à Corte, onde foram apresentados à Infanta Regente, que lhe perdoou o degredo, e lhe atribuiu um subsídio para comedorias", pagas pelas "reais ucharias", e maneou-o adido ao Regimento de Infantaria nº1, com a única tarefa de tratar dos "leões"..."
    "AH Assembleia Nacional"


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    Respostas
    1. Obviamente, em Cabo Verde nunca houve leões "indígenas"... os mamíferos mais selvagens existentes nas ilhas são uns macaquitos que residem apenas em uma zona de Santiago (não sei exactamente onde) e cujos ancestrais lá foram parar por acidente, algo como uma fuga de um barco em que estavam a ser transportados (falaram-me de uma macaca grávida). O mais certo, é os leões terem vindo num barco proveniente de África e o governador ter achado que o tal Bicio seria a pessoa mais indicada para fazer o acompanhamento dos ditos à Infanta Regente.

      Braça leonina (com juba e tudo),
      Djack

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  2. Degredados, para misturar aos que já lá timham sido condenados a uma terra que tinha sido condenada ao degredo, com o oceano envolto a formar as grades...

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