NA ONDULAÇÃO DOS DIAS
Infatigáveis voam as gaivotas
nesta terra ardente com sabor a sal e a
sol
enquanto uma aguarda expectante mas
serenamente
no cimo do apartamento ao lado
que lhe dê uma guloseima
talvez por ser hábito de hóspedes
anteriores
Meu coração apaziguado
respira agora uma imensa saudade
a saudade eternamente saudade
na ondulação dos dias
voando céleres como o vento
e as gaivotas que mal vejo passarem
logo que meus olhos as avistam
longe
em direção ao mar
indiferentes ao meu desejo de fotografar
seus elegantes voos ondulantes.
Inquietante meu pensamento
surpreende-me
com um antigo desejo meu
de adormecer com a lua na mesma nuvem.
Anda escondida ou fugidia a minha
lua
talvez aprisionada nessa nuvem
rodeada de silêncios e doce harmonia.
Ser neve outro desejo meu
não menos perturbante
ser neve simplesmente neve mimada.
A primeira vez que vi neve
achei-a incrivelmente azul
de um belo e cristalino azul antártico
tão azul que senti meu coração
suavemente acarinhado e jovial
sensação tão suave e doce
como um inesperado afago
no meu cabelo revolto.
Enquanto evoco antigas memorações
avisto ao longe luzes a brilharem no mar
são luzes de barcos de pesca julgo que de lulas
pequenos cristais que lembram o brilho
dos pirilampos.
Não voltei a ver pirilampos brilharem na
noite escura
nem me lembro de quando a última vez que
os vi.
Em criança encantavam-me e queria
apanhá-los
para os levar para o meu quarto.
Sempre tive medo da escuridão e da
solidão da noite
e os pirilampos fascinavam-me
dizia então que os guardaria nos
bolsinhos do meu vestido
e correria rápido para que não fugissem
nem perdessem o brilho.
Meu pai explicou-me ternamente
o que eram os pirilampos e aceitei a
realidade
sempre no meu desassossego inquietante
Com emoção conciliada respirando uma saudade imensa
vou dormir com a lua no pensamento
e o odor a maresia e a salsugem na
memória
continuarei frágil navegando por paraísos azuis
leves e cintilantes no meu
pensamento
ardendo como uma réstia de luz na noite
escura
Talvez amanhã veja a lua nova. Sinto-a
girando
Praia da Rocha, 10 de Julho, de 2021
Foto Joaquim Saial |
ResponderEliminarCarlota, melhor que ninguém sabes que as gaivotas, e os pássaros dum modo geral, têm esse condão de habitar o mesmo espaço onírico que os poetas. Quando avistamos os pássaros no seu voo longínquo, há asas invisíveis que nos impelem em seu encalço, e é quando ocorre uma íntima unidade entre o espírito e a natureza, entre o real e a imaginação. Sim, voar com as gaivotas deve dissolver as referências físicas que nos lembram a condição mortal, e creio que é quando sentes que na leveza de uma simples pena de ave pode estar a sensação da suprema felicidade. O mundo carrega no seu bojo uma angústia maior que o peso do seu núcleo, e o sortilégio de uma pena pode ser o segredo para a levitação que liberta e purifica.
E a simples incandescência de um pirilampo pode tornar-se a energia que ilumina o interior da alma e a predispõe à descoberta do infinito. Se a nossa ânsia é desvendar o infinito, haverá que guardar nos bolsinhos dos vestidos todos os pirilampos que encontramos na penumbra das nossas noites. E isso conseguiste como o consegue toda a criança, porque ela guarda na sua posse a chave com que busca desvendar os segredos. Contrariamente ao que pensas, todas as noites continuas com a companhia secreta de pirilampos, estão nos bolsos dos teus vestidos, não se extinguiram com a luz crua dos teus dias de adulta ou com a terna revelação do teu pai.
Sim, “dormir com a lua no pensamento” é confortante se ela “gira” como uma girândola anunciando a renovação do ciclo que eterniza o enigma que nos faz voar continuamente com os pássaros e procurar a incandescência dos pirilampos. Essa fantasia é a própria força que dá sentido à ânsia de procura da unidade entre o espírito e a matéria. Penso que os teus poemas é isso que procuram.