Eu, estátua, indefesa e silenciosa
(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 11/12/2021)
“Eu, Diogo Cão, navegador,
deixei este padrão ao pé
do areal moreno
E para diante naveguei”
Fernando Pessoa, in “Mensagem”
Mário Lúcio de Sousa, natural do Tarrafal, Cabo Verde (onde, da última vez que lá estive, nenhuma estátua, nenhuma placa, nenhuma simples escultura, evocava o campo de morte onde tantos resistentes portugueses pagaram pela sua luta contra o fascismo e o colonialismo), escreveu no “Público” de domingo passado um artigo a defender o derrube, o “afundamento” ou a “vandalização” das estátuas coloniais portuguesas em Portugal. Embora identificado pelo jornal como “escritor e músico”, confesso que a minha ignorância sobre ele era total. Erro meu: a sua biografia ilustra-o como poeta, escritor (com dois prémios literários portugueses conquistados), músico, cantor, “cantautor”, “pensador”, pintor, global artist e ex-ministro da Cultura de Cabo Verde. Um personagem e tanto! Das suas qualidades musicais, a net pouco mais me revelou que brevíssimos excertos dos vários concertos ao vivo em que parece ter ocupado o seu último Verão em Portugal, mas nada que o aproxime sequer dos vários nomes que fizeram da música cabo-verdiana uma referência mundial. Das suas qualidades literárias, apenas consegui chegar a dois poemas sofríveis, para não dizer medíocres, e o próprio texto publicado no jornal, onde, em minha modesta opinião, faz um fraco uso desta extraordinária língua que lhe deixámos em herança… para além das estátuas. Mas isso é o menos, o fundamental é o seu argumentário.
Primeiro que tudo, a questão da legitimidade. Mário Lúcio (como ele gosta de assinar) fala em nome dos “antigos colonizados, seus descendentes, hoje pessoas nascidas, crescidas, naturalizadas, cidadanizadas, nacionalizadas, simplesmente portuguesas”. Ora, os de quem ele fala, sim, são portugueses, tal qual como eu; ele, não. Por mais que este país o acarinhe e premeie, ele continua a ser, de direito, um estrangeiro, como eu sou em Cabo Verde — embora, segundo percebi, ele goze daquele estatuto especial de alguns cidadãos dos PALOP de serem aqui quase tão portugueses como nós, mas, vade retro, orgulhosamente africanos em África e no Brasil… Assim, a minha pergunta é: que legitimidade tem um estrangeiro para vir pregar o derrube de estátuas, ou do que quer que seja, num país que não é o seu? Acaso ele se atreveria a isso em Inglaterra, em Angola ou no Brasil? Acaso ele me consentiria isso em Cabo Verde?
Segunda questão, o fundamento. Diz ele que os “‘novos portugueses’ continuam a ouvir os ecos das ordens de matar e de castigar, esses que abafam os uivos de dor”. Não vou, obviamente, discutir o que foi a barbárie da escravatura e o tráfico de 1.400.000 seres humanos, que, só os portugueses, levaram, acorrentados, de África para o Brasil — e sem os quais o Brasil que conhecemos não existiria. Mas se os “novos portugueses” ainda ouvem esses ecos, eu não: não há chicotes nem correntes em minha casa e não oiço uivos de dor vindos da sanzala dos meus escravos. O meu dever contemporâneo é contar a história, a verdadeira história (e, sim, ao contrário do que ele diz, já há em Lisboa um monumento de homenagem às vítimas da escravatura, mas, por pudor, não há um Museu das Descobertas). E, sobretudo, é meu dever denunciar novas formas de escravatura, com novos disfarces, sem chicote nem correntes, como as de que são vítimas os trabalhadores asiáticos na agricultura intensiva — e de que não se ocupam estes activistas talvez porque eles não são negros. Porque também me espanta que estes derrubadores de símbolos de um passado que há muito deixou de existir se remetam a um silêncio sujo de cumplicidade com as múltiplas formas como os povos dos países africanos outrora colónias portuguesas hoje são roubados pelos seus dirigentes, à vista de todos e como nunca foram antes. Não é o caso de Mário Lúcio, natural do único desses países que tem orgulhado a sua independência, mas o que dizer da deputada portuguesa Joacine Katar, aqui acolhida como em raros países do mundo, tão crítica do seu país de acolhimento e tão silenciosa perante a vergonha continuada que é a governação do seu país de origem e a desgraça do seu povo?
Terceira questão: o que querem eles derrubar ao certo? Mário Lúcio não esclarece esta questão, dizendo apenas que “a história é tanto a erecção das estátuas e monumentos como a sua demolição”, e o “Público” ilustra o seu texto com uma fotografa do Padrão dos Descobrimentos — cuja demolição, aliás, já foi defendida por uma luminária do PS. E, numa infeliz comparação, Mário Lúcio diz que os alemães, pelo menos, “não expõem as estátuas dos nazistas”. Passe o insulto, decerto imponderado, a verdade é que eu não conheço por cá nenhuma estátua a esclavagistas — a não ser, assim se achando, as que houver ao Infante D. Henrique, que foi, historicamente, o primeiro importador de escravos em Portugal. Mas uma vez derrubado o Infante, um dos maiores homens do seu tempo e um visionário da História da Humanidade, tudo o resto que tenha que ver com aquilo que ele iniciou e a que chamamos a epopeia das Descobertas Portuguesas terá de ser varrido do olhar e da memória, actual e futura. Estátuas, monumentos, Padrão dos Descobrimentos, Torre de Belém, Jerónimos, Mafra, Queluz, e não só aqui: por todo esse mundo fora, onde, desde 1415 até à independência de Macau, alguma vez os portugueses pousaram pé, e onde, com bússolas ou sextantes, com mapas ou sem mapas, com escravos, sem escravos ou com índios, ergueram castelos, fortes, igrejas, feitorias, sinais do Ocidente europeu e do seu tempo entre “gente remota”. Aquilo que esses países preservam como património histórico e como fonte de receitas turísticas, mas que o buldozer da história “limpa” deveria derrubar, em consequência e por igual. Mas, uma vez isto feito, a limpeza da memória histórica não estaria terminada. A exaltação do “colonialismo” português, confundida por estes derrubadores de estátuas com tudo o resto, não poderia, coerentemente, ficar saciada.
Sobrariam ainda, por exemplo, as pinturas e os livros: “Os Lusíadas”, “A Peregrinação”, “As Décadas da Índia”, o “Esmeraldo de Situ Orbis”, os relatos da “História Trágico-Marítima”, o “De Angola à Contracosta”, e tantos, tantos livros mais, que haveria bibliotecas inteiras para queimar em autos-de-fé. E os escritores que algum dia se deixaram tomar pelo espanto daqueles que navegavam sem horizonte conhecido: Camões, Pessoa, Jorge de Sena, Manuel Alegre, Sophia.
Diga-me lá, Mário Lúcio, com a sua visão de global artist: a sua fúria demolidora começa em que estátua nossa em concreto e acaba em que específico pergaminho?
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Obrigado, Senhor Miguel Sousa Tavares.
ResponderEliminarObrigado, Senhor Joaquim (Djack) Saial
Obrigado aos mais que virão aqui opinar
Em mail pessoal enviado aos amigos, comentei amplamente acerca do que escreveu o senhor Mário Lúcio, pessoa com quem não me identifico minimamente. E pessoa que nem pouco mais ou menos representa o que pensa e sente a maioria dos cabo-verdianos.
ResponderEliminarEis o assunto melindroso e pernicioso! Eu, como acredito numa visão redentora, teleológica e escatológica da História da Humanidade, então meu paradigma hermenêutico funda-se sempre nesta Trindade! Todos comentários, opiniões ou visões pós e contra acerca das dinâmicas societárias da nossa comum existência são devaneios da nossa caminhada individual ou coletiva! A sociedade que temos hoje é sempre fruto da de ontem e assim o círculo e o ciclo bailam ad eternum. Assim diz a Bíblia, a Palavra Absoluta do Sumo Criador!!!
ResponderEliminarDe há uns tempos para cá que o Mário Lúcio assumiu esta postura de pensador e daí o seu "sofisma" edificado, quiçá por ressabiamento ou brio pessoal e "genético"!
Quanto ao Miguel Sousa Tavares, talvez no seu snobismo ideológico-doutrinário, também tenha o pleno direito de evocar e invocar o legado heróico ou estóico dos seus!
E assim andamos, aos treze dias andados do mês de dezembro do ano de 2021.
Termino com este versículo da Bíblia Sagrada:
"O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol."
Eclesiastes 1:9
Mário Augusto Inês
Escuso dizer que estou em total concordância com a réplica do Miguel Sousa Tavares às considerações e juízos que aquele músico verte no seu artigo, a defender o "derrube", o “afundamento” ou a “vandalização” das estátuas coloniais portuguesas em Portugal.
Não conheço nem nunca vi de perto o cidadão Mário Lúcio, mas penso que o Miguel Sousa Tavares não erra quando, em suas palavras, e por aquilo que deve ter pesquisado, parece formar uma opinião pouco abonatória da pessoa visada. Já o falecido intelectual e ex-embaixador cabo-verdiano Onésimo Silveira chegou a zurzir, em artigos publicados, o ministro da cultura "fundamentalista", "talibã", que andava prosaicamente "de viola às costas", promotor de uma política cultural "onde se cultiva em certos meios políticos e intelectuais [cabo-verdianos] um ódio mórbido e obsessivo ao homem crioulo, por muitos considerado portador de uma cultura de subserviência vis-à-vis dos portugueses".
No fundo, o Onésimo Silveira o tinha como alguém de mente demasiado enclausurada, ou anquilosada, para o cargo de ministro da cultura.
Posso estar enganado, mas, pelos sinais exteriores que o Mário Lúcio transmite, parece-me presunçoso, vaidoso e exibicionista. Além disso, considero hipócrita e oportunista quem vem a Portugal em busca de louros "artísticos" e pergaminhos (que quanto a mim não justifica), e não se coíbe de formular juízos demolidores sobre a história e as opções culturais dos que educadamente lhe abrem as portas.
Estou convencido de que a maioria dos cabo-verdianos não se revê na postura desse e outros hipócritas do mesmo género. É que muitos dos que, ciosamente, clamaram e vibraram pela independência política de Cabo Verde, não tardaram a obter (ou o tentaram) a nacionalidade portuguesa para salvaguarda dos seus interesses pessoais, coisa que, convenhamos, daria hoje jeito a muitos desempregados que por lá andam nas ilhas. E esses bem mereciam, até porque normalmente os pobres não cospem no prato em que comem.
Adriano
Se se começasse a derrubar vestígios coloniais em Cabo Verde, não restava pedra sobre pedra em Cabo Verde de nada, pois Cabo Verde é uma criação lusa, quer queira, quer não, tal com se molda a plasticina. Mário Lúcio vive desse legado e nem se dá conta, coitado. De resto o ‘impulso civilizacional’ dado a Cabo Verde, nos finais do século XIX, findo a escravatura na ilha de Santiago, de onde é originário este 'intelectual', a ilha acaba por ser grande beneficiária, embora depois da independência. Com efeito, o tal impulse vem no esteio da nova dinâmica impregnada ao arquipélago no sec. XIX, graças ao estabelecimento no Mindelo, S. Vicente, em torno do Porto Grande de ingleses e demais estrangeiros, assim como da elite burguesa cabo-verdiana. A isto tudo, junta-se a dinâmica cultural em torno do Liceu. Se as minhas informações são correctas esta política foi delineada por Portugal. Portanto, eles estão a cuspir na sopa que andam a comer.
ResponderEliminarDe resto só para concluir, o trabalho de demolição imaterial está em curso em Cabo Verde desde 1974, pois o material é praticamente fácil de atacar, embora não seja possível derrubar toda a herança material, já que as nossas cidades e infraestruturas, iam todas pelo esgoto. Por isso atacou-se a herança imaterial: a língua portuguesa e a herança cultural, que se quer erradicar subtilmente. Neste momento, esta questão está viva noutros fóruns (medias, jornais em Cabo Verde, facebook, Coral Vermelho etc), pois o governo da Praia já cedeu aos lobbies fundamentalistas/irredentistas, começando por implementar em 2022 o ensino na variante badia do Crioulo em todo Cabo-Verde. Portanto se concretiza o sonho de Mário Lúcio e seus Camaradas/tovariches, pelo que a situação é preocupante.
ResponderEliminarEntre remoques, meias verdades, mentiras, azias, fantasias, complexos, vejo que cheguei tarde a este assunto. Coitado do Mário Lúcio. Felizmente vai produzindo notáveis romances, o último dos quais «O Diabo foi meu padeiro», que não recomendo a ninguém aqui, sob pena de alguns ficarem de boca à banda com o prodígio de escrita romanesca que é este badio complexado, talibã e fundamentalista. Quanto ao MST, quem não estiver imersa em fantasias «irredentas», leia a notável desmontagem da sua fantasia de «dono da língua», num dos últimos números do suplemento «Ípsilon», do jornal «Público», por um «fundamentalista talibã», o filósofo António Guerreiro. Porfiai.
ResponderEliminarJosé Luiz Tavares (poeta em língua cabo-verdiana e portuguesa, tradutor de Camões e Pessoa para a língua cabo-verdiana, logo, talibã e fundamentalista)
Corrigindo: onde se lê «imersa em fantasias», deve ler-se «imerso em fantasias». É nisto que dá não ser dono da língua: de vez em quando uma arreliadora gralha no-lo vem lembrar.
ResponderEliminarJamais, jamais!!! O "tal" José Luiz Tavares é muito admirado aqui no Pd'B, pelo autor do dito e por frequentadores do mesmo. Aliás, essa admiração está visível em comentários diversos que se podem ler algures neste blogue.
EliminarPor exemplo, nos posts 1145, 1164, 3178, 4337 e 4527 (talvez ainda noutros), se prova que JLT é gente da casa, da qual aqui se gosta.
ResponderEliminarRecebi do amigo Adriano Miranda Lima os seus comentários ao assunto, que subscreveria. Recordo aos distraídos que, aquando do 25 de Abril, na fúria contestatária contra o governo do Estado Novo, alguns energúmenos derrubaram os bustos de Camões e Sá da Bandeira da Praça Nova, mas, felizmente, alguém da Câmara Municipal teve o bom senso de os recolher. Passada a febre contestatária, os bustos voltaram aos seus lugares, e lá estão como, também, nosso património, porque, quem derrubou Sá da Bandeira, não sabia que foi quem acabou com a escravatura e o tráfego de escravos.
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