quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

[0168] Novo texto de Zito Azevedo. Proximamente, poema de Adriano Miranda Lima

BRANDY v.s.o.p.

Zito Azevedo
Corria para aí o ano de 1953 e o Rádio Clube Mindelo, que funcionava nos dois andares superiores do ultimo prédio da Rua de Lisboa, mesmo em frente ao, então, Palácio do Governo (hoje, Palácio do Povo), organizava um dos seus famosos bailes com orquestra, não me lembro se era o Baile da Pinhata, se era o Baile das Chitas. Só sei que estava animado, como sempre acontecia naquelas organizações do amigo José Pedro Afonso, o primeiro amigo que me calhou com três nomes próprios. Eu, passava as horas a tirar um pequeno espelho do bolso para controlar o estado do meu laço de gravata, pois havia, nessa noite, dois concursos: um para o melhor nó de gravata, para os homens, e outro, para a mais bela flor artificial, para as senhoras.

Reunido o júri, foi deliberado que o Zito Azevedo (que era eu) vencia o concurso do melhor nó de gravata e a menina Maria do Carmo, mais conhecida por Maiúca, vencia o concurso das flores. Não me lembro qual era o prémio mas o simples facto de os dois vencedores terem que dançar um com o outro, já era prémio suficiente para mim pois a menina da belíssima rosa que uma tia lhe havia enviado dos “States” já há algum tempo que me vinha despertando os instintos em fugazes olhares de esguelha naquelas intermináveis voltas na Praça Nova. Mas, encurtando razões, o que é certo é que naquela noite de baile no RCM eu acabara de ter um encontro com o destino, conhecendo a mulher com quem, há 54 anos, partilho a minha vida.

 Algum tempo mais tarde, depois de resolvermos que queríamos dar o passo seguinte, era mister que eu pensasse em dar o corpo ao manifesto. Foi quando me confrontei com uma notícia de que o Governo de Angola queria recrutar em Cabo Verde elementos para o seu Quadro Administrativo, na categoria de Aspirantes. Lá fui de abalada à Praia, prestar umas provas de conhecimentos gerais e físicas sem qualquer tipo de dificuldades, de tal forma que, duas ou três semanas mais tarde fui notificado de que tinha sido aprovado, eu e mais uns tantos amigos e ex-colegas do Liceu Gil Eanes. Lá teria que voltar à Praia, para oficializar a situação e receber guia-de-marcha para Angola…De armas a bagagens rumei à Brava para me despedir da minha futura noiva e esposa, vi a vida mal parada quando, a caminho de Santiago, desembarquei no Fogo abandonando um “Novas de Alegria” demasiado dançarino para o meu gosto, consegui, quase por milagre, viajar, de avião, para a Praia, quase me afoguei nas águas do porto quando buscava meu navio para S. Vicente e a calema inundou a casca de noz que tio Polu tinha colocado à minha disposição por o tráfego profissional estar suspenso, dei de caras com meu pai no aeroporto da Praia e na viagem para S. Vicente ainda houve tempo para uma breve passagem pelo Sal, para reparar um dos tirantes das asas do “Dragon Rapid”. Depois de ter perdido o mesmo navio duas vezes em 24 horas, uma vez na Praia, outra no Porto Grande, lá consegui, com outros amigos, lugar no cargueiro “Ganda” onde, finalmente, me encontrava, três anos depois daquele célebre baile, no Rádio Clube Mindelo, de tão boa memória! Parecia a vida do Tim-Tim em 48 horas…

O Dick Ferro, o Adriano Lima e eu, fomos acordados, subitamente, pela sineta que, insistentemente, chamava os passageiros para o pequeno-almoço. A primeira impressão foi de um certo pânico, pois não se via nadinha. Foram necessários alguns segundos para nos recordarmos que estávamos num camarote interior, onde a luz do sol não tinha acesso e onde, segundo a judiciosa constatação da noite anterior, era tão escuro que se podia dormir de olhos abertos… Tinha começado a rotina que nos haveria de acompanhar nos próximos quatro ou cinco dias, dependendo do estado do mar e esta era a minha primeira “grande” viagem desde que, treze anos antes, tinha partido de Lisboa para o Mindelo, S. Vicente de Cabo Verde.

A vida a bordo de um navio no alto mar, tem um sabor especial em que as dimensões do espaço imenso que nos rodeia nos produz uma sensação de isolamento e solidão tão incoerente quanto é certo que nos encontramos rodeados de gente e de ruídos que percorrem os nossos sentidos como um filme, sempre o mesmo filme, visto e revisto, hora após hora, dia após dia… O nosso relógio orgânico vai-se adaptando a novas realidades, recuperamos o equilíbrio sincronizando os nossos movimentos com as oscilações do grande navio e, sobretudo, sentimos uma certa tendência para engordar. Efectivamente, uma parte substancial da vida a bordo de um navio de longo curso é passada… a comer! São, normalmente, quatro refeições: pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar e começa-se, logo ao pequeno-almoço, a comer de garfo, além dos habituais pão, manteiga, café, chá, bolachas, etc. É que, segundo dizem, o ar do mar abre o apetite…


Talvez por deferência institucional, nós os três fomos convidados para almoçar à mesa do comandante do navio, onde também tinham assento os quatro oficiais de bordo, um major reformado que vinha de Luanda e uma senhora a quem, que me lembre, apenas ouvi dizer “bom-dia”, “boa-tarde” e “boa-noite”. Findo o repasto, o comandante pediu licença para acender o primeiro dos dois charutos que fumava por dia, enquanto se deliciava com uma dose generosa de “cognac” cujo aroma se misturava, de forma muito subtil com o do café de Timor que era exclusivo daquela mesa. O nosso anfitrião não se cansava de tecer elogios ao “cognac” que, segundo confessava, não conseguia dispensar depois das principais refeições do dia, tal como o charuto. E explicava que se tratava de um “brandy” de alta qualidade e que, por isso, se designava por v.s.o.p. que significa Very Special Old Pale ou seja, um perfeito Reserva do melhor “Napoleon” que ele conhecia…Foi, então, que o Dick Ferro teve a frase de que, dias mais tarde, se haveria de arrepender até às lágrimas. Disse: “Isso, senhor Capitão, é porque o senhor nunca provou um bom grogue de Santo Antão!”. Levantou-se e saiu, disparado, para voltar dois minutos mais tarde com uma garrafa que acabava de libertar do papel pardo em que vinha embrulhada. Era uma bem conhecida garrafa de “whisky” que conservava o rótulo negro do “Johnny Walker”. Exteriorizando um entusiasmo que eu lhe desconhecia, o Dick tentava destacar um papelinho preso à garrafa com fita-cola, (mais tarde vim a saber que tinha o nome de um familiar residente em Lisboa) enquanto explicava que, segundo constava, os ingleses que trabalhavam em S. Vicente na estação do cabo submarino da Cable & Wireless, a que todos chamávamos de Telégrafo, recebiam o “whisky” da Escócia em pequenos barris de madeira de carvalho, de 50 litros. Em S. Vicente era “destemperado” até se obter a graduação oficial e engarrafado, apenas para consumo do pessoal da Companhia. Ora, os produtores da melhor aguardente de Santo Antão, sabendo muito bem que o carvalho era uma madeira óptima para envelhecer destilados, compravam aqueles barris que, ainda por cima vinham “bêbedos” de “whisky”, e neles guardavam as suas melhores “colheitas” por anos, obtendo autênticos néctares de sabor e aroma inigualáveis… Um “rum” melhor do que muitos mundialmente célebres como os da Jamaica e de Cuba.  Com tanta euforia o Dick já suava enquanto o comandante, que já ia no seu segundo “brandy v.s.o.p.” se afirmava pronto a experimentar o grogue especial do Dick Ferro, no dia seguinte, quando não tivesse o palato adormecido pelo distinto sabor do Napoleon...


No dia seguinte, ao almoço, não tivemos o prazer da companhia do Comandante que, segundo o telegrafista, estava um pouco febril. Pensei logo que devia ser do “calor” do “cognac” que, por ausência do anfitrião, também parecia indisponível e não deu as caras sequer. O telegrafista, para além de um tanto comprometido pela ausência do seu chefe, parecia cansado e eu os meus amigos não deixamos de sentir uma carta pena do homem – afinal, tínhamo-lo desalojado do seu camarote para podermos usufruir de instalações similares a uma primeira classe, já que o navio não tinha segunda, a que tínhamos direito por inerência de funções – e nem sequer sabíamos como é que ele estava acomodado.

Ao jantar, o Capitão da nave parecia fino que nem um pêro, barbeado de fresco e impecável na sua farda branca, brancura “Omo”, decerto e, segundo dizia, em grande expectativa de que a refeição terminasse para provar “aquela maravilha envelhecida em barris de “whisky”. Cá com os meus botões, eu pensava que no dia seguinte ao almoço o Comandante iria primar, de novo, pela ausência…E já não falo do pequeno-almoço porque, esse, tomava-o, sempre, nos seus aposentos. Enfim, após uma primeira baforada do robusto charuto, levou ao nariz o cálice de meio-cristal, meio de grogue, inspirou longamente, de olhos semicerrados, fez o liquido âmbar rodar dentro do cálice para acentuar mais o aroma e levou-o aos lábios entreabertos sorvendo, quase que com receio, uma lágrima que o obrigou a esbugalhar os olhos e esboçar um sorriso de deleite quase sensual a que se seguiu o veredicto que haveria de fazer do Dick o mais feliz e o mais infeliz dos cabo-verdianos de Santo Antão: “Isto, meus amigos, é uma bomba!!!”


E, claro, os bombardeamentos que se seguiram, até ao fim da nossa viagem colocaram em sério perigo a integridade moral do amigo Dick, que tinha recebido do pai quatro garrafas do seu melhor grogue de sempre para levar pessoas de família residentes na Metrópole. Só que, as sucessivas rodadas da “bomba” que o Comandante não se cansava de elogiar a ponto de dizer que, como se costuma afirmar a respeito de Nápoles, ele já podia morrer pois tivera o privilégio de ter beber a melhor aguardente, o melhor “brandy”, o melhor “cognac” que jamais alguém produzira sobre a terra, tudo, consubstanciado naquele divino grogue de Santo Antão, a melhor colheita de sempre da marca Ferro, iam consumindo o “stock” a olhos vistos: primeiro, foi a garrafa do tio, depois a do primo, depois a do cunhado e só a última, que era para o irmão ainda estava intacta… Estava pois, na véspera da nossa chegada a Lisboa, o que aconteceria às primeiras horas da manhã seguinte, o nosso Capitão resolveu proporcionar-nos e aos restantes passageiros da primeira classe, uma ceia de despedida, que foi servida com alguns requintes por volta das 10,30 da noite. Teve direito a vinho espumante, carnes frias, tábua de queijos, saladas e, imagine-se, pastéis de nata. Estava tudo na maior, quando o Comandante, de forma audível a todo o salão, inquiriu: “Então, senhor Aspirante Henrique Ferro, não há lá uma pinguinha do melhor “brandy” do mundo para a despedida?” Como quem caminhasse para a forca, o Dick lá foi ao camarote buscar a ultima garrafa da relíquia de seu pai. Então, tive uma ideia luminosa e, à socapa, segredei ao Dick que deixasse lá no camarote, um bom bocado do grogue, no copo da casa de banho, que depois lhe explicaria a finalidade.

Era já madrugada quando nos recolhemos para refazer as malas e pouco mais. E, então, expliquei ao Dick para o que era o grogue que tinha sido guardado: como o pai dele, decerto, teria avisado as pessoas a quem mandava os presentes, o portador teria que ter uma boa explicação para a não entrega das mesmas. Era fácil: o Dick diria que devido a mau manuseamento da bagagem, aquando do embarque em S. Vicente, a sua mala tinha caído e as garrafas haviam-se partido todas, encharcando a roupa de grogue… Nada mais eficiente.

Dois dias mais tarde, encontrámo-nos todos, conforme o combinado, no Pic-Nic, em pleno Rossio. Perguntado sobre o assunto das garrafas de grogue, o Dick, satisfeito, informou que tudo tinha corrido bem. Aliás, o pai, que era homem precavido e, obviamente, muito vivido, na presunção de que pudesse haver algum acidente com as garrafas que o Dick trazia na mala de mão, tinha mandado colocar umas tantas na mala de porão. “Just in case!”...

Zito Azevedo

Queluz, 21 de Dezembro de 2011

4 comentários:

  1. Ah-ah-ah. Mais uma divertida história saída da pena do Zito Azevedo. Para quem gosta das coisas do mar, sabe bem ler os episódios da vida a bordo. E para quem aprecia um bom grogue de Santo Antão envelhecido em barril de carvalho, sabe bem saboreá-lo através do experimentado paladar do comandante do navio,pessoa que em matéria de divinas libações parecia talhado, conforme se deduz do relato, para não deixar qualquer crédito por mãos alheias.
    Desconfio que o companheiro de viagem Adriano Lima (Adriano Oliveira Lima, de seu nome completo) é o mesmo que é meu parente pelo lado paterno, e que nessa viagem ia frequentar o curso de engenahria civil. O Adriano é primo-direito do meu avô paterno.

    ResponderEliminar
  2. Obrigado, amigo Adriano! Esclareço que o Adriano Brito Lima (nominha "Migo") foi meu condiscipulo no Liceu Gil Eanes e também demandou Angola na mesma qualidade de Administrativo. Não tornei a ter notícias dele, mas ainda tenho um historinha com ele... Deve tratar-se de outro ramo da família, julgo eu.
    Zito Azevedo

    ResponderEliminar
  3. Zito, nem sabes quantas vezes o meu pai foi solicitado para interceder junto do Club da Western para arranjar umas pipasinhas. Eram pessoas de Santo Antão que o procuravam e ele ia apresentar o pedido.
    Havia alguns interessados mas nem todos eram contemplados e, quando isto sucedia, la aparecia em casa uma garrafinha do nectar santantonense que eu so via. Mnine ca ta bibé.
    Belo relato.
    Um braça
    Valdemar

    ResponderEliminar
  4. Olá, Valdemar...Calculo que teu pai tenha sentido algumas dificuldades em agradar a gregos e troianos, nessa coisa dos barris. Calculo, no entanto, que o retorno, em geito de agradecimentos, tenha sido volumoso, em quantidades e em qualidade...Acredita que estas coisas, ainda hoje, me provocam profunda nostalgia e só lamento que não tenhamos aqui mais gente a conversar connosco sobre as coisas do nosso passado comum, pequenos filmes da nossa terra, pedacinhos de uma memória que tende a ser cada vez mais curta e que conviria partilhar para que se não perdesse, de todo...Já me começo a interrogar se vale a pena!
    Abraço fraterno, neste dia das famílias: as nossas e as globais!
    Zito Azevedo

    ResponderEliminar

Torne este blogue mais vivo: coloque o seu comentário.