sábado, 1 de maio de 2021

[4887] Um longo mas importante texto de Adriano Miranda Lima sobre Onésimo Silveira

É da essência dos blogues viverem de textos curtos, para leitura rápida, de preferência acompanhados de imagem/s. Mas há excepções e o presente texto é uma delas. Pela qualidade do autor, Adriano Miranda Lima, e pelo extremo interesse e oportunidade do motivo. Aqui fica ele, portanto, dez anos depois da publicação inicial, em Cabo Verde.

AS BANDEIRAS DE ONÉSIMO SILVEIRA

Ao olhar para a fotografia do palanque do comício eleitoral do Partido do Trabalho e da Solidariedade (PTS), a imagem transmitiu-me a sensação daqueles dias em que o vento agreste fustiga o corpo e endromina o prazer das noites olorosas de Mindelo. Pode ser uma simples impressão minha, só porque corria o mês de Fevereiro, propício a vento e “bruma seca”. 

Onésimo Silveira falava para os adeptos da sua causa, tentando explicar-lhes, com a sua natural veia discursiva, que S. Vicente se perdera na curva assimétrica do destino das ilhas. Postergado pelas políticas dos homens, desviado das rotas antigas, macerado na sua identidade cultural. O extracto sucinto da reportagem jornalística, que me era presente, referia as linhas de força do seu verbo, mas ao jornalista talvez tenha escapado algo de simultaneamente romântico e espectral naquela imagem fotográfica captada na poalha da noite. Provinha talvez das longas barbas brancas do veterano da política, que, só por si, infundiam a magia hipnótica do seu instinto. Convenci-me de que, como sempre, ele estaria ali a jogar com a letra perfeita do léxico de uma arte refinada por muitos anos de caminhada pelos trilhos da política. 

O público ali presente encontraria, ou não, motivos de encantamento nas palavras do político-poeta, ou do poeta-político. Porque a política só ganha se na poesia colher o aroma balsâmico para a aspereza, a agressividade e a incontinência verbal. Mas Silveira deve ter feito a mediação certa entre o lirismo e a retórica política para afinar o tom e o modo na sua crítica a quem achava responsável pelo estado actual da sua ilha. Fiel ao seu passado, e fiando no seu faro político, arvorava a bandeira do inconformismo que o caracteriza, espetando-a no chão das suas sínteses estratégicas. O tempo viria a dizer se ele foi ou não convincente, do alto do púlpito em que fez uso da palavra. 

Mas quem é este veterano da política cabo-verdiana, este homem de barba mefistofélica, que nos faz olhar para a política não apenas como um imperativo cívico mas também como uma romântica aventura humana? Não tenho nem nunca tive qualquer relação pessoal com o Onésimo Silveira, mas, como ele pertence àquela estirpe de seres que saltam facilmente para a luz, conheço-o como todo o cabo-verdiano que se preze, tendo acompanhado os passos mais marcantes do seu percurso. Contudo, a memória pessoal mais impressiva que dele guardo recua a tempos muito antigos, naquela idade em que as meninges infantis recortam e guardam para sempre o que mais impressiona. Era eu ainda menino de escola primária e ele estaria nos últimos anos do liceu. Passava diariamente na minha rua, no trajecto entre a casa e o liceu Gil Eanes, e recordo perfeitamente que o Onésimo despertava nos rapazes mais novos uma curiosidade reverencial, pelo seu ar resoluto e desafiador. Aliás, a personalidade forte e o espírito determinado viriam a determinar o rumo que cedo deu à vida. É assim que, decididamente, deixa Cabo Verde e acaba por rumar à Suécia, onde se licencia, não tardando a ganhar notoriedade como poeta, intelectual e opositor à política colonial, com ligação ao PAIGC. Cerca de 10 títulos literários, entre poesia, conto e prosa do género ensaístico, atestam o vigor da sua cultura. O exercício de um alto cargo na ONU e, posteriormente, como embaixador de Cabo Verde em Portugal, provaram a sua capacidade diplomática e política. Nestas últimas funções, encontraria terreno de eleição para arvorar uma importante bandeira, talvez das que lhe são mais queridas – a da solidariedade humana.

Como quase toda a figura pública, Onésimo tem um lado complexo e controverso da sua personalidade, e não faltará quem lhe aponte defeitos, em meio aos atributos que o exornam como ser humano e como político. Mas o amor à terra natal é seguramente um profundo estado de alma que se lhe tem de reconhecer e enaltecer. Outro teria feito render o mais possível o prestigiante e dourado cargo na ONU. Ele preferiu regressar para participar activamente na política do seu país, e se bem o pensou melhor o fez, criando um movimento político com o qual ganha as eleições autárquicas, passando a ser Presidente da Câmara Municipal de S. Vicente, em dois mandatos consecutivos. 

Pela sua acção como edil, é unanimemente reconhecido como o obreiro da transformação de Mindelo no pós-independência. Realce-se, com efeito, a coragem com que quebrou rotinas pastosas na acção administrativa e fez avançar o progresso urbano da cidade, derrubando, ao mesmo tempo, tabus e preconceitos introduzidos pela sanha revolucionária que ameaçava adulterar e desfeitear a história da cidade. Estátuas de tempos idos que haviam sido desmontadas foram recolocadas nos seus pedestais. Impediu-se assim o sacrilégio de atentar contra o imortal Camões ou figuras como o ilustre estadista e humanista Sá da Bandeira, amigo de Cabo Verde. Ruas que haviam sido violentadas na sua identidade toponímica foram recuperadas para a veracidade histórica, e outras passaram a consagrar nomes de figuras da terra. Esta reposição de valores e princípios que preservam a identidade, só está ao alcance de quem ousa influenciar os acontecimentos, mesmo arrostando o desconforto de reacções adversas. Não fosse a sua acção determinada, a memória da cidade não se teria ressarcido dos excessos de alguns pseudo-revolucionários na sua ânsia de acerto de contas com o passado. A urbe fica a dever-lhe esta grandiosa bandeira, a da sua identidade resgatada, que deve permanecer hasteada no seu mais alto torreão.

Mais recentemente, Onésimo reapareceu em cena para defender o património histórico-cultural da sua cidade natal, ameaçado pela inoperância da actual Autarquia e pelo desamparo do Governo central. Os resultados ficaram, infelizmente, muito aquém da militância cívica que ele e outros cidadãos de vários quadrantes sociais entenderam protagonizar, mas nessa mesma forja fundiu o aço para a batalha seguinte, a do pleito legislativo, que é onde o surpreendo no cimo do palanque. 

Naquela noite eleitoral de Fevereiro, o veterano e incansável Onésimo Silveira “subiu à cruz à frente do seu partido” (1), exangue e de mãos vazias, mas certamente temerário e confiante como sempre, e “o povo acabou por crucificá-lo” (1). Porém, para o alto da cruz levou consigo a bandeira da regionalização, e ali a deixou hasteada. Tremulando no próprio assombro. 

As expectativas estão abertas, enquanto ele acumula cicatrizes dos recontros a que não se furta. Porque Onésimo nunca desiste de se bater pela perpetuação do possível, mesmo que a relação ambígua entre a efemeridade humana e a perenidade dos sonhos seja por vezes perniciosa para os cálculos mais ousados. Uma coisa que o deve, no entanto, entristecer é o silêncio de pedra que parece actualmente nimbar a sociedade civil da sua ilha, cristalizando um vidro espesso e opaco que não facilita a auscultação das vontades nem reflecte as antigas reminiscências. Tão intrigante é esta realidade como tão evidente é estarmos a pisar um terreno que reclama a charrua cívica deste intelectual talhado para brandir a palavra e encorajar ao arrebatamento de ânimo.

Seja o que o futuro próximo nos reserva, Onésimo Silveira, com o seu instinto e a sua resiliência, sabe que a fiança tutelar da sua ilha natal nunca lhe será revogada, inclinem-se por onde se inclinarem os ponteiros dos barómetros, sempre sensíveis a ventos e marés. 

Inúmeras são as bandeiras das suas pelejas, umas esfarrapadas e postadas em peanhas alinhadas na sua memória, outras incólumes ainda no tecido da sua heráldica, prontas para novas batalhas. Este cidadão não arruma as armas, e nenhum povo, nenhuma pátria, pode licenciar um guerreiro deste calibre. Sobretudo, a ilha de S. Vicente.

(1) Depoimento de Onésimo Silveira em entrevista ao jornal “A Semana”, publicada em 20/02/11, com o título “Só me retirarei da política com a minha morte biológica”.

Tomar, 16 de Março de 2011

Adriano Miranda Lima

4 comentários:

  1. Obrigado, Joaquim. É um justo tributo à memória do Onésimo Silveira relembrar o que escrevi sobre ele nessa data a enaltecer a sua craveira intelectual, a sua rara intuição política e a sua incansável militância cívica e cultural.

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    1. Foi um grande cabo-verdiano e um grande apreciador de Portugal e da sua cultura. Por isso, merece todo este realce que aqui lhe damos.

      Braça,
      Djack

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  2. Gostei do Artigo do Adriano sobre Onésimo Silveira. Subscrevo quase tudo. De facto Silveira distinguiu-se também pela sua postura "resoluta e desafiadora" em todas as causas pelas quais se bateu. Uma delas, o regionalismo, outra, a sua cidade, Mindelo e os filhos ilustres,a quem prestou homenagem através da nova toponímia da cidade. Tudo isto, somado à sua qualidade de poeta e de homem de cultura, fazem-no merecedor do nosso respeito e de um lugar com destaque na memória da nossa cabo- verdianidade.

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  3. Tive oportunidade de folhear o seu livro "Um Mar de Histórias", devo dizer que foi para mim um privilégio também conversar com ele na sua casa na Baleia numa das minhas caminhadas de fins de semana.
    O seu precursor nestes 86 anos na minha opinião reflete por inteiro a vida do Africano e de Cabo Verde em particular ao qual ele batalhou para que houvesse mudanças, e conseguiu, pelo que julgo deve por isso ter tido um morte tranquila.
    O único desassossego deve pelo facto de não ter sido um bom "Pai", como ele mesmo reconheceu.

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