terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

[0755] Crónicas do Norte Atlântico - UM MINDELO A MODERNIZAR-SE, NO INÍCIO DO SÉCULO XX



Crónica de Janeiro.2014

A I Guerra Mundial começou a 28 de Julho de 1914. Pouco antes, inaugurava-se no Mindelo o grande frigorífico conjunto das casas Lopes & C.ª e Madeira & C.ª e a Câmara Municipal pensava em substituir o antiquado sistema de iluminação Kitson pela electricidade. Pelo meio, a mesma instituição acabava de deitar abaixo um pestilento e degradado urinol, vergonha da urbe que se queria limpa e renovada. São tudo notícias da Folha de São Vicente, secção do jornal O Futuro de Cabo Verde, de 2 de Julho de 1914 (1), que mostram uma certa dinâmica de modernidade que percorria a cidade única de São Vicente, apesar das nuvens negras de morte e destruição que se avizinhavam no Mundo.


Urinol a abater…

"Pois já não era sem tempo." Assim começava a nota sobre o urinol que se encontrava à entrada da cidade (2). Com notável sentido de humor, o articulista anónimo dizia que o tempo e a Câmara Municipal haviam feito a meias o trabalho de derrube do equipamento: "Esta [a CMSV], com medo de ofender aquele, foi esperando que ele, a pouco e pouco, como bom obreiro, se encarregasse da parte que lhe competia e depois um pouco envergonhada do seu descuido chegou lá e em dois dias, com um pedreiro, foi um ar que lhe deu." Referia o jornal que se soava que o Município de São Vicente pensava em substituir o desmantelado urinol por outro "em melhores condições de construção e mais facilidade de higiene" e perguntava, terminando: "Será assim?" É quase certo que tal tenha acontecido. Pelo menos, o plurim de virdura (3) sempre teve uma casa de banho pública, à direita de quem entra pela porta da Rua de Lisboa e que curiosamente protagonizou perto dos meados dos anos 60 do passado século um episódio de milagroso aparecimento de… petróleo. Servido de água salobra por uma abertura no pavimento da rua, um dia alguém para lá atirou uma beata ou fósforo ainda aceso. Este, logo incendiou o combustível fugido por uma fissura na tubagem da bomba de gasolina existente alguns metros a seguir e que, escoando-se nas entranhas da Rua de Lisboa, penetrara no poço… Foi dia de pitrol no Mindelo e de stóra sem fim nos tempos seguintes (4). Outra instalação sanitária, no canto direito do muro do saudoso Eden Park, levou descaminho, devido às obras de construção do Hotel Porto Grande e consequente fecho da rua onde fazia esquina. E hoje, num canto da Praça Nova, temos uma, gigantesca, que dá para eventual alojamento de várias famílias e todo o seu mobiliário, em caso de catástrofe…


O frigorífico da marginal

A 13 de Junho, pelas 17 horas, na marginal do Mindelo, em frente da Casa Madeira e C.ª,  inaugurava-se o novo frigorífico que esta casa comercial e a sua sócia Lopes e C.ª haviam mandado erigir. Junto ao mar, o complexo tinha casa de máquinas e congelação e seis câmaras refrigerantes para peixe, carne e hortaliças. 
À cerimónia acorreram membros do corpo consular, funcionários públicos representados pelos chefes das repartições, o comércio e as casas estrangeiras. Os convidados foram brindados com champagne frapée e bolos e o redactor da Folha agradeceu em nome do gerente da firma Lopes e C.ª, Roberto Duarte Silva (5) (que se encontrava impossibilitado por um incómodo de garganta) a todas as autoridades que haviam concorrido para que a obra tivesse sido concretizada, incluindo o Governador da Província, Joaquim Pedro Viera Júdice Bicker (6). A festa encerrou com hurras!, à inglesa.

O frigorífico abria diariamente às 8 horas da manhã, para a venda de gelo e para serem retirados os volumes depositados para resfriar, em troca de senhas que eram entregues no acto do depósito. O gelo que ali se podia adquirir, em blocos ou peças mais pequenas, custava oito centavos por quilograma.

Outra fábrica de gelo seria mais tarde implantada na Lajinha, propriedade do empresário de origem italiana Pietro/Pedro Bonucci (7). A actividade frigorífica em São Vicente teve ainda maior desenvolvimento a partir dos anos 50 do século XX, com a criação de duas grandes empresas: a Sociedade Frigorífica Exportadora e a Congel – Companhia de Pesca e Congelação de Cabo Verde. Ambas tiveram boas áreas de frio e razoáveis frotas de pesca. À data da independência de Cabo Verde ainda existiam, embora em condições económicas e financeiras difíceis. Da Frigorífica, nada sabemos; quanto à Congel, foi dissolvida pelo decreto 524-A/76 de 5 de Julho (Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal). O texto do acordo de extinção seria assinado por Vítor Crespo, pela parte portuguesa e por Osvaldo Lopes da Silva, do lado cabo-verdiano.


A ideia da luz eléctrica no Mindelo

Foi numa sessão da Câmara Municipal realizada algures na primeira metade de 1914 que surgiu a ideia de se substituir a iluminação pública vigente, do sistema Kitson, por uma rede eléctrica. A proposta, assinada por Júlio Veiga, presidente da edilidade são-vicentina, e pelo vereador César Serradas, tinha apenas a finalidade de fazer com que se estudassem os meios de se tornar viável o projecto. Mas, previdentes, apelavam ao senador Vera-Cruz para que este com o seu "zelo pelo desenvolvimento e progresso [da] província e, em especial [da] ilha [de São Vicente, procurasse] obter propostas em condições as mais vantajosas para o fim que se [tinha] em vista." Pretendia a Câmara pedir um empréstimo para prover as carências de tarefa de tamanha envergadura, para a qual não possuía os meios necessários, devido à escassez do seu orçamento. A Folha de S. Vicente lamentava o facto de se ter gasto muito dinheiro com o sistema de iluminação a acetileno e depois com os candeeiros Kitson (8), alegando que esse montante poderia ter sido aplicado à partida no moderno sistema eléctrico de iluminação.

Imagem de início de século da Rua de São João, vendo-se candeeiro

Contudo, só no dia 6 de Agosto de 1925, 11 anos depois, a electricidade deu verdadeiramente o primeiro passo no Mindelo, através da assinatura do contrato para fornecimento da nova energia entre a Câmara Municipal de São Vicente e os industriais Pietro Bonucci e João Rocheteau Lessa. À frente do Município de então estava Francisco Augusto Regala, o médico militar para sempre amado pelos mindelenses que assim punha em prática deliberação tomada pela Assembleia Municipal no ano anterior (9). Há quase 90 anos, portanto…

Notas:

1. P. 3.
2. Não conseguimos saber em que exacto sítio.
3. Mercado municipal ou mercado de verduras.
4. Stóra semelhante se encontra em Ilhéu de Contenda, de Teixeira de Sousa, desta feita situada na Praia de Nossa Senhora, na ilha do Fogo. Ali, o petróleo viera de um bidão furado armazenado na Alfândega próxima da dita praia. No mesmo livro, Teixeira de Sousa conta terceiro caso, de um são-vicentino que vendera gasóleo proveniente do seu poço de quintal, neste caso "fugido" de depósitos da Miller's & Cory's.
5. Não confundir com o famoso químico santantonense do mesmo nome, falecido em Paris em 1889.
6. (1867-1926). Distinto oficial da Armada portuguesa, atingiu o posto de capitão-de-mar-e-guerra. Foi Governador de Cabo Verde, no período de 1911-1915.
7. Ver recente estudo de Lucy Bonucci in http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/437264.html
8. Numa das quatro sessões camarárias de Maio e Junho desse ano foi autorizado o pagamento de materiais Kitson, na importância de 79$32. Tal como se afirma no texto do jornal, os candeeiros Kitson, que forneciam iluminação satisfatória, eram contudo pouco práticos pelos cuidados que requeriam. O sistema foi inventado por Arthur Kitson (daí o nome) nos Estados Unidos da América, em 1885. No essencial, tratava-se de fazer arder querosene ou nafta numa camisa incandescente.
9. Ver nota 5.

1 comentário:

  1. Já tínhamos comentado estas crónicas aqui neste espaço, e eis que também deram à estampa no Terra Nova

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