A SITUAÇÃO E O ESTATUTO DA LÍNGUA PORTUGUESA EM CABO VERDE: a regionalização e o debate sobre o crioulo (2.ª parte)
José Fortes Lopes
Luís de Camões |
Mostrei que é um direito inquestionável e inalienável o de os habitantes de cada ilha exprimirem-se no seu crioulo materno, que negar este facto poderá conduzir a uma situação de consequências imprevisíveis e sempre perigosas, configurando um acto de violência cometido pelo Estado a unificação dos crioulos por via legislativa e através de “engenharia linguística” e a escolha do crioulo padrão por motivos meramente políticos ou eleitoralistas. Em suma, esta aventura, a concretizar-se no seu pleno, seria a “facies” reveladora de uma política abusiva e autoritária de matriz claramente centralizadora. Tendo em conta estas premissas, julgo que é legítimo que o Estado de Cabo Verde reconheça a diversidade linguística do país e acate as reivindicações dos seus habitantes, perante uma realidade inquestionável: a existência de crioulos de Cabo Verde e o carácter regional do país.
Poeta José Luís Tavares (CV) |
Com efeito, bem mais perigoso é ainda o risco de uma alienação ou de um cada vez maior afastamento de Cabo Verde da língua portuguesa. Como anotei, num país já por si mal falante desta língua, o mesmo equivaleria a votar a maioria da população a uma situação real de “indigenato”, com pessoas incapazes de se exprimirem correctamente em nenhuma língua, ao passo que as elites minoritárias continuarão cada vez mais a ter acesso e contacto constante com o Português, a única língua estruturada e com uma riqueza léxica suficiente (pelo menos na presente conjuntura linguística), capaz de proporcionar actualmente produção intelectual, literária, científica e um pensamento abstracto estruturado, para além de permitir e facilitar a ponte para as línguas dominantes como o francês, o inglês ou o espanhol. Por motivos diversos, induziu-se na sociedade a sensação, se não o medo, de que usar o português como língua corrente seria como cometer um crime de lesa-língua e lesa-pátria. Na questão do português é importante denunciar o enorme logro em que os cabo-verdianos podem cair, mercê de desinformação ou de uma pedagogia baseada num nacionalismo bacoco, uma vez que não passa pela cabeça de ninguém ser contra a dignificação do crioulo ou negar o seu lugar na matriz identitária das nossas ilhas. Mas quem poderia ser contra os crioulos falados no arquipélago de Cabo Verde? Haverá inimigos do crioulo ou de Cabo Verde, como pretendem os Fundamentalistas? Esta visão maniqueísta de um mundo dividido entre bons e maus não é boa para um debate que se quer sereno.
Poeta Jorge Barbosa (CV) |
É neste contexto do debate sobre o crioulo que em Novembro de 2011 o Primeiro-Ministro (PM) de Cabo Verde, José Maria Neves, “fez história”, ao proferir um discurso perante a 66ª plenária da Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua “língua materna”, ou seja, no seu “crioulo materno”. Os ditos Fundamentalistas só podem ter-se regozijado com esse gesto na medida em que poderão ter visto nele um sinal positivo para a realização definitiva dos anseios: a oficialização do “crioulo” e o fim aparente do domínio do português como língua de expressão oficial em Cabo Verde. Esse acontecimento é para eles, sem dúvida, um “marco histórico”. Todavia, não deixou, certamente, de constituir uma forte mensagem política “urbi et orbi” para destinatários bem definidos: a comunidade lusófona e “certos crioulos” (como se diz em crioulo de S. Vicente, “quêls que sons”). Estaria o PM com esse discurso a anunciar o nascimento de um “novo” Cabo Verde, o seu, na refundação linguística da sua visão fundamentalista?; terá ele discursado no dito crioulo oficial ou numa variante do crioulo? Ou será que o discurso não passou de “fogo de vista ”, de um acto de pura propaganda para “crioulo ver”, ou mesmo um recado para dentro do seu país? Estas perguntas são legítimas para os cabo-verdianos e merecem esclarecimentos. Como ninguém sabe ou percebe em que consiste e para que serve a oficialização do crioulo, desconhecendo-se o que está a passar-se nos bastidores deste processo, a dúvida paira no ar. Mas não deixa de ser intrigante que num preciso momento em que se fala do reforço da língua portuguesa no mundo, nomeadamente na área diplomática, o PM apareça com semelhante tirada pouco diplomática. Este discurso deverá ter apanhado de surpresa os diplomatas da lusofonia presentes nas Nações Unidas, mas também poderá ter sido visto como simples exibicionismo pacóvio não merecedor de atenção.
Escritor Baltasar Lopes (CV) |
Escritor Germano Almeida (CV) |
Constitui na verdade, e sem dúvida, um problema gravíssimo, um impedimento ao desenvolvimento da nossa terra, o péssimo domínio pelos cabo-verdianos do português (e talvez de outras línguas), o que pode ser imputado a um deficiente sistema de ensino (colonial e nacional, ou ambos). Todavia, se antes da independência podia-se considerar que pessoas minimamente escolarizadas e as elites falavam correntemente o português, é um facto evidente que com a independência o domínio desta língua veio a degradar-se continuamente, chegando a uma situação crítica. Aqui deve-se destacar o papel das políticas contraditórias. É possível que se esteja a pagar os excessos de um radicalismo assistido no pós 25 de Abril, e que durou tempo suficiente para produzir efeitos maléficos. Ninguém saberá ao certo. Mas outra coisa não era de esperar quando, ao longo de 35 anos, se olhou de soslaio para o português, encarando-o como língua opressora de dominação colonial, e se continuou, no entanto, a usá-lo em todos os actos oficiais, ao mesmo tempo que se elegia o crioulo como o instrumento, por excelência, de libertação de um “povo dominado linguisticamente”, mas que paradoxalmente continua oprimido linguisticamente pelos seus “libertadores”. Esta ambivalência, tendo durado todo este tempo, não podia ter conduzido senão a resultados catastróficos. É triste ter de reconhecer que Cabo Verde é hoje dos países dos PALOP onde o desempenho da língua portuguesa é o pior de todos, comparando populações da mesma categoria socioprofissional. É um problema cuja análise e resolução não podem ser negligenciadas, pois as implicações serão muito sérias no futuro do país.
Em próximo artigo intitulado “A importância da língua nos desafios do mundo global”, concluiremos as nossas reflexões sobre este tema.
De novo, assistimos a uma reflexão alicerçada num principio de equidade naquilo que poderia chamar-se um fenómeno de coabitação linguistica. O articulista, sobretudo, ataca o problema de uma forma descomplexada e os seus argumentos são tão clarividentes como é doentio o fundamentalismo contra uma lingua que deveria ser dfendida como capaz de unir, sem complexos, sem ódios, como uma mais valia no desenvolvimento intelectual dos povos e não, apenas, de escassas dúzias de privilegiados...
ResponderEliminarRegisto, como nota à margem, que ainda hoje, com 55 anos de matrimónio, eu e minha mulher aínda costumanos manter diálogos em crioulo...
Aínda está todo o mundo de férias ou não há por aí ninguem interessado em abordar este tema? Ele é reconhecidamente sensível, mas tem um interesse coletivo tal
ResponderEliminarque deveria empurrar as "cabeças pensantes" disponiveis para a discussão...Ou será políticamente incorrectoo?
Toda a razão está na posse do autor deste excelente artigo, assim como do comentador Zito Azevedo. A língua portuguesa é uma herança, porventura a mais valiosa, e por isso imperdível, que nos deixaram os portugueses, os que povoaram ((não colonizaram) as ilhas de Cabo Verde e estão na origem do seu povo. Querer negar esta realidade é o mesmo que querer tapar o sol com uma peneira, é como renegar uma essência indisfarçável que flue no nosso sangue e na nossa alma.
ResponderEliminarO Zito disse tudo quando se referiu às conversas em crioulo que de vez em quando afloram instantaneamente ao seu espírito e ao da sua esposa, mesmo depois de 55 anos, desde que deixaram Cabo Verde.
Eu não intervim mais cedo porque o fiz noutro espaço online.