terça-feira, 12 de março de 2013

[0390] Memórias da Italcable em São Vicente



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Crónica de Fevereiro.2013

GÉNESE E OCASO DA ITALCABLE, A COMPANHIA ITALIANA DOS CABOS TELEGRÁFICOS SUBMARINOS, EM SÃO VICENTE

Devido à sua condição de importante centro portuário, o Mindelo desde cedo esteve ligado ao mundo através do cabo submarino, grande novidade no campo das comunicações. Logo em 1874, a inglesa Western Telegraph Company amarrava na praia da Matiota, em S. Vicente, um cabo que fazia a ligação da ilha do Monte Cara à Madeira e depois ao Brasil. Pouco após, em 1886, era a vez de se fazer a conexão à África e à Europa continental. A presença de dirigentes e técnicos telegráficos britânicos na ilha ficou ali marcada até hoje, em apelidos, hábitos sociais e desportivos e até em alguma arquitectura remanescente desses tempos. Não é porém da história cabo-verdiana da WTC que esta crónica irá tratar mas sim da de uma sua concorrente posterior, a Compagnia Italiana dei Cavi Telegrafici Sottomarini, mais conhecida por Italcable.

A presença de italianos nas ilhas era já uma realidade na transição do século XIX para o seguinte, nomeadamente na área do comércio. Como António Leão Correia e Silva foca em Nos Tempos do Porto Grande do Mindelo (1), “[Uma] comunidade de comerciantes estrangeiros que chega a ter aqui algum peso é a italiana. Estimulados pelo mercado criado pelos numerosos passageiros desta nacionalidade que escalam o Mindelo a caminho de Buenos Aires, Montevideu e Santos, instalam-se na cidade mercadores transalpinos, abrindo bazares, lojas de ‘souvenires’, bares e restaurantes. Pietro Polese, Cavassa Giuseppe, Massoca Mattili, Bonucci Gaetarez (2), Frusoni são alguns dos importantes comerciantes italianos da praça do Mindelo (…) De tal modo forte foi a presença das companhias italianas no Porto Grande que animou um cidadão transalpino Giobatta Morazzo a fundar aqui um estaleiro de reparação naval na praia da Matiota (…).” A estes, juntamos nós outros, como por exemplo Giuseppe Frusoni (entre outras actividades, comerciante de coral e editor de postais ilustrados) ou Pietro Bonucci, tio materno do poeta Sérgio Frusoni (3), dono (ou sócio) da loja Bazar Central (4) e proprietário da Central Eléctrica do Mindelo ou também Pietrino Mastrodomenico di Giuseppe, natural de Castelnuovo di Conza, província de Salerno, que na Praia exportava e importava produtos entre a Europa e África. Não seria no entanto esta afinal pequena colónia de italianos a ditar a chegada da Italcable ao arquipélago, mas sim as muito maiores que se haviam estabelecido na Argentina e Brasil, para não falar da que prosperava nos Estados Unidos da América.

As instalações da Italcable na Matiota
A empresa fora fundada em 1921, pelo engenheiro electrotécnico Givanni Carosio (1876-1959), com participação financeira de italianos residentes na Argentina. Mas só em 1941 passa a designar-se por Italcable, após a fusão da Compagnia Italiana dei Cavi Telegrafici Sottomarini com a Società Italo Radio. E foi logo de início que decidiu alargar-se a Portugal. Em Abril de 1921 começaram negociações para a instalação de um cabo entre Itália e a América do Sul mas só em Novembro de 1923 um representante da Italcable foi a Lisboa pedir a autorização da passagem do cabo submarino por Cabo Verde. As autoridades portuguesas manifestaram a sua disponibilidade, desde que a estação cabo-verdiana tivesse pessoal português e que ao Governo da colónia fosse atribuída uma compensação de 5000 libras (liras?), destinadas a melhoramentos no Porto Grande (5).


E assim aconteceu, com fixação do cabo na zona da Matiota (6). Os 1783 km de cabo que ligaram Las Palmas a São Vicente foram fabricados pela empresa Pirelli e estendidos pelo navio Citá di Milano. Coube à Siemens fabricar os 2802 que uniram São Vicente a Fernando de Noronha. Contudo, só em 11 de Março de 1953 o Mindelo se ligou ao Recife, com a participação técnica do barco inglês Monarch (7). Ao longo do tempo, conforme o desenrolar de diversas circunstâncias, sucederam-se reformulações dos acordos entre as autoridades italianas e lusas e a empresa. Uma delas vem referida no Decreto-lei n.º 24.061, de 23 de Junho de 1934. Emanado da Direcção dos Serviços de Exploração Eléctrica do Ministério das Obras Públicas e Comunicações dirigido pelo Eng. Duarte Pacheco, pretendia alterar os contratos celebrados com as companhias Western Union Telegraph, Deutsche Atlantische Gesellschaft e a Compagnia Italiana dei Cavi Sottomarini, “em virtude da crise mundial que tem feito reduzir o tráfico telegráfico”. Com a Italcable, alterava-se o contrato celebrado a 7 de Julho de 1926. Assim, ficavam “autorizados os Ministérios das Obras Públicas e Comunicações e das Colónias a celebrar com a (…) Italcable um acordo alterando as taxas telegráficas de trânsito em S. Vicente de Cabo Verde, conforme o anexo respectivo junto a este decreto.” Nesse anexo, entre outras considerações favoráveis a Portugal que deveriam começar a vigorar no 1 de Julho seguinte, uma era bem eloquente: “A Companhia não poderá desamarrar qualquer cabo ou suspender os serviços de tráfego respectivos sem prévia autorização do Governo, sob pena de multa de 100.000$ a 500.00$.”…

A 21 de Maio de 1937 a Italcable solicitou a revisão do contrato de 7 de Julho de 1926 com o Governo português, “no sentido de ser dispensada do compromisso tomado para estabelecer cabos submarinos ligando directamente a ilha açoriana do Faial com S. Vicente e o Faial com Anzio (Itália), alegando que a sua rede de cabos com centro em Málaga garantia as necessidades de tráfego, em crise desde 1930. Essas conversações só foram concluídas em Outubro de 1938, tendo Portugal reconhecido que era suficiente a rede de cabos submarinos existente. Disso resultou que o novo acordo permitiu a redução das tarifas a pagar pelo público (8). Curiosamente, em 19 de Outubro de 1935, a Gazzetta Ufficiale del Regno d’Italia (9), em decreto assinado pelo ministro das Comunicações Benni e pelo das Finanças Di Revel, dava a companhia como estando autorizada a lançar e a operar um cabo entre o Faial e S. Vicente e outro entre o Faial e a Itália e mais cabos que julgasse necessários para o desempenho do seu negócio. Durante a II Guerra Mundial, todos os cabos submarinos foram cortados ou interrompidos ao norte do Equador e, portanto, a Italcable viu a actividade muito reduzida. Só no termo do conflito pôde reconstruir a sua rede de cabos transoceânica. Pelo meio, houvera despedimentos em S. Vicente, como o do escritor Manuel Lopes.

Cabo Verde, na rota do cabo submarino
Mais alguma documentação sobre a Italcable e a sua relação com Cabo Verde poderíamos referir aqui, mas como o espaço é parco, limitamo-nos ao mais crucial, a Portaria n.º 606/70 da Direcção-Geral de Obras Públicas e Comunicações do Ministério do Ultramar (10). Ali se dizia que por o Governo argentino ter encerrado as actividades da companhia no seu território, esta era forçada a fazê-lo por sua vez no Brasil e em S. Vicente, por a exploração do cabo se ter tornado economicamente inviável, encerrando em Cabo Verde devido não só à “carência de tráfego naquele referido cabo, como ainda por o mesmo se poder considerar superado”. Oficialmente, a 30 de Setembro de 1970, antes do final do contrato que se previa terminar em Abril de 1974, fechava-se um capítulo importante das comunicações em Cabo Verde (11). Também nesta área, os tempos estavam a mudar…

Notas:

[1] Ed. Centro Cultural Português, Praia-Mindelo, 1998.
[2] Segundo Fernando Frusoni, filho do poeta Sérgio Frusoni, o nome deverá ser Gaetano.
[3] Sérgio Frusoni trabalhou na Italcable, bem como o escritor Manuel Lopes e o pai do músico Manuel Tomás da Cruz, “Lela Violão”, entre muitos outros cabo-verdianos.
[4] Depois, Drogaria do Leão.
[5] A este propósito, ver dois trabalhos onde o assunto se encontra bem documentado: o paper de SILVA, Ana Paula (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa) – Portugal, Europe and Africa: a history of telegraphic networks apresentado ao encontro “Jogos de Identidade – Os engenheiros, a formação e a acção”, 8-11.Outubro.2003, Évora, Portugal (25 pp.) e a tese de GOMES, Adildo Soares – Cabo Verde e a Segunda Guerra Mundial: a importância geoestratégica do arquipélago na política externa portuguesa (1939-1945), dissertação de Mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais, Março 2011, apresentada ao Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (135 pp.)
[6] Simpaticamente, Fernando Frusoni registou para nós algumas memórias dessas instalações: “A Italcable ficava na colina por cima da Lajinha e da fábrica de gelo. Dentro da Italcable havia o escritório do chefe e a sua moradia. Penso que as de outros empregados italianos também ficavam aí. No local moravam pelo menos duas famílias: uma, a do Ugo Olivieri que casou com a Helena Pereira e outra a do António de Falco que casou com a Amélia Ferrão. Tanto o Ugo como a Amélia já faleceram. Também havia uma sala grande onde os funcionários da telegrafia trabalhavam.” Zito Azevedo (que residiu longos anos em S. Vicente) também nos referiu os mesmos dois italianos da Italcable que deixaram saudosa memória no Mindelo.
[7] In http://br.dir.groups.yahoo.com/group/grandesguerras/message/26294
[8] Diário do Governo (Portugal), 6.Outubro.1938.
[9] N.º 245. Nessa altura, como refere o documento, o capital social da Italcable era de 161.700.000 liras.
[10] Diário do Governo (Portugal), 28.Novembro.1970. Joaquim Moreira da Silva Cunha era o ministro do Ultramar.
[11] Em 1994 desparecia a Italcable, por fusão com a Telecom Italia.

3 comentários:

  1. Interessante texto sobre a Italcable.Conheci-a bem o interior porque muitas vezes, ainda rapazinho, fui convidado pelo senhor Magnani que era o director para o lanche. Ja rapaz ia muitas vezes visitar o Olivieri e o De Falco. Parabéns, Djack, por estas recordaçoes me fizeram lembrar a minha vida de menino e moço. Ciao Fernando

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  2. Tão interessante este pedaço de história da ilha de S. Vicente: o Italcable e tudo o que significou de inovação, progresso e outras valias indirectas para a ilha. Obrigado, Djack.

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  3. Belo trabalho, meu amigo...Depois de o ler lembrei-me de outro italiano que conheci...Chamava-se De Salvi e estava estacionado no Sal, creio que por causa da pista ou do Hotel segunmdo as fontes oficiais, mas que comandava uma actividade menos recomendável, que era a de fornecer de combustivel, lá para os lados de Pedra-de-Lume, alguns submarinos alemães! Era um homem enorme, que emcomendou ao pai (ourives) um anel de diamantes do tipo chuveiro que, naquele tempo, custou à volta de 25 contos...Não sei se pagou en escudos, em liras ou em marcos!

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