terça-feira, 6 de janeiro de 2015

[1186] Concurso n.º 22 do Pd'B: Aristides Pereira e o canhote...

O 22.º concurso do Praia de Bote, primeiro deste ano, remete para a relação entre o antigo Presidente da República Aristides Pereira e o canhote (canhoto, cachimbo). À primeira vista (ou à primeira fumaça, se quiserem), a coisa é completamente estrambólica. Mas era de facto uma relação muito próxima (sobretudo rara e ainda por cima de todo simpática) a do antigo Presidente de Cabo Verde com este objecto fumarento mas bem cheiroso.

Quem fizer a melhor descrição sobre o assunto receberá um ramo de acácia ou um ramo e meio se já tiver alguns "meios", para se acabar com os "meios" que só fazem confusão. Claro que neste caso classificativo, haverá alguma subjectividade - ou talvez não, se a descrição for suficientemente peremptória, por bem fundamentada. O concurso estará aberto até amanhã, pelas 24 horas de Portugal.


11 comentários:

  1. As estôrias de "cabhote" e de "monftchode" são infindàveis mas com este Presidente, juiz sentenciador, em jogo eu prefiro não participar. Mas fico como aonservador atento.

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  2. En attendant, monsieur Valdêmarrrrr fume sa pipe, pour conjurer le froid, brrrrrrrrrrrrrrrrrr

    Bráçá avec froid,
    Djack

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  3. O Cachimbo do Aristides

    O jovem Aristides Pereira assistia, regalado, às fumaradas da avó Carlota (1) no seu canhote de pau de laranjeira. A velhota municiava o instrumento do seu dilecto prazer com aquele moftchod comprado na mercearia de nhô Lucas de Livramento. O neto habituara-se desde tenrinha idade ao embevecimento com que avó metia e calcava o tabaco no canhote, demorando intencionalmente essa operação, como se o prelúdio da inalação do fumo fosse o mais importante de tudo.
    O Aristides nunca haveria de esquecer esse canhote da sua avó, tanto que, pela vida fora, momentos havia em que a recordação daquele moftchod ardido pelo fogo o invadia e devolvia à infância, colocando-o no regaço acolhedor da nha Carlota.
    Certo dia, sentado numa esplanada de Conakri, onde se exilara com outros companheiros, foi subitamente assaltado por saudosas recordações. Como é que a avó ganhou aquele gosto prazeroso pelo fumo de canhote? Será que era uma forma de esquecer as mágoas, de deixar o espírito evadir-se para longe das paredes do seu exíguo quintal? Quem sabe, demandar paragens mais felizes da vida, imaginar-se princesa numa ilha encantada?
    Mergulhado nos seus pensamentos, resolveu um dia o Aristides comprar um cachimbo para descobrir o gosto de uma fumarada bem puxada, pensando, com os seus botões, que aquele prazer solitário e silencioso haveria ao menos de aliviar a tensão interior que vinha sentindo nos últimos tempos. Além disso, se os olhos da avó ganhavam aquele brilho intenso é porque a sua alma talvez se acendesse mais do que o próprio tabaco.
    (1) Nome fictício

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    1. Deliciosa short story. Não se move no rio que interessa mas é um belo oceano imaginado. Vamos ver o que nos reserva o futuro (até amanhã, pelas 24h00). Se ninguém mais for ao verdadeiro cerne da questão, já temos vencedor.

      Braça contista,
      Djack

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  4. O Cachimbo do Aristides (continuação)

    Um belo dia, sentado ao pé de um imbondeiro, o Aristides assistia a uma prelecção do líder do seu partido. Era hábito trocarem impressões ao ar livre sobre os mais variados assuntos. Porém, a dado passo o seu pensamento começou a fugir daquele cenário, como se algo o chamasse a muitas léguas de distância. Foi quando, sem dar por isso, pegou num pauzinho que há muito se soltara da árvore mãe. Puxou de um canivete e, distraidamente, foi dando formas ao pedaço de madeira, deixando que as mãos agissem a seu bel-prazer, completamente desligadas de uma acção directriz emanada do cérebro.
    Quando o líder encerrou a sessão, caiu em si, censurando-se pela momentânea alienação a que se consentira. Por momentos, o seu espírito havia estado muito longe dali, quem sabe num secreto desejo de regressar à pacatez dos tempos de rapaz. Então, reparou que tinha na mão um tosco cachimbo, que apressadamente meteu no bolso, com intenção de o aperfeiçoar no sossego do seu quarto. E teve este pensamento: - ah, nha avó, estiveste a fumar ao pé de mim, não estiveste?

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  5. O Cachimbo do Aristides (continuação ainda)

    O Sekou Touré, presidente do Senegal, apreciava o jeito pacato e ensimesmado do crioulo Aristides Pereira. Via nele um recolhimento interior que só aparentemente o não predisporia para a extroversão dos grandes diálogos políticos. Em um ou outro encontro que tiveram, o Aristides mostrou-se sempre um exemplo de constância, determinação e convicção de ideias e princípios. Chegou mesmo a cismar consigo próprio: - o Cabral é a fonte que alimenta o ideário da libertação de África, a inteligência mais nutrida e inspiradora, mas o Aristides tem a visão pragmática da realidade, sem a qual a doutrina corre o risco de inocuidade, por mais justa e perfeita que seja. Ah, o Aristides alcançará um dia a presidência do seu país, assim triunfe a luta de libertação.
    E foi assim que, em 1972, no dia em que o Aristides completou 50 anos, foi surpreendido com a chegada do condutor do presidente Sekou Touré, que lhe bateu à porta e entregou um embrulho. Intrigado mas pressuroso, abriu a encomenda e o seu conteúdo era nada mais que um belo cachimbo. Estava acompanhado de um cartão com as seguintes palavras: - Que uma boa fumaça te ajude a aliviar o stress das horas graves.
    O Aristides exclamou então: Ah, camarada presidente, como adivinhaste que o canhote da nha avó Carlota não me sai do pensamento?

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  6. O Cachimbo do Aristides (mais continuação)
    Numa das suas poucas deslocações a Paris, durante o exílio, o Aristides Pereira aproveitava o tempo livre para percorrer a pé a avenida Champs-Élysées. Não que quisesse dedicar-se a compras, porque o dinheiro era escasso e adquirir hábitos burgueses era coisa que nem de longe passaria pela cabeça de um combatente como ele. Mas como os olhos também comem e tristezas não pagam dívidas, o Aristides fazia daquele passeio uma simples e inocente distracção, convencido de que ninguém o censuraria por uma tão modesta compensação da clausura em que vivia.
    Certo dia, parou frente à montra de uma tabacaria ao pé do Café Le Fouquet’s, encantado com o mostruário de cachimbos ali expostos. Havia-os de todos os feitios, uns de formato mais clássico outros mais barrocos, outros um tanto ou quanto estrambólicos no seu exotismo. Em vão, procurou algo que se assemelhasse ao canhote da avó Carlota. Mas, qual quê, nem por sombras aparecia um cachimbo parecido com o que guardava na lembrança. Depois, decidiu: sim senhor, um homem não é de pau e não é uma modesta lembrancinha que vai beliscar os meus hábitos espartanos. E foi assim que, depois de contar os francos que levava na carteira, comprou o cachimbo que mais lhe invocava a imagem da avó Carlota, naturalmente que salvaguardadas as diferenças de luxo de confecção. Não que o Aristides fosse um inveterado fumador, mas porque o instrumento ajudava a compor um certo “stile”.

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  7. A prosa (deliciosa) aproxima-se agora do que se esperava. Não muito, mas o suficiente para vencer um ramo de acácia... se não aparecer melhor - o que duvido... Acho até que o resto dos leitores se amedrontou e não diz nada. Quando vocês virem o que tenho para mostrar, então é que vai ser giro. Mas prometo tratamento especial para esta bela caneta adriânica.

    Braça fumarenta,
    Djack

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  8. Vejam como um simples cachimbo pode ser tema para soltarmos a imaginação para direcções as mais variadas e ao gosto de cada um. Pena é o repto do Djack não ter sido correspondido por aqueles que costumam dar uma remada neste bote ou por aqueles que, de longe, silenciosamente assestam o seu binóculo para esta praia mansa e doce.
    Tal como o Vasco Santana dizia que chapéus há muitos, direi agora que cachimbos também há muitos, mas que este do Aristides Pereira é apenas um, o dele e mais nenhum. Mas será um cachimbo de recorte marcadamente burguês, daqueles que a elite social mindelense costumava exibir no antigo Grémio? Será um cachimbo de traço modesto mas de requinte quanto baste para definir o ar intencionalmente negligé de um intelectual revolucionário? Será um cachimbo oferecido por um admirador ou proveniente de uma herança familiar? Será um cachimbo adquirido na “estranja” como souvenir adequado para honrar o futuro espólio de um revolucionário? Ou será apenas um cachimbo tosco saído de mãos hábeis e inspiradas por um momento de saudade?
    Não sei ao certo. Só o nosso Djack poderá fazer luz sobre este enigma fumarento e cheiroso.
    Mas a minha dúvida levou-me a este poema do nosso saudoso Baltasar Lopes:

    Não foi porque ele era bom
    e puxava afectuosamente o fumo do seu cigarro
    quando falava comigo que eu fui ao seu enterro.
    Fui ao enterro porque sou caçador de heranças
    e queria confessar a minha gratidão pela
    riqueza que ele me deixou,
    pela sua dimensão desmesurada do mundo
    e pela sua incorporação no veleiro em que
    todos navegamos.

    Seria agora mais condizente que em vez de cigarro esse Capitão das Ilhas usasse um cachimbo, como era, aliás, hábito entre os da classe. Aristides Pereira não foi homem do mar mas por certo que na sua genética entravam moléculas de mar, maresia, salsugem e saudade, como acontece a todos os filhos das ilhas. Como não privei com ele, nunca o vi de cachimbo preso à boca, sequer uma fotografia em que ele esteja a inalar fumo com esse instrumento.
    Mas , para a História, ele cultivou uma “dimensão desmesurada do mundo” ao ousar abdicar da vida fácil e cómoda para seguir os impulsos de um ideal e de um ideário. E seguramente que ele “se incorporou no veleiro em que todos navegamos”, restando apenas saber se ao leme levava à boca um cachimbo do qual “puxava afectuosamente o fumo”.
    Sinto um enorme respeito por “capitães” da estirpe de Aristides Pereira, mesmo que discorde de uma ou outra rota da sua navegação.

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    1. Tentativa daqui, tentativa dali, o Adriano cada vez mais próximo da verdade...

      Quanto aos comentadores, fora a nossa equipa mais próxima, já desisti de me preocupar com isso. Quem não comenta, mais perde e amanhã farei um aviso à navegação acerca daqueles que aqui vêm beber mas não dão de beber... Pelo meu lado, acabaram-se as prestações de informação (e o trabalho que por vezes isso dá) a quem não participa. Depois direi o resto.

      Braça ao cada vez mais próximo vencedor,
      Djack

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  9. A única vez que tive possibilidade de ver o Aristides Pereira foi em 2003, na Praia e no átrio de um hotel, julgo que o Praia Mar. Tinha dormido no hotel e, sentado no átrio, estava à espera que um familiar me fosse buscar. Vi chegar o Aristides Pereira, que se incorporou na fila frente à recepção. Calculei que ele tencionava fazer alguma reserva para alguém da sua família ou liquidar qualquer assunto pendente com o hotel. Discreta e serenamente, aguardou a sua vez de ser atendido. Os empregados, por seu turno, não se impressionaram com o facto de estar na fila de espera um ex-presidente da república. Deviam ter procedido de outro modo, atendendo a que se impunha certa deferência para com um ex-presidente da república ou até mesmo para com uma pessoa de idade avançada? Mas não, ninguém fez caso dessa deferência. E as pessoas que estavam na fila também não se cuidaram de lhe dar a vez. Finalmente, chegou a vez de ele ser atendido e foi-o normalmente como um cidadão comum. Depois, saiu discretamente como entrara no recinto do hotel. Ao passar perto do sofá em que eu estava sentado, soergui-me ligeiramente numa vénia em sinal de consideração para com um ex-presidente da terra em que nasci, mas também de respeito cívico pelo seu passado. Ele correspondeu com uma inclinação de cabeça. Não nos conhecíamos e ele provavelmente ter-se-á perguntado: quem será esse gajo que foi o único que se dignou cumprimentar-me? Eu, além das razões elementares que justificam que eu tenha um gesto de cortesia para com alguém como Aristides Pereira, tenho na massa do sangue o respeito pela hierarquia que me foi instilado pela minha condição de militar. Certo ou errado, isso é comigo, e estarei sempre disponível para ter semelhante gesto se cruzar com alguém que desempenha ou desempenhou altos cargos públicos em Cabo Verde. Há quase 20 anos, cruzei-me com o general Silvino Silvério Marques na Messe de Oficiais de Lagos e cumprimentei-o com a mesma atenção com que cumprimentei o Aristides Pereira. Embora, no caso do Silvino Maques, cumprimentá-lo-ia pela simples circunstância de ele ser meu superior hierárquico.
    Quanto ao Aristides Pereira, pus-me e reflectir e perguntei-me:
    - Será que a democracia atingiu um ponto de maturação tal em Cabo Verde que qualquer um é tratado da mesmíssima maneira (fria) independentemente da sua categoria social ou do seu passado cívico?
    - Ou será que, no caso em apreço, assisti simplesmente a um caso de manifesta má educação e da mais elementar falta de cortesia?
    Inclino-me mais para a segunda hipótese.
    Resta acrescentar, para finalizar, que o Aristides não estava na altura de cachimbo à boca, pelo que nem essa possibilidade se me deparou para poder hoje, perante o desafio do Djack, opinar com o conhecimento de causa e a objectividade factual que o repto exige.

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