quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

[0158] Após o "naufrágio", um texto ainda "naufragado" do nosso colaborador Zito Azevedo

REGRESSO AO FUTURO

Zito Azevedo
Naquele dia, que jamais esquecerei, do ano de 1956, as últimas horas da minha ainda breve existência tinham sido bem mais frenéticas do que eu teria desejado - caso se pudesse interferir na marcha do destino, se é que essa coisa existe. Não havia dúvidas que eu havia sido abalroado por uma onda de calema, em plena baía do porto da Praia, capital do arquipélago e da sua maior ilha, Santiago! Pescados à procela eu, o meu remador e a minha bagagem, aí vínhamos nós, cavalgando as ondas, agarrados de unhas e dentes ao banco do robusto escaler que oito espadaúdos remadores impulsionavam, à força de braços e ao som de uma melopeia ininteligível, que dava ritmo às remadas, nos limites do esforço, onda acima, a toda brida, onda abaixo, enquanto, na direcção de terra as luzes escassas subiam e desciam no nosso horizonte visual, ora aparecendo, ora desaparecendo, prolongando a nossa angustia ao dar-nos a ilusão de estarem cada vez mais distantes.

À segunda ou terceira tentativa, conseguimos encostar o tempo suficiente para um rápido desembarque, antes que nova ondona levasse o nosso barco de salvação para o meio da calema, de regresso ao vapor cuja tripulação nos tinha subtraído a uma situação que poderia ter sido bem mais grave. Ainda hoje, passados tantos anos, conservo gravadas na minha memória afectiva cada imagem desses momentos de aflição e recordo de, nessa altura, sentir o que era, na realidade, regressar ao futuro…

Foto Joaquim Saial - Mar d'Canal, com Djéu e São Vicente em fundo (clique na imagem)
 O meu primeiro grande suspiro do dia, creio que me saiu directo da minha alma, estava eu sentado na calma cálida do cadeirão preferido do tio Polu que me estendia, com a sua mão peluda de longos dedos, um cálice microscópico cheio daquele néctar cor de âmbar com cheirava à distância ao bom grogue de Santo Antão, daquele que nem toda a gente tinha o privilégio de degustar!

Estava aquele calorzinho etílico a chegar-me ao estômago quando me apercebi da verdadeira dimensão do brado que ti Nanda me enviava, lá da varanda do bungalow, como se a terceira guerra mundial tivesse eclodido: “Oi Zito, águ di mar dja stragâ tudo bu rôpa!”

Eu tinha ido à Brava despedir-me da minha futura esposa, numa visita de algumas semanas e, por isso, tinha enchido a abarrotar a minha bela mala, que por sinal me tinha sido oferecida pela Ti Nanda, com tudo o que tinha de melhor, por motivos óbvios… Ora, a mala, era uma bela peça, de calfe azul que envolvia uma armação de aço bem forte mas, pelos vistos, a tinta não era de tão boa qualidade e ali estava eu, mais a Ti Nanda e o Tio Polu, a olharmos para umas dezenas de peças de roupa, interior e exterior, toda muito azul, tão azul, que pouca coisa escaparia…E estávamos em 1956, numa altura em que a roupa pronta a vestir, para além de cuecas, camisolas e camisas, pouca mais era… A minha única safa é que eu estava, afinal, a caminho de Lisboa, via  Mindelo.

Depois de uma noite mal dormida, em que sonhei com tubarões, sereias, casamentos e marcianos azuis, lá fui para o aeroporto da Praia, para apanhar o Dragon para S. Vicente, onde dei de caras, imagine-se, com o meu pai que vinha aflito para saber de mim depois de constatar que eu não tinha seguido no navio que era previsto, entretanto chegado ao  Mindelo.  Na altura, ainda não havia telefones móveis. Na viagem, além de meu pai, tive a companhia do “velho” amigo Rui Miranda e, claro, dumas dezenas de caixas dos tais pintainhos amarelos palradores…

Estava eu a tentar catalogar os acontecimentos dos últimos dois dias, quando verifiquei que um dos tirantes, esticadores ou como se chamam aqueles cabos que ligavam as duas asas dos Dragon Rapid, estava solto… Ía eu entrar em pânico quando o piloto disse que tínhamos que fazer uma escala técnica no Sal, para reparar o tal tirante. E eu a ver o tempo a passar e a gente a passear lá em cima, à velocidade do caracol! Enfim, descemos no Sal, bebemos uma cerveja morna enquanto substituíam o tirante, levantámos voo, de novo, voltamos a aterrar, desta vez em S. Pedro (ou seria na Baía das Gatas?), uma corrida de automóvel até à morada ao encontro da minha mãe chorosa de preocupação, agravada com a notícia de que estava sem roupa…

E, claro, o meu navio, esse, eu havia-o perdido pela segunda vez em vinte e quatro horas mas, felizmente, não era o único. Os meus camaradas Dick Ferro e Adriano (Migo) Brito Lima, que também iam para Angola, andavam a ver que conseguiam ir no “Ganda” da Sociedade Geral, que estava no porto a descarregar milho do sul e seguiria, no dia seguinte, para Lisboa. O cargueiro não tinha muitas acomodações para passageiros mas, como se tratava de funcionários públicos, lá deram um jeito e venderam-nos as passagens.

"Ganda" - Foto do blogue Companhia de Moçambique (clique na imagem)

Assim, tivemos tempo para eu refazer o meu “guarda-roupa”, dentro das limitações do mercado e, no dia seguinte, de manhã, lá fomos, de armas e bagagens para bordo do "Ganda" onde nos levaram para a 3.ª classe… Aí, a gente estranhou e com a ajuda do amigo Pedro Afonso, que tinha servido na Marinha e era, na altura, telegrafista do "Senhor das Areias", fizemos ver ao pessoal do navio que, sendo funcionários administrativos de Angola tínhamos direito a viajar em 2.ª classe. Ora, como o navio só tinha 1.ª e 3.ª obviamente, tínhamos que seguir viagem em 1ª classe…Mas, azar dos azares, a 1.ª classe estava repleta. Assim tiveram que desalojar o telegrafista do navio, que tinha uma cabine bem ampla, onde nós os três fomos instalados, com quarto de banho privativo e tudo… Só havia um inconveniente: o camarote era interior e, depois da luz apagada, o sítio ficava tão escuro que o Adriano comentou, nessa noite: “Ó mnis, ess lugar é tão ‘scuro que bô câ nen mestê f’chá oi pâ dormi…”

Com uma saudável e ensonada gargalhada despedimo-nos do nosso primeiro dia a bordo. Os dias seguintes dariam, como um via veremos, pano para mangas!

Zito Azevedo

Queluz, 5 de Dezembro de 2011

6 comentários:

  1. Ora aqui temos um "Ganda" texto, na verdadeira acepção da palavra... ganda.

    Um obrigado e um agradecimento pela colaboração
    Djack

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  2. Estas estórias são muito pitorescas e lê-las é como reconstituir pedaços da vida daqueles tempos já recuados, principalmente quando a narrativa tem a marca da sinceridade e da verdade. Hoje, com o progresso do coforto material, quase que nos esquecemos das limitações e privações de outrora, com dificuldade em acreditar, por exemplo, que roupa confeccionada fosse então uma raridade e que o pai do Zito não tenha sabido no momento próprio do episódio trágico-marítimo que o filho viveu. Mas tudo se compensava com boas doses de humor, espírito de solidariedade e companheirismo. O espírito de resignação, esse, era uma constante do nosso comportamento, mas tinha a faculdade de nos fortalecer o ânimo e preparar para os desafios do futuro.
    Vejo que o meu primo Rui Miranda é amigo do protagonista desta aventura.
    Que venha o resto, Zito.

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  3. Obrigado, amigos, pelo acolhimento e pelo incentivo. Afinal, mesmo a mais pacífica das vidas tem episódios que salpicam de alguma emoção a rotina de uma época em que a convivencia, a compreensão, a solidariedade, o companheirismo eram paradigmas à tona do tecido social, quando o Pai Natal ainda não tinha subsituido o Menino Jesus e a sociedade de consumo era, apenas, uma ameaça e a gente aínda vestia roupa interior feita à mão pelas mãos delicadas de nossas mães e algumas tias mais velhas...A própria saudade é uma história que merece sempre a pena ser contada...
    Quanto ao Ruizinho, é um dos meus mais antigos e queridos amigos, desde os bancos da 3ª classe da Escola Camões, ali à Pracinha da Câmara...
    Zito Azevedo

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  4. Gostei da estória, só tenho é um pequeno detalhe a apontar, o cargueiro "Ganda" pertenceu à famosa frota da Companhia Colonial de Navegação e não à da Sociedade Geral como por lapso foi mencionado

    Com os melhores cumprimentos

    Luis Filipe Morazzo

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  5. Seja bem-vindo o Luís Filipe Morazzo, ao qual O PRAIA DE BOTE agradece a indicação. Foi de facto com o "Ganda" e com o "Guiné I" que a CCN inciou a sua actividade por volta de 1922.

    Braça e apareça sempre,
    Djack

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    1. Caro Joaquim, esse "Ganda " que se refere de facto um dos primeiros navios da CCN, foi torpedeado na Segunda grande guerra. Este navio que se vê na foto, trata-se do 2º "Ganda" que a CCN teve ao seu serviço e fez parte do famoso despacho 100, entrando ao serviço em 1948.
      Saudações marinheiras

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