sábado, 9 de abril de 2011

[0061] A "cabo-verdianidade" e o cadinho do Mindelo (II) por Adriano Miranda Lima

A “CABO-VERDIANIDADE” E O CADINHO DO MINDELO (II)

Adriano Miranda Lima
Como se procurou demonstrar no texto anterior, é na cidade de Mindelo que tudo aconteceu com relevância histórica a partir dos meados do século XIX. É nela que o ethos cabo-verdiano atingiu no passado a sua eclosão como fenómeno antropo-cultural com a riqueza de cambiantes psicossomáticas que o passaram a marcar indelevelmente. É onde o acaso da História instalou, pois, o cadinho sociológico para a revelação definitiva dos seus traços mais típicos e mais divulgados. No entanto, essa identidade não se contém nos limites da ilha, e, numa transposição diacrónica, alcança uma dimensão transnacional, na medida em que segue a trajectória das migrações, crescendo de amplitude com novos e diferentes contributos, sem todavia alterar-se significativamente o essencial da sua fisionomia. Daqui se pode inferir que a “cabo-verdianidade” é um fenómeno identitário que deixou de se circunscrever a um determinado território específico, e seria um erro crasso tentar desconstruir o seu ethos mediante o regresso a símbolos e referências tradicionais de uma ancestralidade remota que foi derrogada pelo curso da História. O mesmo é dizer que ela se desterritorializa no momento em que se metamorfoseia numa realidade plural que advém de uma complexidade de experiências sociológicas materializadas no tempo e no espaço. Por isso é que o estudioso estrangeiro olha a identidade cabo-verdiana, com as suas virtudes mas também com os seus defeitos, não como algo propriamente enraizado num território que pré-existe, mas como uma singularidade humana que, por paradoxo, provém de uma natureza humana copiosamente marcada por influências culturais diversas.  

Torre de Belém, Mindelo (clique/imagem)
Mas um olhar sobre a actualidade mostra-nos evidências preocupantes de uma política de Estado que parece querer ignorar a cultura de matriz mindelense, pactuando com a não divulgação das suas manifestações na televisão oficial (Carnaval, Passagem do Ano, Festivais Musicais, etc.) e opondo-lhe obstinadamente iniciativas congéneres incentivadas na ilha capital muitas vezes com dinheiros públicos, não como expressão de uma salutar emulação entre ilhas de perfil e morfologia diferentes, para na diversidade se colher o enriquecimento colectivo, mas como forma de um qualquer revanchismo espúrio que não se aceita numa sociedade que se rege pelas regras da democracia e que, portanto, devia buscar na pluralidade e na diferença o reforço da coesão nacional.

A título de exemplo, fala-se nos engulhos que o Mindelact vem criando à política cultural etnocentrista do Estado, havendo rumores de ofertas tentadoras para convencer o João Branco a transferir para a Praia uma iniciativa que foi da sua lavra e livre vontade mas que só frutificou porque teve a adesão e o voluntarismo da sociedade do Mindelo. Acresce ainda o abandono e falta de apoio à salvaguarda e protecção do património histórico-cultural da ilha de S. Vicente e a exclusão das actividades sociais mindelenses de programas televisivos como o “Nha Terra Nha Cretcheu”. Uma medida convergente com todos esses propósitos é a pretensão da uniformização do crioulo, espartilhando-o com um alfabeto concebido à imagem da estrutura fonética do dialecto falado na ilha capital.

A cidade da Praia, ou seja, o Estado ali instalado em pose concentracionária, parece querer a todo o custo apagar a relevância cultural da ilha rival, como estratégia indirecta para impor uma política cultural de recuperação e sagração de uma das vertentes da nossa idiossincrasia, a mais remota, a mais ancestral. Esquece-se que a identidade cabo-verdiana está desterritorializada, em resultado de um processo complexo, dinâmico e sedimentado, que mediou entre a origem geográfica e a dispersão diaspórica, pelo que não será realizável intentar a sua descaracterização à escala transnacional.

Mentes esclarecidas deviam saber que quem atenta contra a dinâmica natural da História fica paredes-meias com o espectro do genocídio cultural.

Porto Grande (clique/imagem)
Infelizmente, forçoso é reconhecer que as responsabilidades pela inanição cívica na ilha de S. Vicente têm de ser assacadas em primeiro lugar à população da ilha, em geral, e às suas elites, em particular, antes de qualquer processo de culpabilização da política do Estado. De resto, a política tem na ilha os seus representantes mais directos, sendo que um governo central não pode senão agir e reagir em função dos sinais e impulsos que recebe da sociedade. Lembra-se que a culpa principal pela demolição da Casa onde viveu o Dr. Adriano Duarte Silva tem de ser assacada à edilidade de S. Vicente, que não parece compreender a importância do património histórico-cultural da ilha.

Vive-se em S. Vicente uma situação de pungente orfandade. Baltasar Lopes da Silva e os seus contemporâneos não deixaram sucessores à altura de pugnar pela conservação e defesa do legado cultural em que o povo de Cabo Verde tem a marca inconfundível da sua identidade. Mindelo parece ter-se tornado num deserto onde não viceja a flor de outrora. Os apelos de algumas vozes inconformadas têm caído em saco roto.

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