segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

[0677] A África, no tempo das belas “signares”

Arsénio de Pina
Pd'B agradece a oferta ao autor, certo de que o presente trabalho, embora não inédito, será de grande interesse para os nossos leitores que já o leram ou ainda o desconhecem. As imagens de signares foram colocadas por Pd'B.

Incluído no meu livro Reflexões e Factos Diversos [ed. do autor, Mindelo, 2007 - Nota do Pd'B] pode-se encontrar artigo com este título, que respigo para as páginas de Praia de Bote. Artigo inspirado por outro do historiador Congolês Likia M´Bokolo, com ilustração de Hoa-Qui, sobre as “signares” do Senegal, e, por associação de ideias, veio-me à mente um trabalho recheado de humor Mindelense saudável apresentado no 2º Congresso dos Quadros e Dirigentes Associativos Cabo-verdianos da Diáspora, pelo amigo e colega Dr. Daniel Neves sobre os chamados lançados ou tangomaos no Senegal. Dizia o colega, a certo passo da sua exposição, que “os lançados, por razões diversas e em particular pela concorrência dos Franceses, cada vez em maior número em África, desapareceram no século XVII, mas ficou o termo lançado no nosso crioulo que, na sua acepção de homem temerário teria, aí, talvez, a sua origem semântica”, acrescentando, com sorriso matreiro num cantinho da boca, que rezam crónicas apócrifas que teve a sorte de compulsar nas suas laboriosas pesquisa históricas, que alguns desses lançados teriam frequentado o famoso Liceu Gil Eanes, em S. Vicente de Cabo Verde, citando os nomes de alguns: Nhunha de Bia Gaxa, Tchenta Gomes, Coxim, Nhelas de Ti Pede, Alberto Torres e Bitim Leite.

Mas, deixemos de lado estes e outros lançados da investigação histórica do colega e respiguemos alguns elementos do citado artigo sobre as “signares”, cuja origem e fama deve o Dr. Nhelas de Ti Pede conhecer melhor que eu por viver diazá no Senegal, enroscado a Dakar como moreia anzolada em buraco de rochedo, ingratamente sem dia de regresso ao torrão natal, embora venha prometendo, de longa data e descaradamente, regressar brevemente.

Escreve M´Bokolo que é aos Portugueses que senhoras elegantes dessa época devem o nome de “signares”: a palavra portuguesa senhoras, rapidamente deformada, deu origem a “signares”. De resto, foram eles quem, dos europeus, primeiro pisou terra africana, montou negócios entabulando relações com as suas gentes e, obviamente, como costuma repetir o amigo Neco - a carne é fraca -, os primeiros a ter relações amorosas com mulheres africanas.

Não se sabe, ao certo, embora se presuma que bem cedo, quando começou esse relacionamento horizontal, isto é, ao nível da esteira ou cama, entre europeu e mulher africana. Na crónica da Guiné de Gomes de Zurara (meados do século XV), quase que não se encontra referência a essa aventura amorosa. Foi um pouco mais tarde, na última metade do século, que jovens Portugueses, de espírito aventureiro e sem preconceitos, se ligaram a mulheres africanas, com grande escândalo da chamada boa sociedade branca. No início do século XVI, o Padre Manuel Alvares descreve-os da seguinte maneira: “são tudo que há de mau, idólatras, perjuros, desobedientes do Céu, assassinos, debochados, ladrões… gente sem lei, não respeitando nada a não ser os seus apetites libidinosos, sementes do Inferno”. O padre devia estar danado, muito provavelmente por não poder fazer outro tanto, embora, posteriormente, fosse tolerado, pela hierarquia católica, aos padres Portugueses tomar, sem escândalo, mulher indígena – jamais europeia – nesses climas miasmáticos. Daí nasceram muitos descendentes da Eclesia, à cautela e hipocritamente denominados de afilhados e sobrinhos, raríssimos com apelidos dos respectivos pais. Em Cabo Verde, por exemplo, quase que não se encontra família mais ou menos graúda que não tenha um padre ou cónego progenitor no passado, que viveu maritalmente e sem escândalo com a mãe dos filhos, respeitado na comunidade e sem grandes objecções, nessas épocas, por parte da Igreja Católica.

Todavia, não obstante condenações do tipo do Padre Álvares e atropelos à moral oficial, foi-se tornando hábito entre todos os outros europeus, por imitação dos iniciadores portugueses, viver com mulheres africanas, ao longo de toda a costa africana onde se fazia comércio de produtos preciosos (ouro, marfim, etc.) e, sobretudo, o rendoso e criminoso tráfico de escravos. Foi sobretudo nas ilhas e portos da Senegâmbia – Gorée, Saint-Louis, Portudal e Joal (terra-natal do ex-presidente Senghor, nome derivado de Senhor, que cantou em lindos versos a beleza da mulher africana mas… casou com europeia…) – que as “signares” mais se notabilizaram.

Apesar da proibição de certos oficiais e empregados Franceses de mandarem buscar as respectivas mulheres de França para o Senegal, a Companhia da Senegâmbia e do Senegal decidiram interditar os seus empregados de viver com mulher indígena. O resultado foi que a relação entre europeus e africanas passou a ser, a princípio, de concubinagem, para se transformar, com o decorrer dos anos, numa espécie de política oficiosa, por se ter constatado que os europeus que viviam com mulheres negras resistiam melhor às condições climáticas e sanitárias do meio, isso porque a sua entrada na sociedade indígena permitia-lhes beneficiar dos serviços dos curandeiros que dominavam melhor o tratamento das doenças tropicais que os europeus desconheciam. Tal facto levou a que entre 1728 e 1730 alguns governadores do Senegal tivessem pedido a essas Companhias que amenizassem essa proibição. Disso resultou que, durante cerca de um século, até meados de 1830, os europeus tivessem passado a adotar a prática chamada “casamento à moda do país”, que eram, de facto, uniões reconhecidas: os africanos tomavam-no como tal e os europeus também reconheciam aos filhos dessas uniões um certo número de direitos (herança, direito de uso do apelido paterno, etc.). As beneficiárias desses casamentos obtinham, também, a libertação da escravatura.

As “signares” desempenhavam um importante papel económico e social na sociedade local e como conselheiras dos maridos, e algumas até participavam no rendoso negócio de tráfico de escravos, comprando e vendendo irmãos de raça. Em 1788, assinalam-se três “signares” entre os armadores mais importantes de Saint-Louis (primeira capital do Senegal).

Não admira, pois, que a mestiçagem se intensificasse, constituindo-se, assim, uma pequena comunidade muito influente de mestiços e de “negros franceses”. Até se ouviu falar neles na Revolução Francesa. Em 1789, na véspera da convocatória dos Estados Gerais, os negros e mestiços de Saint-Louis associaram-se aos brancos para redigir as “muito simples queixas e exortações dos habitantes do Senegal aos cidadãos franceses”. Proclamaram, particularmente: “o sangue francês corre nas nossas veias”, e assinaram, orgulhosos da sua componente francesa, “Negros e mestiços, todos franceses”.

É difícil, se não impossível, dizer quando terminou a influência económica e social das “signares”. Custou-lhes cara a ocupação colonial do século XIX, bem como a chegada regular de mulheres europeias em África. Todavia, ainda em 1902, o Dr. Barbot, num livro de conselhos aos europeus que emigravam para África, recomendava o “casamento à moda do país”. De salientar que, até à eleição do primeiro deputado negro Senegalês, Blaise Diagne, em 1914, foram os mestiços, filhos das “signares” que incarnavam, bem ou mal, as confusas aspirações de então das elites africanas.

PRÓXIMO POST

Ataques de piratas à Cidade Velha, em texto inédito de Nuno Rebocho, nos blogues Praia de Bote e Cidade Velha 1462.



3 comentários:

  1. Como a releitura de livros que nos marcaram, leio este texto do amigo Arsénio como se tivesse voltado à capital senegalesa (onde vivi dez anos) para estar com os amigos (e/ou conhecidos) "mestiços de S.Louis" que só não se confundem connosco cabo-verdianos porque não falam o nosso crioulo.
    Com efeito, muita semelhança existe entre nós e houve (deve haver ainda) alguns casamentos com as nossas mulheres. Já com as "elas" a coisa é diferente porque têm um sentido muito desenvolvido da xenofobia. Como sempre detestei isso prefiro não me alargar e deixar cada um com suas escolhas, boas ou péssimas

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  2. Excelente artigo de investigação. Da leitura parece-me que esses 500 anos de presença portuguesa em Africa é riquíssima em factos históricos e ainda muito pouco se sabe. Idem pno que tange a Cabo Verde e aos papel deste arquipélago nesta aventura africana portuguesa. Bravo Arsénio

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  3. Já um pouco tarde, tomo conhecimento deste texto do Arsénio, que me passou despercebido talvez por ter andado ocupado com coisa muito absorvente. É um texto que eu não conhecia e que agora li com grande interesse.

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