segunda-feira, 4 de outubro de 2021

[5504] Mais um poema inédito de Carlota de Barros, oferecido ao Pd'B


NA ONDULAÇÃO DOS DIAS

 

Infatigáveis voam as gaivotas

nesta terra ardente com sabor a sal e a sol

enquanto uma aguarda expectante mas serenamente

no cimo do apartamento ao lado

que lhe dê uma guloseima

talvez por ser hábito de hóspedes anteriores

 

Meu coração apaziguado

respira agora uma imensa saudade

a saudade eternamente saudade

na ondulação dos dias

voando céleres como o vento

e as gaivotas que mal vejo passarem

logo que meus olhos as avistam   

longe   em direção ao mar

indiferentes ao meu desejo de  fotografar

 seus elegantes voos ondulantes.

 

Inquietante meu pensamento surpreende-me 

com um antigo desejo meu

de adormecer com a lua na mesma nuvem.

Anda escondida ou fugidia a minha lua  

talvez aprisionada nessa nuvem

rodeada de silêncios e doce harmonia.

 

Ser neve   outro desejo meu

não menos perturbante

ser neve   simplesmente neve mimada.

 

A primeira vez que vi neve 

achei-a incrivelmente azul 

de um belo e cristalino azul antártico

tão azul que senti meu coração

suavemente acarinhado e jovial

sensação tão suave e doce

como um inesperado  afago 

no meu cabelo revolto.

 

Enquanto evoco antigas memorações

avisto ao longe luzes a brilharem no mar

são luzes de barcos de pesca   julgo que de lulas

pequenos cristais que lembram o brilho dos pirilampos.

Não voltei a ver pirilampos brilharem na noite escura

nem me lembro de quando a última vez que os vi.

 

Em criança encantavam-me e queria apanhá-los

para os levar para o meu quarto.

 

Sempre tive medo da escuridão e da solidão da noite

e os pirilampos fascinavam-me 

dizia então que os guardaria nos bolsinhos do meu vestido

e correria rápido para que não fugissem nem perdessem o brilho.

Meu pai explicou-me ternamente

o que eram os pirilampos e aceitei a realidade 

sempre no meu desassossego inquietante  

 

Com emoção conciliada  respirando uma saudade imensa

vou dormir com a lua no pensamento

e o odor a maresia e a salsugem na memória

continuarei frágil   navegando por paraísos azuis

leves e cintilantes no meu pensamento 

ardendo como uma réstia de luz na noite escura

 

Talvez amanhã veja a lua nova. Sinto-a girando

 Carlota de Barros

                                 Praia da Rocha, 10 de Julho, de 2021

Foto Joaquim Saial


1 comentário:


  1. Carlota, melhor que ninguém sabes que as gaivotas, e os pássaros dum modo geral, têm esse condão de habitar o mesmo espaço onírico que os poetas. Quando avistamos os pássaros no seu voo longínquo, há asas invisíveis que nos impelem em seu encalço, e é quando ocorre uma íntima unidade entre o espírito e a natureza, entre o real e a imaginação. Sim, voar com as gaivotas deve dissolver as referências físicas que nos lembram a condição mortal, e creio que é quando sentes que na leveza de uma simples pena de ave pode estar a sensação da suprema felicidade. O mundo carrega no seu bojo uma angústia maior que o peso do seu núcleo, e o sortilégio de uma pena pode ser o segredo para a levitação que liberta e purifica.
    E a simples incandescência de um pirilampo pode tornar-se a energia que ilumina o interior da alma e a predispõe à descoberta do infinito. Se a nossa ânsia é desvendar o infinito, haverá que guardar nos bolsinhos dos vestidos todos os pirilampos que encontramos na penumbra das nossas noites. E isso conseguiste como o consegue toda a criança, porque ela guarda na sua posse a chave com que busca desvendar os segredos. Contrariamente ao que pensas, todas as noites continuas com a companhia secreta de pirilampos, estão nos bolsos dos teus vestidos, não se extinguiram com a luz crua dos teus dias de adulta ou com a terna revelação do teu pai.
    Sim, “dormir com a lua no pensamento” é confortante se ela “gira” como uma girândola anunciando a renovação do ciclo que eterniza o enigma que nos faz voar continuamente com os pássaros e procurar a incandescência dos pirilampos. Essa fantasia é a própria força que dá sentido à ânsia de procura da unidade entre o espírito e a matéria. Penso que os teus poemas é isso que procuram.

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