Adriano Miranda Lima |
Em outra narrativa evoquei a minha primeira viagem marítima a bordo do lugre “Senhor das Areias”. O destino foi a ilha de Santo Antão e o motivo umas férias na companhia da minha avó materna. O meu deslumbramento com a ilha de Santo Antão e o caudal de emoções despertado no decurso dessas férias tinham de ser também resgatados do fundo do baú da minha memória, onde se conservam quase intactos, passados 62 anos.
Até ao momento em que embarquei para a ilha vizinha, os arquétipos sobre a realidade erigidos no meu imaginário de criança eram o que permitia a insipiência da idade que eu tinha. A minha noção do mundo físico abrangia apenas o espaço da zona onde morávamos, rua do Matadouro Velho, a orla do porto e o seu cais, e a casa dos avós paternos. Pouco mais, tirando uma ou outra ida ocasional à Cova da Inglesa (1), à Ribeira do Julião e ao Lameirão. A Cova da Inglesa merece, no entanto, e num breve parêntese, uma menção especial nesta introdução porque era o lugar que o meu pai escolhia para me levar a um primeiro contacto com o mar, até aos meus 6 anos. Bom nadador, ele levava-me muitas vezes às costas, que eu agarrava utilizando as mãos como se fossem tenazes, tal a aflição que sentia à medida que entrávamos água dentro. Mas o acontecimento mais importante, se não mesmo o principal móbil das deslocações domingueiras à Cova da Inglesa, era o lançamento de um papagaio que o pai confeccionava na véspera à noite, munido de canas, papel, cola e cordel, com que chegava a casa à noite, no regresso do trabalho. Era excitante ver o papagaio libertar-se da prisão e rasgar a trajectória vertical do seu vaivém ao sabor da linha que o prendia. Foi com essa experiência que comecei a perceber, na sua elementaridade, a noção de distância, escala e perspectiva.
Mas entremos agora em Santo Antão, mais concretamente na Vila de Ribeira Grande. Expliquei na crónica anterior o que foi a deslocação de Ponta de Sol àquela vila. Dias depois de chegar à ilha, comecei logo por notar a diferença fonética no falar das pessoas, com tendência a abrir o “e” mais do que em S. Vicente. Curiosamente, essa especificidade da pronúncia local, em vez de me soar como algo adverso, teve o condão, já naquela tenra idade, de me parecer associada a um falar mais meigo e mais amistoso. E essa impressão ficou-me para sempre impregnada nos sentidos, tanto que, regressando a S. Antão décadas depois, ao dirigir-se-me, com oferta de transporte, o condutor de uma carrinha Toyota Hiace, exclamei para mim mesmo, depois de o ouvir falar: - Pronto, já estou em Santo Antão. E senti-me em casa.
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Seguir-se-iam paulatinas descobertas conforme os espaços físicos que me iam sendo permitidos. Desde logo, a sensação mais impressionante foi a visão das montanhas espectaculares e dos belos vales da Ribeira da Torre e do Mompatrás, onde corria água e se apanhavam camarões, sobretudo no último, e onde abundavam culturas e árvores de fruto pouco comuns em S. Vicente. É evidente que tudo isso se foi desvendando à medida que, pela mão da avó ou de outras pessoas, ia sendo levado de visita a esses lugares.
À noite, ocorreu, à certa altura, um acontecimento a que não estava habituado e se repetiria por vários dias. As cagarras demandavam as montanhas defronte ao mar, para se acolherem ou para nidificarem, e a estridência roufenha do seu grito intrigava-me seriamente porque não sabia se eram pássaros de verdade ou se misteriosos seres alados ou almas penadas. Num tempo em que eram férteis as estórias de gongom, pode o leitor crer que a “fantasmagoria” daqueles visitantes nocturnos causava-me perplexidade, ainda que a avó me garantisse que eram mesmo pássaros marinhos. Mas mais confuso viria a ficar ao vê-las à venda em algumas mercearias, depenadas, abertas e secas como o peixe que também se vendia nas mesmas condições de conservação. Algumas pessoas as compravam para consumo humano, mas isso é coisa que nunca provei. Não conseguia vislumbrar naquelas figuras disformes qualquer semelhança com um pássaro.
Em S. Antão, passou a ser menos frequente o consumo de peixe fresco, visto que a pesca artesanal não tinha uma organização e dimensão semelhantes às da minha ilha natal. Se a nossa pesca era artesanal em todo o arquipélago, mais rudimentar era-o ainda em santo Antão. Com frequência, via botes no mar frente à vila a pescar melon (2) com recurso a dinamite, que explodia e deixava o pescado morto a boiar à superfície, o que só por si denuncia as limitações da pesca artesanal local. Com efeito, usar dinamite evitava o risco de aventurar-se por mar dentro e além disso poupava tempo e energia. Lembro-me de que os botes andavam por aí, acima e abaixo, à cata dos cardumes, e quando avistavam um alvo remunerador soavam as explosões, tantas quantas as necessárias para uma pescaria compensadora.
A nossa dieta alimentar passou a revestir algumas particularidades locais, o que a diferenciava um pouco dos hábitos de S. Vicente. Por exemplo, não havia fabrico de pão em S. Antão, consumindo-se bolachas das de trigo fabricadas nas padarias mindelenses do Manuel Matos e do Jonas Wahnon e que eram exportadas para todas ilhas de Cabo Verde, segundo hoje calculo. A batata doce assada no fogão de lenha do quintal era uma iguaria frequente e consumíamo-la às vezes como substituto do pão ou acompanhante de peixe seco assado e outros pratos. Batata doce barrada com manteiga de terra era bem saborosa. A ervilha verde guisada com mandioca, inhame e carne de porco salgada era na altura um prato mais frequente que em S. Vicente. E, é claro, mais manga e papaia passei a consumir, além da goiaba, jambo e outras frutas mais raras que eu desconhecia. Ah, o melaço da cana sacarina por vezes era usado como substituto do açúcar, o que dava ao café um gosto característico que ainda recordo, entrando também na confecção do delicioso doce de papaia verde.
À noite, ocorreu, à certa altura, um acontecimento a que não estava habituado e se repetiria por vários dias. As cagarras demandavam as montanhas defronte ao mar, para se acolherem ou para nidificarem, e a estridência roufenha do seu grito intrigava-me seriamente porque não sabia se eram pássaros de verdade ou se misteriosos seres alados ou almas penadas. Num tempo em que eram férteis as estórias de gongom, pode o leitor crer que a “fantasmagoria” daqueles visitantes nocturnos causava-me perplexidade, ainda que a avó me garantisse que eram mesmo pássaros marinhos. Mas mais confuso viria a ficar ao vê-las à venda em algumas mercearias, depenadas, abertas e secas como o peixe que também se vendia nas mesmas condições de conservação. Algumas pessoas as compravam para consumo humano, mas isso é coisa que nunca provei. Não conseguia vislumbrar naquelas figuras disformes qualquer semelhança com um pássaro.
Em S. Antão, passou a ser menos frequente o consumo de peixe fresco, visto que a pesca artesanal não tinha uma organização e dimensão semelhantes às da minha ilha natal. Se a nossa pesca era artesanal em todo o arquipélago, mais rudimentar era-o ainda em santo Antão. Com frequência, via botes no mar frente à vila a pescar melon (2) com recurso a dinamite, que explodia e deixava o pescado morto a boiar à superfície, o que só por si denuncia as limitações da pesca artesanal local. Com efeito, usar dinamite evitava o risco de aventurar-se por mar dentro e além disso poupava tempo e energia. Lembro-me de que os botes andavam por aí, acima e abaixo, à cata dos cardumes, e quando avistavam um alvo remunerador soavam as explosões, tantas quantas as necessárias para uma pescaria compensadora.
A nossa dieta alimentar passou a revestir algumas particularidades locais, o que a diferenciava um pouco dos hábitos de S. Vicente. Por exemplo, não havia fabrico de pão em S. Antão, consumindo-se bolachas das de trigo fabricadas nas padarias mindelenses do Manuel Matos e do Jonas Wahnon e que eram exportadas para todas ilhas de Cabo Verde, segundo hoje calculo. A batata doce assada no fogão de lenha do quintal era uma iguaria frequente e consumíamo-la às vezes como substituto do pão ou acompanhante de peixe seco assado e outros pratos. Batata doce barrada com manteiga de terra era bem saborosa. A ervilha verde guisada com mandioca, inhame e carne de porco salgada era na altura um prato mais frequente que em S. Vicente. E, é claro, mais manga e papaia passei a consumir, além da goiaba, jambo e outras frutas mais raras que eu desconhecia. Ah, o melaço da cana sacarina por vezes era usado como substituto do açúcar, o que dava ao café um gosto característico que ainda recordo, entrando também na confecção do delicioso doce de papaia verde.
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As festas de S. João foram um evento que pela primeira vez vi com outros preparos e envolvimentos. As romarias passavam em grande tropel em direcção a Porto Novo, onde eclodia a festa em todo o seu esplendor profano. Vinha gente do interior da ilha, a maior parte a pé, ostentando ramos de palmeira enfeitados, mas muitas pessoas também a cavalo, de mula ou de burro, em meio ao rufar dos tambores de pele de cabra e apitos ruidosos, tudo em ritmo alucinante e tendo o binómio homem-naviozinho (3) rodopiante como figura central. E era assim que os dias que precediam a festa do S. João logravam quebrar a monotonia rural das vilas, aldeias e lugarejos por onde passavam as ruidosas romarias de colá Sanjom rumando a Porto Novo.
Certo dia, um afilhado da minha avó levou-me de visita a Coculi, à garupa de uma mula. O objectivo era passar uns dias na localidade e foi quando vi pela primeira vez o trapiche em actividade. A certa ocasião, parei, distraído, no trajecto circular do boi, sem me dar conta de que os bichos estavam impossibilitados de desviar-se do seu curso, salvo se algum reflexo do seu instinto animal os travasse. Foi então que me senti repentinamente agarrado no ar por duas mãos adultas, com um circunstante a considerar: - Ah, mas não haveria problema porque os bois paravam. Não sei se paravam ou não, mas, pelo sim pelo não, houve duas mãos salvadoras que em devido tempo acudiram.
Recordar aquele tempo de Santo Antão é também falar nas chuvas torrenciais que nesse ano desabaram com a incontinência a que por vezes se permite a mãe natureza, coincidindo com a minha presença na ilha. O ribombar dos trovões a ecoar medonhamente nas montanhas, assim como a ribeira caudalosa que se formou à entrada da vila, obrigando a que as pessoas fossem transportadas às costas de uns passadores de serviço para poderem transitar para o lado oposto, são registos inesquecíveis. As chuvas ininterruptas por alguns dias foram tão intensas que houve uma procissão nocturna na vila, com velas acesas e o padre Figueiredo (4) à frente, tal o sentimento de apreensão que se apoderou da população. Na sequência dessas violentas chuvas, formou-se uma lagoa numa área de cota baixa, entre a vila e o mar, que mais tarde passaria a ser um local de banhos e divertimento para a meninada. Quando assentou o barro diluído nas cheias, a água ficou límpida e não tardou que, mais tarde, nela surgisse alguma vida aquática. Foi quando também fiquei a conhecer a habilidade de uns rapazes mais velhos que fabricavam muito sugestivos naviozinhos de pau de purgueira que, munidos de uma velinha de farrapo, animavam o lago em porfiadas regatas. Essas mesmas regatas liliputianas via-as em reprodução real no mar em frente quando os veleiros vindos de S. Vicente apanhavam calmaria e imobilizavam-se no mesmo sítio, sedentos de um sopro de aragem, por vezes retrocedendo, por força de correntes contrárias, até imediações da ponta da Sinagoga. Certo dia de grande e prolongada calmaria, um falucho quase que arribava à praia, impelido pelas correntes, tendo sido necessária a força de remos para impedir o seu encalhe.
O mar é um regaço a um tempo atractivo e desafiador. Junto às pedras onde as ondas se quebravam, apanhavam-se com facilidade pequenas moreias com uma linha e um simples anzol improvisado, passatempo proveitoso para o estômago a que assisti na companhia de um rapaz mais velho.
Outras tantas sensações preencheram o meu imaginário de criança em S. Antão, na altura virgem e ávida de descobertas e revelações. Foi essa vivência que me inculcou os primeiros sintomas de um sentimento telúrico que viria a tanger toda a plenitude do meu ser. O que a minha ilha natal não me tinha ainda proporcionado ofereceu-mo a ilha vizinha no deslumbre da sua cosmogonia, com a admirável compleição megalítica das suas fragas abruptas e a generosidade do seu úbere materno jorrando delícias em recantos de suprema beleza. E tal foi a dádiva que nunca a deixei por mãos alheias, ciente de que eu e ela somos feitos do mesmo barro amassado por uma qualquer divindade. É claro que o sentimento místico, entre o espanto e o embevecimento, com que encerro esta narrativa, é o resultado do acúmulo de impressões colhidas em visitas posteriores, mas a verdade é que tudo começou com a inocência pura dos meus 6 anos de idade.
Tomar, 11 de Novembro de 2011
(1) Lugar antigamente muito usado para banhos de mar, como ainda hoje se usa, embora talvez menos. O nome se deve ao facto de ter sido sepultada no lugar, no século XVIII, uma inglesa falecida a bordo de um navio inglês que passava perto da ilha. Lembre-se de que na ilha não existia ainda nenhuma comunidade humana propriamente dita.(2) Nome que se dava, ou ainda se dá, em S. Antão, ao peixe da espécie cavala.
(3) Um pequeno navio com uma abertura central em que entra um homem para o movimentar como se navegasse.
(4) Nunca me esqueci do nome do pároco porque era amigo da minha avó e foi sendo referido ao longo dos tempos.
Raro é o sanvicentino que não tem uma costela santantonense e raríssimo (1) é aquele que nunca foi à ilha vizinha de Januàrio, dos Duartes Silva e de tantos outros ilustres conterrâneos que brilharam e brilham não só no arquipélago como por este mundo fora. Com a odisseia do Adriano (não falo do Duarte Silva mas do Miranda Lima) faço mais uma vagem à ilha da minha avó materna de que guardo as mais belas lembranças de momentos vividos com os meus primos da Janela e de viagens feitas a outros lugares da bela ilha de Santo Antão. Não tenho palavras para enaltecer a gentileza das gentes dessa ilha e não tenho adjectivos mais qualificativos para agradecer o autor destas linhas, sem esquecer o cabo-verdiano de adopção que é Djack de Capitania, um nosso amigo sincero a quem dei (só eu por enquanto) o titulo Cidadão de Honra do Mindelo via Praia de Bote, emblemático lugar que ele tão bem sabe engrandecer. Avé, meus Amigos
ResponderEliminarEncontrei hoje à tarde, em rotineira visita ao médico, o meu amigo Viriato de Barros, professor, diplomata e escritor bravense (nasceu em Nova Sintra) e também foguense e sanvicentino de gema, pois reúne nos seus gostos e idiossincrasia cabo-verdiana esta trindade saborosa de ilhas.
ResponderEliminarDepois dos iniciais e efusivos cumprimentos, a conversa obviamente derivou para assuntos ilhéus e em minutos já estávamos armados em basofos mindelenses (era inevitável!).
Contou-me ele então que quando um santiaguense começa a gozar com pessoal da nossa ilha, São Vicente, por não termos interior (Soncent é picnim, ca tem interior), o mnine budzóde de nôs terra lhe diz de imediato: «Nôs tem interior, sim senhor, é Santantom…»
Daí se vê que estas duas ilhas, condenadas a viverem juntas para sempre, se dão quase como Deus com os anjos e que o horroroso Mar de Canal, mais que dividi-las, de facto as une com os laços de um afecto indestrutível.
Ao Adriano, o agradecimento do PRAIA DE BOTE, por mais um belo texto, e ao Val, um braça mindelense, pelas suas sempre simpáticas palavras.
Djack
(Este acrescento diz respeito ao meu comentário anterior).
ResponderEliminar(1) Digo raríssimo porque na última viagem de férias a S.Vicente, encontrei na Craca uma senhora de uns 60 anos de idade com quem invoquei figuras típicas dessa Rua que ela conheceu ou de quem ouviu falar, mostrando-me com precisão as suas casas. A minha satisfação por falar dessa gente toda era imensa tanto mais que ela me disse ter ouvido falar dos meus avós materno, mostrando-me a casa onde viveram antes da morte do meu avô. Tudo certinho. Mas algo havia de me deixar estupefacto e foi quando me disse que não conhecia Santo Antão, acrescentado que nem conhecia Chã de Alecrim. Vejam só !!!
Vejo com imensa satisfação o que aqui se diz de pessoa que conheci no liceu Gil Eanes.
ResponderEliminarViriato de Barros. Fomos condiscipulos durante um ano e nunca mais esqueci do moço aprumado, muito correcto, por quem tinha admiração.
Procurava-o e tinha sempre um pretexto para o procurar para conversas nos intervalos pois não se ofendia das brincadeiras às quais podia até participar.
Hoje ouço este diplomata falar de S.Vicente, sem qualquer animosidade na moda contra a ilha onde fez parte dos estudos liceais, como se ali tivesse nascido e vivido largos anos. Ê que ele aceitava e participava nas brincadeiras dos "mnis d'Soncente buzode" que, afinal, era quase sempre para se divertir. Faz pouco soube que somos aderentes: um primo (Pereira Antunes) meu foi casado com uma Barros da sua família
Um brachina rije. Viriato
Valdemar Pereira