sábado, 2 de março de 2013

[0376] Artigo do "Terra Nova" de contributos para a história da educação em Cabo Verde - Parte II de II - VER POST ANTERIOR



Crónica de Janeiro.2013

SUBSÍDIOS PARA A HISTÓRIA DO ENSINO EM CABO VERDE - 2

A república de 1910 ainda pensou num liceu para Cabo Verde. O facto, se bem que auspicioso, alarmou os habitantes de São Nicolau que supuseram que devido a esse previsto acontecimento o Seminário-Liceu poderia ser suprimido. Por isso, a 21 de Janeiro de 1911, um vasto número de munícipes apresentou à Comissão Municipal uma petição para esta a enviar ao Governo da província e por consequência ao Governo central, no sentido de se evitar semelhante desastre ou que pelo menos o Liceu fosse instalado no edifício do Seminário – ou que a construir-se edifício novo este ficasse na ilha (1).

Senador Vera-Cruz
A mesma situação foi invocada pouco depois de o senador Augusto Vera-Cruz ter delineado um projecto publicado em Diário do Governo em meados de 1913 para a criação de um liceu para Cabo Verde (2). Logo no artigo 1.º profetizava-se a extinção das chamadas “escolas de aprendizagem” e do seminário de São Nicolau, abrindo-se na mesma ilha um liceu como os que se haviam criado pelo decreto de 23 de Agosto de 1906, em Goa e Macau. E o curso teria cinco anos, englobando as seguintes disciplinas: Literatura e Língua portuguesa, Língua francesa, Língua inglesa, Língua latina, Geografia e História, Matemática e Geometria, História Natural, Química e Física, Desenho e Escrituração Comercial e Contabilidade, mais ou menos o habitual no sistema curricular do ensino liceal português da época. O jornal que dava a notícia via na novidade de um liceu para São Nicolau diversas vantagens como aproveitarem-se economicamente os professores do seminário, já existir edifício apropriado a esse tipo de ensino, haver tradição escolar na ilha e a vida ser barata e o clima benigno. Mas, segundo o mesmo periódico, também haveria inconvenientes. Um deles, de não somenos importância, era ser difícil recrutar professores que fossem funcionários do Estado, exteriores à vida eclesiástica. Por outro lado, o articulista conjecturava futuras complicações com o cabido relativamente à posse do seminário e divergências entre professores laicos e religiosos na orientação do ensino. Considerava ainda, com razão, que, ao contrário da preconizada “extinção das escolas de aprendizagem, do ensino profissional de operários de construção e respectiva verba de material de expediente” não se devia abolir pura e simplesmente o ensino profissional cabo-verdiano. E avançava com algumas medidas que possibilitariam encontrar financiamento para o desejado liceu: a verba atribuída ao seminário, a redução do vencimento do Capitão dos Portos para 250$000 réis mensais (o qual ganhava então mais que o secretário geral, o inspector da fazenda, o chefe dos serviços de saúde, o director das obras públicas ou o administrador do círculo aduaneiro, embora com muito menores responsabilidades); a redução do vencimento do delegado marítimo da Praia para 175$000, por motivos semelhantes; e uma remodelação dos serviços militares que consistiria na abolição de unidades consideradas inúteis como a secção de artilharia e o pelotão de infantaria da Praia (!). Mas, mais importante que isso, o jornal, embora ressalvando o grande interesse da medida, via uma grande lacuna no projecto do senador: ele não estabelecia a equivalência entre o 5.º ano dos liceus da Metrópole com o curso que se pretendia criar na colónia. E daí poderiam nascer iniquidades como a de um concorrente a um cargo público natural da metrópole poder superar outro das ilhas com as mesmas habilitações. Vemos aqui, na filosofia que subjaz a estas últimas considerações do articulista anónimo de O Futuro de Cabo Verde, não só um apurado sentido de justiça como um certo desejo de afirmação local numa colónia que se queria culta e preparada, em pé de igualdade com a mãe pátria. Como aliás já então de facto merecia estar…

Entretanto, outros sinais da imprensa, embora sem o nomearem directamente, convergiam para o desejo de criação de um liceu em Cabo Verde, fosse ele onde fosse...  Por exemplo, nesta mesma altura noticiava-se que alguns rapazes da Praia “que, com bastante sacrifício, conseguiram habilitar-se para o 1.º ano de Português, frequentando escolas particulares – devidamente autorizadas – correm o risco de perder o ano, ou de se sujeitarem a maiores sacrifícios pecuniários – impossíveis a muitos deles – para irem a São Nicolau, ao seminário-liceu fazer o respectivo exame, que, por falta de júri nomeado, não podem fazer aqui na Praia.” Sempre a questão da insularidade a cortar os desejos de ascensão educativa do povo – o que se compreende e ainda hoje se mantém em diversos aspectos que não tanto neste particular da educação.

Mas também se apuravam injustiças como a de através do Decreto-Lei de 17 de Agosto de 1912 ter sido diminuído pela Repartição Superior da Fazenda o vencimento dos párocos que eram professores primários. Insatisfeitos, uns acabaram por pedir a demissão. Contudo outros, mais argutos, reclamaram para o ministério das Colónias, invocando direitos adquiridos – tendo sido atendida a petição. Outra norma do mesmo decreto reduzia a dois terços os vencimentos dos professores interinos que assim ficavam a ganhar tanto ou menos que os guardas da polícia cívica ou rural… Para além destas afrontas aos docentes (as coisas não mudaram muito desde aí), o dito decreto possibilitava ainda interpretações que permitiam tratamento diferenciado para professores não diplomados embora providos em lugares por meio de concurso realizado na Metrópole ou nas ilhas: para o concurso da Metrópole, vencimento por inteiro e subsídio de renda de casa e para o de Cabo Verde… dois terços do vencimento daquele.

Apesar dos atropelos, injustiças e malfeitorias governamentais de toda a espécie que temos vindo a divulgar, o ensino ia progredindo no arquipélago, na medida do possível. A Folha de S. Vicente de O Futuro de Cabo Verde de 31 de Julho de 1913 assim o registava (3). A 14 haviam começado os exames do curso primário superior, supervisionados por um júri de professores mas servindo de vogal para os exames de Matemática, Português, Francês e Inglês o 1.º tenente da Armada Ernesto Lencastre e para os de Escrituração Comercial Licínio Marinho Alves. Dizia-se que os exames haviam sido “lisonjeiros para mestres e discípulos”. E outros exames, estes do curso de pilotos de São Vicente se realizaram entre 23 e 26 do mesmo mês, curso esse regido pelo Capitão dos Portos, Borja Araújo. Em primeiro lugar ficou António Pinto Neto, com 15 valores, tendo havido apenas uma reprovação.

A 14 de Agosto era vez de o senador Vera Cruz responder aos comentários ao projecto que apresentara no Senado, em Lisboa. E dizia que lendo-os facilmente se podia verificar que as vantagens superavam os inconvenientes. Para além disso, tentando desfazer dúvidas que pudesse haver, afirmava entre outras coisas considerar o ensino profissional indispensável ao território e que a sua supressão seria temporária para assim se poder dotar a província o mais rapidamente possível com o liceu, até porque “a nova concessão carvoeira (4)” e a prevista redução dos vencimentos do pessoal das capitanias dos portos (5) permitiriam condições para um ensino profissional “em bases convenientes, de modo a traduzir-se em factor essencial e funcionalmente útil ao desenvolvimento moral e material da colónia”. Mas ensino profissional, técnico e comercial a sério e de grande qualidade, só o vieram a ter Santiago e a ilha vicentina pelo Decreto-Lei 28114 de 26 de Outubro de 1937, emitido pelo ministério das Colónias, que reorganizava os quadros privativos dos liceus coloniais e criava uma Escola Prática de Agricultura na primeira e uma Escola Industrial e Comercial na do Monte Cara – que liceu já o havia desde 1917, por obra e graça do senador Vera-Cruz e na sua própria casa que cedeu para o efeito.

Notas:

1. O Futuro de Cabo Verde, 21.08.1913, p. 2.
2. O Futuro de Cabo Verde, 03.07.1913, p. 1
3. P. 8.
4. Concessão Blandy, largamente desejada pelos sãovicentinos, de que falaremos noutra altura.
5. Projecto do ministro das Colónias.

5 comentários:

  1. Parabéns ao amigo Djack por este (e outros) trabalhos a que meteu ombros, desenhando com notável clareza e profusão de pormenores caitulos imortantes da História de S.Vicente. A criação do Liceu, em 1917, foi um marco cuja importancia parece, por vezes, ser subalternizada..Aliás, sem esse instrumento, nessa altura, pergunto-me se o panorama intelectual seria o mesmo, hoje em dia!
    Um abraço de gilista muito orgulhoso!

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    1. Caro Zito,

      Faz-se o que se pode. Aqui a fábrica de escrita não para nunca, em parte substancial virada para as coisas das ilhas da morabeza. Nós que somos filhos adoptivos da do Monte Cara, ainda temos mais obrigação de dar o nosso saber e labor como contrapartida ao que ela nos ofereceu.

      Braça com aparo (ou tecla) em riste,
      Djack

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  2. Este senhor Senador Vera-Cruz era deveras um grande homem, 'Chapeau' como dizem os franceses. Esta é uma iniciativa interessante, tirar das estantes e prateleiras empoeiradas, da história recente de S. Vicente/Cabo Verde, nomes ilustres , prova que o país tem produzido homens de valor e carácter , e que talvez haja ainda uma luz ao fundo do país. Bravo Saial. Recorde-se que uma iniciativa similar ocorre no blogue Esquina do Tempo do nosso amigo Brito-Semedo, que também nos vem brindando e revigorado a memória com personagens populares da sociedade civil que jogavam de grande prestígio na sociedade mindelense do sec. XX, caso do Djidjê Fortunato e de dezenas de outras pessoas. Muitos ligadas ao mundo do comércio, dos negócios do qual vivia S. Vicente, mas com na área dos desportos e lazer, da cultura etc. Só nos resta um sabor amargo na boca ao comparar com o estado actual de decadência da nossa ilha.

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  3. O que não falta a Cabo Verde são personagens interessantíssimas e dignas de exemplo. Acabo de verificar isso mais uma vez, no final de quase seis páginas biográficas que escrevi sobre Leão dos Santos Lopes, santantonense que triunfou na América. Não foi milionário mas teve uma bela vida e ajudou os patrícios sempre que pôde, deu dinheiro para o Museu dos Imigrantes, vendeu bilhetes para a carreira de Cabo Verde (a vapor), teve uma mercearia de categoria e um café famoso em Pawtucket onde era possível ouvir mornas, nos anos 40 do século XX.

    Braça mercóne,
    Djack

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  4. Belo trabalho, Joaquim. O interesse histórico é inquestionável e a narrativa é sedutora e escorreita, de modo que mereces um grande abraço de felicitações por todo o trabalho de pesquisa, organização e exposição de factos que os cabo-verdianos têm de conhecer bem e de ter sempre presentes. Numa terra desprovida de recursos, a educação era o filão a explorar e o senador Vera-Cruz merece um lugar de destaque na nossa história por ter tido a visão certa e o empenho e a pertinácia necessários. É de justiça lembrar que os governantes após a independência seguiram as pisadas do senador ao darem à educação uma alta prioridade. A mensagem de Vera-Cruz não caiu em saco roto.

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