sábado, 12 de novembro de 2011

[0148] Velhas recordações do “Novas”…

Zito Azevedo
Ao rever, aqui no PRAIA DE BOTE, as elegantes silhuetas do “Ernestina” e do “Maria Sony” (post anterior), recordei um outro – talvez o mais elegante deles todos – o “Novas de Alegria”, em que, num dia de pouca sorte, resolvi viajar.

Corria o ano de 1956 e estava eu na Brava – Nova Sintra – onde tinha passado breves semanas despedindo-me da que haveria de ser minha esposa no ano seguinte, pois estava de abalada para Angola…

Dizia-se do “Novas” que era navio rápido, ou não fosse um iate a que, claro, haviam sido impostas algumas alterações no sentido de lhe aumentar a capacidade de carga e de espaço para passageiros… Ao fazê-lo, no entanto, julgo que se terá tomado uma iniciativa perigosa – a de diminuir de forma radical o volume da quilha… Como se sabe, a quilha dos iates é muito característica no desenho e no tamanho, creio que necessários para responder a exigências da física de contra-balanço com o altíssimo mastro. Sem parte importante da quilha e do lastro ganhou-se “espaço” para mais carga mas, infelizmente, o navio perdeu, quase por completo, a estabilidade lateral.

"Novas de Alegria" (clique na imagem)
A minha viagem, adiada por diversas vezes pois esta coisa de a gente se despedir da namorada – quase esposa – não é fácil, é doloroso, demorado, tira-nos o sono, aumenta-nos a ansiedade e dá direito ao que eu chamaria de síndrome da orfandade… Creio que há muito de filial no amor de um homem por uma mulher e o objecto do nosso amor acho que tem sempre uma aura de maternidade onde se alojam alguns dos nossos sentimentos mais disponíveis, como o respeito e a admiração… Fica-se absorto, envolto numa espécie de solenidade angelical tão grandiosa como se fosse o último segundo de uma breve eternidade, irrepetível, único, irreal, como o são, afinal todos os segundos da nossa existência.

(clique na imagem)
Quando acordei para a realidade do mundo real, o “Novas” baloiçava, de velas recolhidas e o motor auxiliar roncando lá nas profundezas do casco robusto, abandonando o porto da Furna… Olhando para o largo, foi com alguma apreensão que vislumbrei a imensidade de “carneiros” que se iam acumulando na crista da ondulação cada vez mais cavada, enquanto o veleiro transpunha os obstáculos cinzento-azulados, como se se tratasse de um cavalo branco esvoaçante… Algo me dizia que apesar da beleza telúrica do enquadramento, com aquele tempo e naquele iate, eu jamais chegaria à Praia… É que, se o canal para o Fogo estava daquele jeito eu podia calcular como estaria o Alcatraz!

Então, ali mesmo, à ré do navio, enquanto um reverendo lançava ao mar golfadas de um castanho igualzinho ao da sua capa de franciscano (comigo pensando que lá se ia o leite-com-chocolate…) decidi que desembarcaria em S. Filipe e depois… depois logo se veria!

Costuma dizer-se que todos os malandros têm sorte, muito embora eu não fosse um malandro e já tivesse experimentado dose suficiente de falta de sorte para um só dia!  Eu explico…

Quando havia carga e passageiros que o justificasse, o avião Dragon Rapid (um asa dupla em lona que transportava umas tantas malas, uns tantos garrafões e sete passageiros além, claro, do piloto!). Para o aviãozinho se deslocar, no entanto, era necessário mandar um telegrama e 24 ou 36 horas depois o Dragon lá aparecia. Na época, não havia serviço telefónico para fora do Fogo… Quer dizer: não havia mas ia ser inaugurado nessa manhã! A sorte do malando…

(clique na imagem)
Depois de muita conversa, muito pedido, muitos sapos engolidos, ficou combinado que logo a seguir ao telefonema protocolar de inauguração do serviço, seria feito o primeiro de carácter comercial para os TACV para fazer deslocar o avião, onde havia mais do que suficiente de carga e passageiros a justificar a deslocação.

Enfim, poucas horas depois eu, o piloto mais seis pessoas muito agradecidas, dez malas e seis caixas de pintainhos amarelos que não se calaram a viagem toda, cruzávamos os céus até ao aeroporto da Praia!

Respirei de alívio pela primeira vez nesse dia, mal sabendo que o trajecto seguinte, para S. Vicente, para embarcar, no dia seguinte, para Lisboa a caminho de Angola, ia dar pano para mangas…

Mas isso são contas de outro rosário!

Zito Azevedo

Queluz, 11 de Novembro de 2011
Imagens do arquivo do PRAIA DE BOTE

3 comentários:

  1. Estou a ficar fã das crónicas do Zito Azevedo.
    Não há dúvida que é um especialista na arte da escrita.
    Bjs para ele e para todos os que apreciam as suas crónicas.

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  2. Mais uma crónica de viagem do Zito Azevedo que nos delicia pela sua qualidade literária e pelo que conta do passado mais ou menos remoto. Um passado em que os navios da navegação de cabotagem ocupavam por assim dizer um lugar central no cenáculo da nossa vida de ilhéu. Sempre ouvia dizer que o Novas de Alegria era um iate e, por essa condição, mais veloz que os seus congéneres cabo-verdianos. Mas pelos vistos seria mais um adaptado ao circunstancialismo das necessidades de um cargueiro do que às veleidades de um traga léguas. Outro foi o Senhor das Areias, cujo calado foi aumentado em altura para poder acomodar mais carga e passageiros.
    A narrativa mete pelo meio interessantes reflexões sobre a existência e o ser, ocupando o amor o lugar que merece num coração puro e sincero.

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  3. Paula - Porque te conheço, sei que as palavras são sinceras e, por isso, a aceito, com algum rubor facial...

    Amigo Adriano - Obrigado, também e por maioria de razões: receber elogios de um plumitivo da sua estirpe não é coisa pequena e faz muito bem ao ego...Um abraço fraternal!

    Zito Azevedo

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