sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

[0312] Mais uma "Crónica do Norte Atlântico" de Joaquim Saial no jornal "Terra Nova"




Crónica de Novembro.2012
 
A QUESTÃO DO GADO EM CABO VERDE, NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Já o jornal A União Portugueza(1)  de 9 de Março de 1899(2), repetindo notícia do Commercio do Porto, dava conta da falta de animais para consumo alimentar nas ilhas de Cabo Verde. Importados principalmente de Angola, onde grassavam diversas epidemias, estas não tinham sido acauteladas, pelo que houvera forte mortandade entre eles. De modo que na altura a carne de porco estava a 700 réis e a de carneiro oscilava entre os 800 e os 1$000. A carne destes dois tipos era escassa no momento e prestes a desaparecer, bem como a de galinha, vendida a 1$200 a unidade… Note-se que esta importação de animais de Angola para Cabo Verde durou por muito tempo. Ainda em 1962 transitaram pela cidade angolana de Sá da Bandeira, destinadas ao posto pecuário do Caracul, 260 cabras da raça angorá, 50 das quais iriam depois para Cabo Verde(3).

Por outro lado, no seu terceiro número, em 15 de Maio de 1913(4), O Futuro de Cabo Verde fazia-se eco dos lamentos e reclamações de proprietários e criadores de gado, pela maneira como este era vendido em S. Vicente. Afirmava-se ali que a falta de normas que regulassem essa venda e saída de animais originava muitas fraudes que ainda por cima a maior parte das vezes ficavam impunes. E pedia-se no mesmo local que fosse o município a elaborar uma postura regulamentar onde ficassem plasmadas, sem lugar para dúvidas, as regras de venda e embarque de gado vivo, a fim de se pôr termo às falcatruas que então tinham lugar. Na altura, perto da época das chuvas, lembrava-se à comissão municipal que, à semelhança daquilo que se havia feito em anos anteriores, estava na hora de se adquirirem sementes para em momento oportuno serem lançadas nas zonas de pastos públicos. Dentre estas, por análises feitas em laboratório da cidade da Praia, a forraginosa mais adequada ao dito solo parecia ser a palha “jéjé”, por possuir bastantes elementos nutritivos. E ainda se solicitava ao município sanvicentino que mandasse limpar e reparar os poços onde o gado bebia, em geral imundos… 

O mesmo jornal, em finais de Agosto(5), mostrava que a situação era bem mais grave, pois se há vários anos se notava um decréscimo do gado em Cabo Verde, o decreto de 17 de Agosto de 1912 ainda mais piorara tal estado de coisas. Nesse decreto, achava-se que 108.000 cabeças de gado para uma população de 160.000 almas era número demasiado grande, embora a média não chegasse a uma cabeça de gado por habitante. Contrapunha o jornal com o caso da Austrália, país que só em carneiros detinha uma existência de 87.887.900 exemplares para quatro milhões de indivíduos, o que dava 22 cabeças de gado por habitante. E ainda por cima em Cabo Verde não fora construída uma única estação zootécnica que pudesse fazer esforços tendo em vista um «repovoamento científico e cuidado das espécies de mais utilidade e entre elas [avultava] por milhares de razões a caprina». Em 1908, à beira do fim do regime monárquico, havia em Cabo Verde cerca de 40.000 cabras (não contando com a ilha de Santa Luzia, onde a espécie também perdurava). Contudo, a mortalidade nestes animais era grande, embora no Boletim Oficial de Cabo Verde o veterinário Correia Mendes divulgasse com regularidade artigos sobre a sarna sarcóptica, única doença importante entre o gado caprino. E em Novembro, O Futuro apontava as raças “Núbia” e a “Sokoto” como as mais adequadas para um repovoamento das ilhas, pelas suas excelentes qualidades leiteiras e de resistência a climas agrestes, embora com vantagens para a primeira. Não se esquecia o autor do artigo de apresentar as suas esperanças de que, devidamente elucidados, os produtores de carne substituíssem o gado vacum pelo caprino com as vantagens que daí adviriam, em termos de facilidade de criação.

Apesar dos protestos da imprensa, nestes anos de início de século as coisas não melhoraram muito na área pecuária. Prova disso é a notícia de O Futuro de Cabo Verde, de Maio de 1915(6), que sob o título “Uma iniciativa desastrosa – Extraordinária imprevidência da qual resultaram graves prejuízos – É indispensável o apuramento de responsabilidades”, avançava a morte de nove rezes importadas de Dacar para a Praia. A 13, chegara à capital do arquipélago o palhabote norte-americano Indiana. O navio trazia do Senegal 57 unidades de gado vacum. Apesar de haver notícia de a viagem ter decorrido com rapidez e bom mar, para além das nove mortes, o gado encontrava-se em estado depauperado e já na Praia morreram mais alguns animais, inclusive após o desembarque, na ponte-cais. Dizia-se que o gado havia passado sede durante a viagem. Mas argumentava o jornal e com razão que algo mais devia ter acontecido, pois não era crível que tendo sido a viagem tão célere (cerca de 48 horas), a sede durante o percurso tivesse produzido tais efeitos. Era de imaginar, sim, que à chegada ao embarcadouro, em Dacar, os animais viessem maltratados, sobretudo fatigados, sedentos e com fome. Provenientes do interior do país, era óbvio que a viagem para Cabo Verde, durante a qual também não lhes fora fornecida água e concretizada em penosas condições, lhes fora fatal. Mais uma vez se pedia um inquérito para apuramento de responsabilidades e das devidas indemnizações a quem de direito… Tanto mais que o gado fora importado pela Câmara Municipal da Praia, para fornecimento de talhos que iam abrir nessa altura. O objectivo da autarquia era regular os preços da carne, o que não aconteceu devido às ditas mortes.


Factos como estes que temos vindo a relatar – que demonstram evidente laxismo das autoridades nacionais e locais no que diz respeito a incentivar o povoamento inteligente das ilhas por animais adequados às suas características, bem como as dificuldades de importação de carne, quase nunca superadas –, têm o seu quinhão de culpa nas fomes que em vários momentos das décadas seguintes assolaram o arquipélago. Século XX bem entrado, em 1921, dizia Carlos Pereira (que havia passado por Cabo Verde no Fevereiro anterior), no Diário de Lisboa(7), sob o desassombrado título “A fome em Cabo Verde – A crise apresenta-se com pior aspecto que a de 1903 e nesse ano morreram mais de 20.000 pessoas de fome”: «Há meses que os habitantes de Cabo Verde têm absoluta falta de subsistências, tendo morrido de fome, à data em que escrevo, muitas centenas de criaturas. Por esta Lisboa tenho ouvido dizer, a muitas pessoas, ao lerem as notícias que os jornais publicam sobre o assunto: ‘Não será tão feio como o pintam…’ Pois é mais feio, muito mais feio, creiam.» No seu longo e emocionado artigo, o autor referia-se à crise de cereais, mormente de milho. Mas sendo certo que nem de só de pão vive o homem (também de carne e peixe, nas ilhas este bem mais abundante e sempre último recurso), aqui ficam estes dados para melhor compreensão dos mecanismos das fomes que ao longo dos tempos foram assolando as ilhas cabo-verdianas. 

Mas se o nosso artigo se reporta aos alvores do século XX, nunca esqueceremos aqueles cerca de dois meses de terrível defeso nos primeiros anos 60 durante os quais, em São Vicente (e decerto noutras ilhas), ninguém comeu um bife nem outra carne de vaca e em que os talhos da terra estavam com toda a propriedade da expressão “às moscas”. Valeram lá em casa os amigos que tínhamos a bordo do navio da Armada estacionado na ilha e a outros os que possuíam bons contactos no quartel. Até que, finalmente, para alegria da população, chegou ao Porto Grande o vapor que trouxe o mais que desejado ingrediente alimentício…


[1] Jornal de língua portuguesa da colónia lusitana de S. Francisco, Califórnia, Estados Unidos da América.
[2] P. 2.
[3] Diário de Notícias de New Bedford, 30.Julho.1962, p. 4.
[4] P. 3.
[5] 28.Agosto.1913, p. 3.
[6] 13.Maio, p. 1.
[7] 16.Abril.1921, p. 8.

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