domingo, 26 de maio de 2013

[0468] Ofélia Ramos, a rainha das noites cabo-verdianas do Mindelo, morreu na passada quinta-feira, dia 23 de Maio



Luiz Silva
Já publicado no blogue parceiro ESQUINA DO TEMPO, este texto de Luiz Silva é agora republicado a seu pedido no PRAIA DE BOTE. Nunca é demais repetir boas e sentidas memórias sobre os que fizeram e fazem o nosso Mindelo.

Mindelo, “terra de B.Leza e de Selibana” (Jotamont) está de luto. Poderíamos, sem medo de desmentido, acrescentar também o nome de «terra de Ofélia», crioula bonita e amada pelo povo das Ilhas e costas que encantou as noites de lua cheia do Mindelo com as suas célebres noites cabo-verdianas com Cesária, Fantcha, Malaquias, Canhota, Chico Serra, Manecas Matos, Djosinha de Bernarda, Luís Morais, Frank Cavaquinho, Manuel d'Novas, sob o olhar atento dos poetas e compositores nacionais e de emigrantes ávidos de matar saudades da terra crioula e da sua cultura...

Uma mulher da diáspora cabo-verdiana que, após longa luta no estrangeiro, regressou à terra para participar no seu desenvolvimento económico e cultural. Ofélia, proprietária do Bar Calipso em Dakar e Mindelo, viveu desde a infância ligada à música. O tio Hilário, autor da morna Odji Magoado e pai do Ildo Ramos, guitarrista (este muito ligado ao Ti Goy no Lombo),  acompanhou B.Leza, na sua digressão musical a Portugal, em 1945, ao lado de Tchuff e Eddy Moreno. O irmão Djosinha Ramos, futebolista no Grémio Recreativo Castilho e um dos maiores guitarristas que passou por Dacar, onde faleceu, também marcou a história musical cabo-verdiana. A irmã Alda é também uma figura conhecida em Mindelo e na diáspora cabo-verdiana. Ofélia e os irmãos emigraram para o Senegal nos meados dos anos cinquenta, onde, a punho do seu trabalho,  aquela abriu um bar-restaurante que acolhia os patrícios recém-chegados com a música cabo-verdiana a animar o ambiente.

Ofélia Ramos
Ela nasceu e cresceu em Chã de Cemitério, onde o respeito pelas pessoas mais velhas era sagrado. O Castilho era o club de futebol da zona e ali se praticava o ténis, o basquetebol e também o teatro com o Valdemar Pereira, Germano Gomes e outros. A sua família era muito solidária e em Dacar Ofélia nunca se esqueceu de nenhum sobrinho ou algum parente, enviando-lhes sempre encomendas quando aparecia um barco com destino a São Vicente. Coração de rola a mais sentida (Januário Leite) sempre tinha um sorriso franco e uma alegria extasiante para receber os amigos e clientes.

Hoje, poucos estudiosos e interessados na história da nossa honrosa emigração se debruçam sobre o papel importante dos emigrantes no Senegal, onde a mulher cabo-verdiana em especial, a primeira africana a emigrar livre seja para as Américas ou para o Senegal, teve um papel determinante na solidariedade para com o povo das ilhas. Essa emigração, que começou no século XIX, foi interrompida em 1902 pelo governo colonial português, com o fim de beneficiar os roceiros de São Tomé e Príncipe. Para isso, foi imposta a obrigatoriedade de se possuir um passaporte para viajar para o Senegal, onde a mão-de-obra cabo-verdiana era preferida por ser o cabo-verdiano o único africano da África Ocidental a trabalhar a pedra. Esta decisão foi combatida heroicamente por Eugénio Tavares e Sena Barcelos em 1902 e, mais tarde, a partir de 1911 no jornal “Voz de Cabo Verde”, por Eugénio Tavares, Abílio Monteiro de Macedo e Pedro Monteiro Cardoso. Quando “se fechou as portas à nossa expansão” (Jorge Barbosa) para a América em 1924, foi graças aos nossos heróicos capitães de ilhas e costas, como Alberto e Crisanto do navio “Novas d'Alegria” (desculpem-me por não me lembrar de outros nomes), que do Senegal chegava quase tudo para a sobrevivência do povo das ilhas. 

Face ao abandono do Porto Grande, à repressão política nas empresas e à censura colonial, emigrar clandestinamente para Dacar nos anos quarenta e cinquenta era a única resposta política ao sistema colonial português. Dacar era a única alternativa para se evitar o longo calvário das roças de São Tomé. E era clandestinamente que homens e mulheres partiam, dos portos e burgos do litoral de São Vicente, como Calhau, São Pedro e Palha Carga, para Dacar em navios como “Santa Rita”, “Santa Luzia”, “Novas de Alegria”, “Ernestina”, “Ildut” e outros.

A emigração nunca foi um acto de evasão ou abandono. Ela foi a estratégia pensada pelo povo das ilhas para arrancar a nossa terra-mãe das garras das secas e fomes e da colonização. Tanto Campinas, emigrante na Argentina e o herói do romance Famintos de Luís Romano, assim como José de Lima, emigrante nos Estados Unidos e o protagonista do romance “Chiquinho” de Baltasar Lopes, tiveram de emigrar para se prepararem para o combate libertador da sociedade cabo-verdiana.

A abertura do caminho marítimo para a Holanda, que pôs definitivamente termo ao caminho de São Tomé e abriu novas perspectivas para o desenvolvimento de Cabo Verde, veio diminuir a importância do Senegal na vida económica e cultural de Cabo Verde. Não obstante, nunca é demais lembrar que não se deve ignorar o grande contributo dos emigrantes cabo-verdianos de Dacar de onde, a partir dos anos sessenta, começaram também a emigrar para a França, Holanda e Estados Unidos.

A emigração é uma necessidade psicológica para o cabo-verdiano. Ele precisa de ultrapassar o limite das ilhas para ver o Mundo com os próprios olhos e viver as suas próprias experiências para depois as transmitir ao seu país. Assim recomendava o mestre António Aurélio Gonçalves, sem dúvida, o cabo-verdiano que melhor se realizou como escritor.

A emigração tem estado em todas as lutas por Cabo Verde: contra as secas e as fomes, para a independência e também pela democracia. Merecia melhor reconhecimento da Nação e dos seus políticos que sabem exigir mas que não dão aos emigrantes direitos iguais aos dos cidadãos residentes no país. E hoje a emigração aposta na luta pela Regionalização, pois todo o combate por uma maior justiça social e económica lhe diz respeito. A política de emigração actual peca pelo excesso de centralismo e o medo da democracia plena (regional e nacional) manifesta-se ao nível do Conselho das Comunidades.

Na homenagem ao Djosinha de Bernarda, realizada no passado dia 11 de Maio em Rotterdam, falámos muito da Ofélia e da amizade entre ambos. O Djosinha estava sempre presente nas noites cabo-verdianas no bar da Ofélia durante as suas férias em Cabo Verde. Por essa ocasião, relembrámos também outras figuras da nossa emigração, heróis do povo, ignorados pelos Municípios e o Governo que, por falta dum verdadeiro inventário sobre as figuras proeminentes da nossa diáspora e em especial dos fundadores das comunidades, estão excluídas da História de Cabo Verde.

A morte da Ofélia foi sentida em toda a diáspora. A história da nossa emigração nunca esquecerá a nossa Ofélia, filha da terra de B.Leza e Selibana, coração do povo. A uma rua ou avenida devia ser dado o seu nome. Uma placa devia ser fixada nas paredes do Bar Calypso, em testemunho da amizade e reconhecimento do povo do Mindelo e dos emigrantes.

Paz à tua alma Ofélia. Que os anjos te recebam com hinos inspirados das mornas de amor de Eugénio Tavares, B.Leza, Jotamont, Manuel de Novas e Frank Cavaquinho. O teu nome fica inscrito nas nossas memórias como uma das grandes figuras que lutaram pela sobrevivência da morna e da cultura mindelense.

Luiz Silva


2 comentários:

  1. Mesmo sabendo que o estado de saúde da Ofélia anunciava o fim da sua passagem da sua missão terrena, foi com màgua que soube do seu passamento atravez da comunicação social.
    Ofélia de Nha Sabina, como a conhecíamos, era minha vizinha desde a minha chegada na Chã do Cemitério aos 12 anos; eu era companheiro de brincadeiras do seu único irmão, Djosinha, que ainda nem era o exímio violista que despontou pouco depois, como também o primo Ildo, filho do Hilàrio).
    Não conheci os pais da Ofélia mas sim a avô (Nha Sabina Ramos) e os 4 tios, de onde sobressaiam dois músicos (André e Hilário) da escola boavistense, que devem ter transmitido o vírus musical à essa que foi uma grande animadora das Noites do Mindelo, no seu restaurante não longe da casa onde foi criada, também ao pé da minha.
    Cabo Verde, nomeadamente S.Vicente em especial e Chã do Cemitério em particular estão de luto como estão de luto todos os amantes da nossa música. mùsica caboverdeana
    A' Alda, sua irmã e aos demais Familiares, apresento as minhas condolências as mais sentidas.
    Que a terra te seja leve, "Gavéa" (*)
    Valdemar

    (*) "Gavéa". Assim lhe chamava Faná.

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  2. Nunca tive oportunidade de conhecer a dona Ofélia e agora lamento não ter ido ao seu restaurante, onde de certeza teria passado um bom bocado, tal como me aconteceu noutros lugares idênticos. Mas só não fui porque não fui elucidado nesse sentido. Agora a minha saudade tem um sentido retrospectivo e o travo amargo do remorso. Paz à sua alma e que o seu exemplo perpetue.

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