É já nesta terça-feira 9 que o livro "Coração de Lava" será apresentado na Associação Caboverdeana, em Lisboa. Logo a seguir, a 16, é a vez de o Mindelo se ver presenteado com esta portentosa (e quase premonitória) obra do poeta tarrafalense. Aqui mesmo neste post, Praia de Bote colocará na noite de dia 9 (em cima da hora) as fotos da cerimónia lisboeta. Lembramos que no evento de Lisboa 50% do montante realizado com as vendas se destinará à população do Fogo. Clique nas duas imagens, para as ver melhor
Pré-publicação de mais três excertos do livro em Praia de Bote:
E passam rentes, e seguem firmes,
na cabeça o feno, na boca as rezas,
mas eu não sou anjo, nem penas tenho,
senão estas duras de ser-se homem,
trôpega condição que na morte indiferente
se limita.
E calam quedos tantos segredos,
que mal indago se evaporam,
que mal percebo se interrogam
se eu ou eles gado sem rumo.
Desorbitados, lá vamos indo,
inda cativos deste dilema:
se se move o universo,
ou nós nele em concreto fluxo,
naves cingidas pelo negrume,
tal flor de fumo roendo os sonhos,
menos que coisa, bem mais que nada,
pois passam rentes seguindo firmes,
fazendo eco do gesto límpido,
nutridos pasmos se arrolando,
se escoiceando quando nem sede
é quanto somos.
E tu és laço que já nos ata,
e tu és vaga que já nos iça
às roucas estrelas inconsoladas,
mas isso já tu sabias, que és voz
nascendo das ígneas brumas,
se declinando nos mil estratos
amparando a vida inteira
que nas trevas se anuncia.
....................
Que nome dar-te, eu que de noite me esqueço
o que de manhã colhi nas páginas dalgum
livro, e atravesso o estio demoradamente
entre as pedras a quem chamo irmãos,
e o fim de tarde me muda os sentimentos
como se o sol mortiço rasando o rosto
acordasse a mágoa que vai nos recessos
desses montes que eu só de longe vi
num mudo filme de névoa e abatimento?
A paisagem vista é qualquer coisa de mental,
porque nela cabe a dor que não sinto,
e se sentisse seria só uma frieza condensada
sobre as lajes onde talvez expirou alguém,
mas tu és vida desde a raiz que não perece,
posto que amalgamada nessa imagem
de nau feliz que sem cessar se solidifica
e por comodidade chama o homem país.
Talvez não seja questão o que, passando,
o vento te diz, mas sei agora que no princípio
havia a grande solidão das inumeráveis coisas,
mas nenhum coração para se comover
ou temer a aflição que se prediz,
e eu sei-o pela maneira mais terrível de saber,
que é estendido onde o perecimento é voz
corrente, e no entanto não é de extinção
que aqui se trata — agarrado aos latidos aéreos
há uma impaciência de vida, longa
e prodigiosamente acostumada às invectivas,
à razão extinta que planta nas gargantas
o regozijo pela indemnidade quebrada
com asseverado heroísmo, esse irmão
aparentado do milagre.
E para invocá-lo da ternura à dor fingida
(e nem é vergonha dizê-lo com tanto rubor
nos dedos), não há tinta que não seja o sangue
da vertigem realmente sentida nas alturas
ascendidas pelo condão do verbo, porquanto
para o voo entontecido me faltam pernas e bravura.
....................
E hemos subido com as nossas interrogações
as encostas de prodígio asseverado,
ali onde a aleluia plena crepita na vizinhança
da precariedade, tal essas sempre aguardadas
águas que hoje auscultamos do lado
das repercussões lancinantes.
E assim pudemos dar um rosto à propiciação
e anotar quão persistente é o desígnio
da esperança, a que sucessivamente se prosterna
sob a brisa dos maus fados, e todavia se refaz
em cada hausto nesse cadinho que recolhe o fôlego
acumulado de tanta ingénita reiteração.
Frágil, porém, o que erguemos à foz desta terra
que regateia à periclitância a veemência de toda
a criação. Eis porque nos perguntamos — acaso
o tremor que transborda dos dedos secos é a fonte
que melhor aleita o lastro de tanta exultação?
Acostumados que somos à parca medida,
repartimos pelos dias o assombro acumulado;
e, como moeda para a viagem, assinalámos
o que a perícia e o desafio legam ao alforge
da posteridade — o pleno relâmpago, o remoinho
propício, e quanto faz do mistério seu ínclito viveiro.
Precisaria ter a condição de pássaro sobrevoando o vulcão do Fogo e sonhando mistérios da terra, do homem e do tempo, para estar à altura de comentar estes poemas. O poeta cinzela e dá lustre à palavra no lugar preciso onde se postou, mas isso é mera circunstância de lugar e momento, porque alcança alturas infinitas e pousa em estações inimagináveis onde a geografia e a língua dos homens se unificam numa única realidade universal. Dela o homem nasce, ou renasce, verdadeiro, liberto e cioso da sua condição. Bem-haja, Senhor Poeta!
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