No que respeita a Cabo Verde, tanto os 10 grãozinhos de terra maiores como os mais pequenos (Djéu de Soncent incluído, pois claro) são terra nacional da morabeza. Todos eles são geografia crioula, todos eles são território da cachupa, todos eles são receptáculo do aromático grogue. Todos eles, enfim, merecem a mesma atenção das autoridades governativas. Cabo Verde é um todo e sem uma das suas partes constitutivas sairia inevitavelmente a perder.
Mas a verdade é que S. Vicente tem perdido grande parte da pujança cultural e económica que outrora detinha. Daí que, embora o PRAIA DE BOTE não seja muito pelos textos de grande dimensão em blogues, não foi capaz de recusar os dois importantíssimos trabalhos com que Adriano Miranda Lima nos presenteou. Escritos com a correcção, seriedade, lucidez e desassombro a que o coronel-poeta-comentarista nos habituou… e sobretudo livre de sectarismos doentios.
Porque Cabo Verde é só um, da Ponta do Sol de Santo Antão ao ponto mais a sul do Monte das Fontainhas na Brava, na Ponta Moreia.
Porque toda a cabeça tem de ter também tronco e membros…
Joaquim Saial
A “CABO-VERDIANIDADE” E O CADINHO DO MINDELO (I)
Adriano Miranda Lima |
Ultimamente, intrigado com o vazio de intervenção cívica que se instalou silenciosamente na ilha onde nasci, S. Vicente, tenho pensado muito nesse grande intelectual e homem de cultura que foi Baltasar Lopes da Silva.
S. Vicente, em tempos idos, foi o baluarte ideológico da colónia, um verdadeiro alforge de cidadãos virtuosos, de homens de saber, de fecunda inteligência e grande disponibilidade cívica, profundamente devotados às causas de Cabo Verde. O túmulo funerário de Baltasar Lopes da Silva, que em boa hora o blogue “Praia de Bote” retratou nas suas páginas [ver entrada 0045], mais que um registo memorialístico estimula-me uma profunda reflexão sobre as razões da inanição cívica e do desnorte anímico que se apoderaram da ilha que foi a mais dinâmica culturalmente e a mais criativa de todas. Mas a memória de Baltasar Lopes traz com ela, também, a de tantos outros cidadãos de semelhante estirpe que viveram no Mindelo, como o Aurélio Gonçalves, o Manuel Lopes, o Adriano Duarte Silva, o Senador Vera Cruz, o Jorge Barbosa, o Júlio Oliveira, o João Cleofas Martins (Nhô Djunga), o Sérgio Frusoni e o Henrique Teixeira de Sousa. Nem todos nasceram em S. Vicente, é certo, mas na ilha viveram quase toda a vida e nela edificaram e amadureceram o seu pensamento intelectual e o puseram ao serviço da comunidade cabo-verdiana.
S. Vicente, em tempos idos, foi o baluarte ideológico da colónia, um verdadeiro alforge de cidadãos virtuosos, de homens de saber, de fecunda inteligência e grande disponibilidade cívica, profundamente devotados às causas de Cabo Verde. O túmulo funerário de Baltasar Lopes da Silva, que em boa hora o blogue “Praia de Bote” retratou nas suas páginas [ver entrada 0045], mais que um registo memorialístico estimula-me uma profunda reflexão sobre as razões da inanição cívica e do desnorte anímico que se apoderaram da ilha que foi a mais dinâmica culturalmente e a mais criativa de todas. Mas a memória de Baltasar Lopes traz com ela, também, a de tantos outros cidadãos de semelhante estirpe que viveram no Mindelo, como o Aurélio Gonçalves, o Manuel Lopes, o Adriano Duarte Silva, o Senador Vera Cruz, o Jorge Barbosa, o Júlio Oliveira, o João Cleofas Martins (Nhô Djunga), o Sérgio Frusoni e o Henrique Teixeira de Sousa. Nem todos nasceram em S. Vicente, é certo, mas na ilha viveram quase toda a vida e nela edificaram e amadureceram o seu pensamento intelectual e o puseram ao serviço da comunidade cabo-verdiana.
Aqueles ilustres cidadãos viveram o auge da sua existência numa época em que a ilha emergira, quase um século antes, como a mais importante e a mais emblemática de Cabo Verde, responsável por dois terços da sua produtividade económica. Mindelenses de alma e coração, a sua probidade cívica tornou-os importantes esteios da consciência crítica cabo-verdiana, na senda de ilustres conterrâneos de outras ilhas como Eugénio Tavares (Brava) e Pedro Cardoso (Fogo).
É em sua memória que aproveito a ocasião para ensaiar uma breve síntese sobre o ethos cabo-verdiano, ou “cabo-verdianidade”, tentando estabelecer um nexo de causalidade entre o circunstancialismo do nascimento do fenómeno identitário cabo-verdiano, o corolário da sua afirmação definitiva e a sociedade civil que floresceu na ilha de S. Vicente sem paralelo com outras realidades sociais no arquipélago.
Ora, em rigor, a “cabo-verdianidade” teve o seu berço ancestral na ilha de Santiago, a primeira a ser povoada, mas na nossa actual identidade não é possível encontrar um vínculo hereditário muito claro com os chamados “filhos da terra”, os primeiros a terem consciência de uma realidade própria a que corresponderia o emergir da “sociedade cabo-verdiana” a partir do século XVII. A não ser na aparência mais remota de algumas matrizes psicossomáticas, crê-se que não é possível colher vestígios da actual “cabo-verdianidade” em origens tão recuadas. Seguir-se-ia um longo período de inexpressividade cultural e infertilidade sociológica, até surgir na ilha de S. Vicente o momentum apropriado para a revelação da identidade definitiva do homem das ilhas. Polarizando uma forte energia vital à volta do seu grande porto de mar, S. Vicente torna-se a porta do arquipélago que se abre ao mundo, de saída e de entrada, ao mesmo tempo que desenvolve dinâmicas económicas, sociais e culturais sem precedentes em Cabo Verde. É nesse microcosmo que nasce um homem de outro perfil e mentalidade, pela percepção de uma vida diferente daquela que estava subordinada à fatalidade dos ciclos repetitivos de uma agricultura e pastorícia de sobrevivência estigmatizadas pela inclemência do meio natural. Assim, a cidade de Mindelo é o cadinho onde se opera a moldagem de um perfil humano novo no arquipélago, mas que deixa de ser exclusivo da urbe a partir do momento em que se propaga ao espaço arquipelar e acompanha ainda as migrações, que, por seu turno, vão completar o quadro de mundividências enriquecedor do seu ethos.
Antigo Liceu Gil Eanes (clique/imagem) |
O liceu que viria a ser inaugurado na ilha em 1917, na esteira do extinto Seminário de S. Nicolau, passa a funcionar como um farol para todo o arquipélago, irradiando para as outras ilhas a luz da escolarização e da consciencialização cívica. Se a construção da urbanidade resultou dos laços naturais que se criam no trabalho, na relação com o poder ou nas circunstâncias sociais mais triviais, a instrução de nível secundário era o condimento que faltava para a estampagem da cidadania. Em Mindelo nasce uma sociedade civil no sentido exacto da palavra, e a breve trecho nela vicejam com notável criatividade as actividades culturais, a música, os hábitos de lazer, as festividades sociais e o desporto, incorporando elementos de diferentes origens. No desporto, por exemplo, destaca-se a prática de modalidades elitistas como o cricket, o ténis, o golfe e outras que foram introduzidas pela comunidade britânica residente na ilha.
Toda esta influência se propaga para outras ilhas principalmente através do jovem de fora que frequenta o liceu e encontra em S. Vicente vivências típicas de uma sociedade mais evoluída do que as da sua origem, e que lhe burila o espírito, tornando-o mais aberto, mais desinibido e mais convivente, muito graças ao cosmopolitismo que a internacionalização do Porto Grande trouxera ao meio.
Foi a pensar nesse homem de perfil e alma multifacetados que o nosso conterrâneo Dr. Júlio Monteiro, que foi membro das primeiras delegações à ONU, descreveu assim a gente do Mindelo: “Formada pela miscigenação de sangues de estranhas e remotas origens, ela tem características próprias, entre as quais sobrelevam: a fidalga hospitalidade do povo, o amor ao trabalho, ao progresso, notável poder de assimilação, equilibrado sentimento artístico, respeito pelos deveres e direitos de cidadania, e, até, um fino humorismo para apreciar as coisas mais graves desta vida”.
E é já no contexto de uma realidade social efervescente na ilha que Baltasar Lopes e seus pares criam, em 1936, o movimento literário “Claridade”, que, como o nome sugere, foi um veio de luz que despontou de inteligências esclarecidas para iluminar a sociedade cabo-verdiana, numa altura em que a crise mundial de 1929 se repercute na ilha e em toda a colónia com uma gravidade calamitosa perante a qual o governo de Lisboa se mantinha indiferente e pouco solidário. O movimento torna-se doravante o centro de uma reflexão assumida sobre o destino do homem cabo-verdiano, pela primeira vez despertando a consciência de uma identidade nacional com inflexões políticas que, décadas volvidas, iriam ter continuidade no movimento libertário conducente à autonomia da colónia.
Toda esta influência se propaga para outras ilhas principalmente através do jovem de fora que frequenta o liceu e encontra em S. Vicente vivências típicas de uma sociedade mais evoluída do que as da sua origem, e que lhe burila o espírito, tornando-o mais aberto, mais desinibido e mais convivente, muito graças ao cosmopolitismo que a internacionalização do Porto Grande trouxera ao meio.
Foi a pensar nesse homem de perfil e alma multifacetados que o nosso conterrâneo Dr. Júlio Monteiro, que foi membro das primeiras delegações à ONU, descreveu assim a gente do Mindelo: “Formada pela miscigenação de sangues de estranhas e remotas origens, ela tem características próprias, entre as quais sobrelevam: a fidalga hospitalidade do povo, o amor ao trabalho, ao progresso, notável poder de assimilação, equilibrado sentimento artístico, respeito pelos deveres e direitos de cidadania, e, até, um fino humorismo para apreciar as coisas mais graves desta vida”.
E é já no contexto de uma realidade social efervescente na ilha que Baltasar Lopes e seus pares criam, em 1936, o movimento literário “Claridade”, que, como o nome sugere, foi um veio de luz que despontou de inteligências esclarecidas para iluminar a sociedade cabo-verdiana, numa altura em que a crise mundial de 1929 se repercute na ilha e em toda a colónia com uma gravidade calamitosa perante a qual o governo de Lisboa se mantinha indiferente e pouco solidário. O movimento torna-se doravante o centro de uma reflexão assumida sobre o destino do homem cabo-verdiano, pela primeira vez despertando a consciência de uma identidade nacional com inflexões políticas que, décadas volvidas, iriam ter continuidade no movimento libertário conducente à autonomia da colónia.
Mindelo e Porto Grande (clique/imagem) |
Deste modo, bem se vê que tudo o que de mais importante distingue a “cabo-verdianidade” está indelevelmente ligado ao Mindelo, quer nos aspectos mais exaltantes da mestiçagem cultural quer na formação de uma verdadeira sociedade civil. A ilha de S. Vicente é, pois, a mãe da “cabo-verdianidade” e a capital cultural de Cabo Verde, por muito que isso provoque alguns constrangimentos. (continua)
Comentário de Valdemar Pereira
ResponderEliminarS. Vicente, e com ele a sua gente, precisa de acordar porque senão vai canal abaixo. E para chegar ao Pólo Sul vai levar muito tempo. Venham estes artigos que, além de pertinentes, são sempre escritos de muito boa lavra. Pelo que me toca, Obrigado Amigo Saial e Obrigado Adriano. Afinal, sendo "mnis de Soncente, somos filhos de Cabo Verde