domingo, 3 de novembro de 2013

[0611] Embora com algum atraso, pelo motivo apontado no anterior post, era inevitável publicar este praiadebotístico e emocionado texto, ainda por cima de um mindelense. Com o também inevitável (e adequado) apoio imagético...

Mindelo, Doce Mindelo

Foto José Carlos Marques - Rua e Praia de Bote

À medida que escrevo estas palavras envoltas na melancolia que aprisiono, sinto a brisa fresca desse meu mar da Praia de Bote. Meu e de todos os mindelenses que sentem o mar e a marginal como parte integral das suas integridades e suas variadas personalidades. Miro o edifício da Rádio e vejo a imagem imponente que dele tive, no verão em que pratiquei vela sobre esse mesmo mar eutrófico e lodoso. Deslizava sobre esse meu mar, nosso mar, no barco da classe optimist e sentia a liberdade que o vento me entregava em mãos ao fustigar a vela, enquanto sussurava as amarguras de Mindelo em meus ouvidos. E as gruas velhas, enferrujadas, enormes e impávidas, ladeadas de montanhas de conchas na ponta do velho cais da alfândega, que sempre me levaram, numa autêntica viagem, ao tempo em que protagonizaram braços-de-ferro ferozes com as cargas destinadas aos vapores que sempre alegraram a sumptuosa Baía. No horizonte deste mar, azul, manso, resiliente, jaz o gigante guardião desta cidade esquecida no tempo e perdida na vida. O Monte Cara, se pudesse, hoje chorava, soluçava e berrava de angústia. Ele que presenciou o esplendor desta cidade nos tempos áureos da presença inglesa, onde o carvão era o motor da economia da ilha, hoje choraria ante o desamparo desta ilha que outrora foi berço de inovações, foi fruto do engenho dos filhos da ilha para ultrapassar as vicissitudes arquipelágicas que todo o ilhéu conhece. Passeio a mente pela marginal, pensando nesta minha ilha, nesta minha gente e indagando o motivo, o percurso histórico e as soluções para este meu Mindelo, Doce Mindelo. Desespero perante este cenário triste em que se afunda Mindelo a cada dia que passa nesta nossa cronologia. Fecho os olhos e oiço os apitos na Baía quando se dão as 12 badaladas anunciando o final do ano e ínicio do Ano Novo, vejo a alegria contagiante com que as pessoas festejam. Consigo ver os esplêndidos e fulgurantes andores do carnaval e sentir o ribombar das batucadas que nos fazem mexer automática e freneticamente, mesmo que sejamos péssimos dançarinos. Vejo a criatividade estampada no rosto e nas vestes dos actores do carnaval de rua, onde as críticas sociais, personificadas em verdadeiros circos ambulantes, são ladeadas pela pura demonstração do humor típico do mindelense, quando este se transforma nos mais variados personagens. Vejo a Rua de Lisboa agora enrugada, caquética e a gritar por um bálsamo que lhe traga a jovialidade de outrora. Sinto o cheiro característico da Rua da Praia, o cheiro a peixe. Por momentos incomoda, porém ao me fazer relembrar que este é o cheiro da luta dos pescadores que madrugam, arriscando a vida, em perseguição do dia de trabalho, animo-me e até celebro haver este cheiro no ar. Este cheiro da vida das peixeiras que, com a sua lábia característica e aperfeiçoada com o passar do tempo, convidam a comprar a bela cavala que para nós olha com os olhos lânguidos. Celebro este cheiro por ser o cheiro da vida das gentes deste meu Mindelo, Doce Mindelo. Continuo o meu passeio pela cidade que me viu nascer e crescer. Vejo a praça Estrela, o campo de ténis,  Liceu Ludgero Lima, o Liceu Velho, a Praça Nova, o Campo Novo, o Fortinho, a Ribeira de Vinha e ainda a minha eterna Ribeira Bote, palco das minhas mais belas e atrevidas aventuras. Lugares de excelsa importância na vida desta minha gente. Mas que agora carregam uma atmosfera lúgubre fruto da desilusão que a ilha sofre. Será o povo, será a História, será o tempo ou será a reconversão de certos valores humanos intrínsecos? Qual o motivo desta decadência, visível e entristecedora, desta minha eterna Cidade? Meu Mindelo, Doce Mindelo, orgulho-me de ser fruto das tuas entranhas, orgulho-me deste mar imenso que te abraça em consolo hoje em dia, orgulho-me essencialmente por ter vivido tudo aquilo que hoje me alegra, me fortalece e me faz ser quem sou.  Sendo filho da ilha, espero poder dar o meu contributo para a reabilitação dos pilares desta tua magnânima estrutura que muito suporta e suportou. Desabafo nestas linhas o meu orgulho e minha actual tristeza por esta minha Cidade do Mindelo, Doce Mindelo.

"É necessário sair da ilha para se ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós." (José Saramago)

James Silva Ramos

Foto José Carlos Marques - Praia de Bote, Porto Grande e Monte Cara

4 comentários:

  1. Por enquanto delicio-me com o texto mais lindo, com as palavras mais sensíveis para escrever sobre a nossa cidade do Mindelo tão maltratada, tão perseguida, como se a querem fazer desaparecer da nossa terra. O neto de Nena Ramos vem acordar muitos que se encontram como que num congresso de depressivos, alheios a tudo quanto se passa ao redor.

    Lamento não poder comentar. Quando encontrar palavras mais justas para dizer o mesmo que James voltarei. Prometo

    Obrigado a quem escreveu e a quem difundiu

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  2. O boise tem pedigree ao qual não se pode furtar. O avô Nena (Manuel do Nascimento Ramos), falecido em 25 de Agosto de 2008, deixou obra de que ele se pode orgulhar. Curiosamente, tenho dois exemplares do mesmo interessante e documentado livro deste golfista, escritor e homem de farmácia: "Mindelo d'Outrora", um oferecido pelo Dr. Aníbal Lopes (e autografado pelo ofertante) e outro pelo meu amigo e condiscípulo gileanista Alexandre "Bintim" Lima Oliveira (também autografado pelo ofertante).

    Isto, para não falar da esposa do Sr. Nena, Ivone Ramos, da qual, também oferecido e autografado pelo Alexandre, possuo "Futcera ta cendê na rotcha" (ed. Calabedotche, Mindelo, 2000).

    Mais ancestrais literatos o boise tem (e de elevado gabarito, pelo menos mais uns três que eu saiba), mas não me compete agora fazer a árvore genealógica dele. Fiquemo-nos pela leitura do seu belo texto.

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  3. Lindo texto e fotografia (tirada num daquelas momentos únicos) do Mindelo, esta linda cidade cabo-verdiana morena. A sereia serenamente adormecida está a espera de uma nova serenata...., mas faltam muitos tocadores....Ah ah ah

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  4. Realmente, é belo este texto deste neto do nosso Nena. Bordado em poesia, o jovem deita para fora a sua nostalgia e a saudade não mitigada de imagens oníricas que se mantêm perenes, resistindo a estes tempos de desamparo por que passa a nossa ilha natal. Mas se a ilha ainda assim conserva e suscita o mistério que mantém vivo o sonho, há razão para não desesperarmos. Só uma realidade viva é capaz de manter o sonho intacto, e este provém dos recessos de uma alma colectiva em que se misturam pulsões, sentimentos, encantamentos e paradoxos, mesmo que por vezes sem o nexo causal que permite aquela materialidade que alguns alegam não possuirmos. Mas esses têm é inveja de não conseguirem olhar para além disso como nós somos capazes. É esta a diferença. O ser mais evoluído é o que consegue perscrutar-se e inventar-se para melhor percepcionar o que o cerca. A minha filha mais nova acompanhou-me no ano passado na viagem que fiz a S. Vicente e ela confessou-me que se comoveu por algo de místico que sentiu na nossa ilha. Disse ela qua não obstante os sinais de pobreza indisfarçável que viu em algumas pessoas, notou-lhes um ar de quem inventa e mantém uma permanente alegria dentro de si.

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