É dado como assente que a colónia de Cabo Verde, mais que deliberadamente maltratada pelo Governo da antiga mãe-pátria foi sobretudo muitas vezes esquecida por ele. De facto, nos momentos graves, nem sempre surgiram os meios necessários para acudir ao território - por exemplo à catátrofe da fome, a mais trágica, sempre associada às secas - que o Governo central se "esquecia" de lhe fornecer. Mas uma coisa são os governos e outra são os povos. E Cabo Verde, na hora da verdade, sempre contou com os seus filhos da América e de outros locais de emigração e do povo português europeu, despertado sempre que possível pelas notícias que a imprensa mais destemida ia conseguindo fazer passar, em censura monárquica, republicana ou estadonovense...
Disso é exemplo curiosíssimo o texto que hoje publicamos na totalidade. Surgiu ele no jornal coimbrão Resistência, de 9 de Agosto de 1903, que refere os ingentes apelos de Loff de Vasconcelos (ver AQUI), maiense falecido em São Vicente, desassombrado homem da imprensa e nativista convicto. A descrição é dramática em alguns aspectos e nela se vê bem como diferia o tratamento dado aos cabo-verdianos pelo Governo do que o povo português agenciava para os seus irmãos das ilhas. E com associações comerciais em campo e barcos a fazerem transporte gratuito dos géneros. Em ocasião oportuna veremos que o mesmo se passava do lado de lá do Atlântico, com os cabo-verdianos e açorianos da América a darem o seu contributo para a amenização do flagelo que ciclicamente fustigava as gentes pobres do arquipélago.
Passei (como é costume diariamente) por esta "postagem", não a li nem na primeira nem na segunda vez. Lembro-me do espectro da fome.
ResponderEliminarCostumo rememorar muitos sucedidos desde os meus sete aninhos em que viviamos no Alto da Companhia. Alguns marcaram-me de uma forma ou de outra, na alegria e na tristeza, e ainda - Graças ao Supremo - lembro-me de alguns factos, embora ténuamente. E uma dos mais tristes, coisa que deixou marca indelével foi quando vi crianças famélicas que chegavam da ilha do meu avô materno, S.Nicolau.
O meu pai levou tempo para calar o meu choro porque eu queria que guardássemos duas delas. Dificilmente compreendia a situação..
Mesmo querendo contribuir era impossível para nós. Eramos sete pessoas em casa, sem contar os chamados "cristom de Deus" qua apareciam para "salvar" nas horas de refeição.
Quem sempre teve pão na mesa, como eu, apresenta alguma dificuldade em refazer estes tempos. Mas a dramática descrição deste jornal de Coimbra ajuda a perceber um pouco o que foi um Cabo Verde esfomeado, a viver à custa da solidariedade dos seus filhos na América e dos seus irmãos de Portugal (situação que é a descrita no "Resistencia").
EliminarBraça,
Djack
Tempos difíceis viveu Cabo Verde no passado, uma terra pobre e ressequida, entregue ao sabor dos ventos de leste e de uma variabilidade climática impiedosa, assim como de um certo abandono administrativo da metrópole. Infelizmente o governo de Portugal desvalorizou estes grãos de areia, que não representavam nada, zero absoluto, face ao vasto e rico território colonial, quando não o fazia com o próprio território metropolitano. Mas esta atitude não significou indiferença do povo português à situação da colónia como ficou patente aqui neste blogue de importância histórica. Mas hoje este povo de Cabo Verde, pobre e humilde, sempre maltratado pelos poderes, reaparece ao mundo com a sua única riqueza que é a sua humanidade e os valores construídos pelos séculos de sobrevivência e de solidariedade. Infelizmente os governantes aprendem pouco com lições do passado e tempos difíceis viverá Cabo Verde no futuro se nos desorientarmos e não valorizarmos o essencial. Obrigado Saial por nos trazer tanta informação histórica.
EliminarOs povos das ilhas deram à História uma lição de estoicismo, de sobrevivência, de coragem, de inteligencia...Conquistaram o seu direito de serem orgulhosos e eu, filho de fora, deles me orgulho!
ResponderEliminarZito
Este quadro agora desenterrado do esquecimento é horripilante nas suas negras e trágicas cores. Isto passou-se nos princípios do século XX mas voltaria a acontecer com idêntica crueza em meados do mesmo século. Por isso se vê que nem a República, com o seu proclamado ideário de igualdade e solidariedade, nem o Estado Novo, com a sua fé acrisolada num Portugal uno e grandioso na sua geografia aglutinadora, tiveram resposta ou se preocuparam o quanto lhes era devido, para acudir à nossa gente com medidas eficazes. As populações de Portugal continental é que não ficaram surdas ao sino que repicou ruidosamente na sua consciência. Portanto, os governos nem sempre são o espelho dos povos. Muitas vezes preferem a teatrologia da política oca e vazia a torná-la o instrumento de serviço que deve ser.
ResponderEliminarCabo verde jamais pode esquecer semelhantes quadros de tragédia humana. O fantasma da fome extrema viria a partir dos anos cinquenta a ser afastado com algumas medidas tomadas e a independência consolidou o ritual do seu esconjuro. Mas, infelizmente, o pano de fundo da pobreza geral se mantém e por isso convém acautelar as políticas que hoje se tecem muitas vezes ignorando que o desperdício de recursos e o desacerto das prioridades podem ser meio caminho para atrair velhos e indesejáveis fantasmas. É certo que hoje em dia a comunidade internacional é mais atenta e actuante, mas é bom não esquecer que temos de aprender bem as lições da vida.