A transcrição das "Crónicas do Norte Atlântico", que há cerca de um ano são publicadas regularmente no jornal/papel "Terra Nova", tem sido uma constante no Pd'B que assim leva estas crónicas e o nome do jornal a um público mais vasto. As crónicas saem mensalmente no TN, algum tempo após oferecemo-las a publicar no blogue parceiro Esquina do Tempo e só então vêm para o Pd'B. Um grande divertimento pessoal, desenterrando das brumas do olvido situações cujo perfil geográfico se desenvolve nas ilhas, nos States e em Portugal, sempre com Cabo Verde em fundo. Hoje é a vez de aqui darmos à estampa um desses textos, sobre um dos mais lembrados navios da rota de Cabo Verde e depois de viagens inter-ilhas. E assim terminamos as comemorações prévias do n.º 500 que será o próximo.
Crónica de Maio.2013
A SAUDOSA ESCUNA MARIA SONY
O Maria Sony, escuna de dois mastros, é um dos derradeiros barcos de pequeno porte da carreira de Cabo Verde. Encontramo-lo pela primeira vez em Setembro de 1959, em Fairhaven, frente a New Bedford [1], onde se encontrava a receber um motor de 200 cavalos [2]. Procuravam os armadores fugir deste modo à sina dos veleiros de antanho, sujeitos aos caprichos do vento, e perpetuar uma tradição de navegação à vela, agora com auxílio de motor, que assim contornaria dificuldades meteorológicas imprevistas. Ideia romântica, afinal com os dias contados – que já eram bem outros.
O Maria Sony em Novembro de 1959 |
O navio, propriedade de Manuel Joaquim Andrade e de seu sobrinho e sócio Cecílio Andrade [3], fora baptizado com o nome de uma das filhas daquele [4]. Construído na Nova Escócia, Canadá, para a pesca da baleia, em 1911, contava na altura cerca de meio século [5] e escalara New Bedford pela primeira vez em 1939. A carreira era anual e a carga diversificada, de roupas, víveres e outros produtos, transportando também passageiros. Desta feita, num trajecto de cerca de 40 dias [6], trouxera das ilhas géneros alimentícios e apenas duas mulheres, uma das quais dera à luz à passagem por Providence, em finais de Julho. Era habitual a escuna demorar-se em preparos e carregamento por meses, como também acontecia desta vez. Na torna-viagem, previa-se que levasse roupas usadas, mobiliário e brinquedos para os pobres de Cabo Verde, fruto da contribuição das colónias cabo-verdianas locais.
Dois meses depois, já com o motor posto, os 21 tripulantes [7] do Maria Sony aprontavam-se para a partida. Cecílio Andrade aproveitava a reportagem do DN para mostrar reconhecimento com imaginação a todos que lhe tinham evidenciado a sua simpatia: «E creiam que os nossos corações levam uma grande recordação desta grande América, cujo nome definimos assim em português: “Amor” e “Riqueza”. Porque as três primeiras letras, “Ame”, representam o presente do conjuntivo do verbo “amar” e as últimas três, o adjectivo “rica”. Portanto, temos “America”». Ele e o tio agradeciam ainda a Adalberto do Rosário, presidente do “Band Club”, a José Monteiro, António Dias e a todos os compatriotas que por qualquer forma tinham demonstrado boa vontade em os auxiliar nas oportunidades em que se haviam visto em dificuldades, bem como às autoridades de Imigração de Providence e New Bedford. E havia desejo de regressar aos Estados Unidos, na Primavera seguinte, com um carregamento de feijão e milho, comestíveis caros às bocas cabo-verdianas da região. Negócios atrasaram alguns dias a partida para S. Vicente de Cabo Verde que só teve lugar a 4 de Novembro [8].
Mais de um mês após, o José Monteiro antes referido receberia um telegrama da Bermuda em que se noticiava que o Maria Sony ali chegara rebocado, depois de apenas ter percorrido 800 das 3000 milhas previstas [9]. Atribuía-se a longa demora à época escolhida para a viagem, de final de ano, em que o mar estava enfurecido e por isso a progressão se tornava difícil. Uma carta de Cecílio Andrade para o DN estabelece o grau de desgraça da viagem [10]: «A infelicidade perseguiu-nos, poucos dias depois de termos saído dessa hospitaleira cidade, e tivemos muita sorte em termos salvo as nossas vidas. O navio recebeu graves avarias, durante um grande temporal que durou 15 dias e que nos obrigou a lançar ao mar 2000 litros de combustível, quase toda a carga do convés e uma pequena parte da carga do porão, para manter o barco ao cimo de água e salvar as nossas vidas ameaçadas. Fomos rebocados para St. George, na Bermuda, pelo vapor norueguês Rio de Janeiro e pelo guarda costa [11] americano Goose Bay, a fim de receber algumas reparações [12].»
Entretanto a situação ia-se agravando. A 21 de Janeiro do ano seguinte [13], o DN era eco de uma carta de João S. Manita, de Somerville, Mass., em que este relatava as notícias que tinha recebido através dos pastores da Igreja Evangélica Portuguesa da Bermuda [14], Henrique J. Santos e João Pacheco dos Santos, sobre os graves problemas do Maria Sony e sua tripulação. As más novas estavam plasmadas num recorte do jornal Royal Gazette e contavam o seguinte: os marinheiros haviam chegado à Bermuda a 13 de Dezembro, sem dinheiro e com o barco em péssimas condições de navegabilidade. Calculava-se que os custos para reparação rondariam 3 a 4000 libras e havia até quem considerasse que a velha escuna não merecia tal reparação. Por outro lado, embora Manuel e Cecílio Andrade estivessem à beira da ruína, o capitão Pedro Évora recusava-se a prosseguir viagem sem que as reparações fossem concretizadas. Cecílio contava que com mulher e cinco filhos em Cabo Verde o barco era o seu único meio de subsistência e que sem ele ficaria na penúria. Mas nem tudo eram amarguras para os homens do Maria Sony. O vice-cônsul português da Bermuda, bem como o consulado português em Nova Iorque estavam atentos e a prestar o apoio possível. A Casa do Marinheiro da Bermuda forneceu-lhes o cartão que lhes permitia ter acesso gratuito aos cinemas locais. A mesma Casa e a comunidade portuguesa ofereceram roupa e alimentos que eram armazenados no Clube Vasco da Gama. Por outro lado, o Departamento da Imigração deu consentimento de trabalho aos homens, a fim de se poderem sustentar e a Corporação de S. Jorge, a Sociedade do Porto e a Igreja de Inglaterra empregaram-nos a todos, oferecendo-lhes salários muito acima dos que ganhariam em Cabo Verde [15]. Mas havia ainda dois problemas graves a resolver: é que durante o período em que o Maria Sony estivera nos Estados Unidos, alguns dos marinheiros haviam casado com jovens americanas e agora não desejavam regressar às ilhas, o que agravava os problemas dos Andrade. Como se isto não bastasse, previa-se que o Rio de Janeiro iria exigir pagamento pelo reboque que tinha feito durante 23 horas…
Quem no entanto punha de facto o dedo na ferida era um articulista do The Standard-Times, de New Bedford [16]. Dizendo que o caso da escuna inspirava mais que comunicados sentimentais, analisava com frieza os factos que segundo ele tinham dado origem à tragédia: «As autoridades federais da Nova Inglaterra, que superintendem ao tráfico marítimo, disseram, particularmente, que o Maria Sony saíra deste porto em precárias condições de navegabilidade, com carga imprópria e perigosamente acondicionada, com uma tripulação insuficiente e sem o necessário equipamento de navegação e sinalização. Baseadas em observações directas e nas declarações do pessoal do Maria Sony, as autoridades federais indicaram ainda que o barco não possuía um navegador competente para uma viagem transatlântica, não tinha um maquinista qualificado nem uma casa de máquinas apetrechada e que nem as bombas do barco nem o motor se encontravam em condições. Além disso, embora uma viagem normal leve a tal barco mais de 30 dias, o capitão disse haver, ao fim de 34 dias, extrema necessidade de alimentos e de água. As autoridades federais verificaram também que as condições sanitárias a bordo do palhabote eram insuportáveis. E de especial importância em tudo isto, é o facto de 22 pessoas terem navegado no Maria Sony e, ao tal fazerem, confiaram as suas vidas aos responsáveis pelo barco e sua operação. Pouco antes de serem levados a reboque para a Bermuda, nos princípios de Dezembro, sofrendo fome, sede e exaustação, haviam já perdido as esperanças de sobreviverem. (…)». Mais adiante, o articulista refere que devido ao facto de o barco ser de bandeira portuguesa as autoridades americanas não o tinham podido inspeccionar nem impedir a sua partida. E ia mais longe, sugerindo que os Estados Unidos da América e Portugal deveriam chegar a acordo relativamente a esse assunto, para evitar futuros desaires [17].
O Maria Sony quedou-se ali, por dez meses. Findo esse tempo, finalmente reparado com ajuda financeira de cabo-verdianos residentes na América [18], largou para Cabo Verde. De S. Vicente, em Janeiro de 1962, Cecílio Andrade, agradecia em verso, ao governador do território, toda a simpatia e apoio que lhe tinham sido oferecidos pelo seu povo [19]. O navio jamais voltaria à América.
Bermuda, Terra Abençoada, Salvé!
I
Bermuda, tu te ergues no Meio-Oceano tão fascinanteLevanta-te do teu pedestal – pois és a mais hospedeira
Das tuas irmãs do Caraibo [20] – e és a rainha mais empolgante,
Conhecida de todos os tempos como pioneira.
II
De San George a Somerset, os teus viajantes cosmopolitasCantaram por todos os cantos os teus encantos naturais,
Que se divulgaram pelo Mundo, e até aos [21] teus pés beijaram os [mareantes
Que sob a tua égide recebem a tua ditosa bênção, destino dos [impiedosos vendavais.
III
E sob as tuas asas, abrigaste-me com carinho dez meses,E, assim, Bermuda, tiraste-me da lama junto da sepultura.
Pois senti a minha alma que ressuscitou muitas vezes
Numa missão caritativa praticada para o bem do povo com bravura [22].
Encontraremos o Maria Sony poucos anos mais tarde, em Agosto de 1964, quando participa no salvamento de alguns náufragos do Frigorífica V que encalhara na Ponta da Baixona, no Fogo [23].
Barco lendário, ainda hoje motivo de saborosas conversas saudosistas entre os anciãos, o Maria Sony é mais um dos veleiros que fizeram a história trágico-marítima de Cabo Verde. Foi baleeiro, cargueiro e navio de passageiros com vela e motor e acabou ingloriamente naufragado no arquipélago [24] que lhe rendeu devida homenagem, em morna [25] e selo de 50$00 [26].
[1] DN (Diário de Notícias
de New Bedford e seguintes), 02.09.1959, p. 1.
[2] DN, 04.11.1959, p. 2: contrariando a informação
presente na notícia anterior, diz-se aqui que o motor possuía 165
cavalos-força.
[3] Cecílio Andrade, de facto homem do mar, é dado como
comandante do Maria Sony mas no DN de
02.09.1959, p. 2, surge uma fotografia com três figuras identificadas como
capitão Pedro Évora, primeiro piloto Jerónimo Ramos e Braz Évora, segundo
piloto. No DN de 21.01.1960, p. 2, essa qualidade de Pedro Évora é confirmada:
«O capitão Pedro Évora recusa-se a dirigir o barco, se este não for reparado
(…)».
[4] Ver fotografia do navio e da madrinha in SILVA, Com.
Conceição “Homens e navios na obra de Teixeira de Sousa”, Revista da Armada, n.º 398, Junho.2006, p. 23; outra filha, Yolanda
Andrade, funcionária da embaixada do Canadá em Dacar, organizou em 2010 na
Câmara Municipal do Sal e na Associação Valorizar Sal uma exposição de painéis
sobre o navio, no âmbito da visita da governadora-geral do Canadá, Michaëlle
Jean, a Cabo Verde – Sapo, Notícias Cabo Verde, 22.05.2010.
[5] DN, 30.10.1959, p. 1.
[6] Variam os números, nos DN de 30.Outubro (40) e
14.Dezembro (44).
[7] DN, 09.11.1959, p. 2; no DN de 02.02.1960, p.1, diz-se
que eram 22.
[8] DN, 04.11.1959, p. 2.
[9] DN, 14.12.1959, p. 2.
[10] DN, 18.12.1959, p. 1.
[11] Navio da Guarda Costeira dos Estados Unidos da
América.
[12] DN, 18.12.1959, p. 1: o DN apelou neste número, com
ênfase, à solidariedade dos portugueses da América (nomeadamente aos de origem
cabo-verdiana) e ao Governo português, no sentido de prestarem ajuda aos
tripulantes do navio: «A situação destes pobres homens é lamentável, visto se
encontrarem já muito empenhados, com os mantimentos no fim, havendo ainda
custosas reparações a fazer no barco para poderem seguir viagem. Como estamos na
época do Natal, época de solidariedade e de compaixão pelo semelhante, apelamos
para a colónia portuguesa – e muito especialmente para as comunidades
cabo-verdianas – para que, por meio das suas organizações ou de uma comissão
para esse fim nomeada, se tire uma subscrição pública, a fim de auxiliar os
corajosos e infelizes tripulantes, a poderem prosseguir na viagem para Cabo
Verde. (…) Por sua parte, ao Governo português cabe auxiliar, na medida do
possível, as vítimas desta tragédia.»
[13] DN, 21.01.1960, p. 2.
[14] Portuguese Evangelical Church of Bermuda, hoje
Evangelical Church of Bermuda.
[15] No DN de 21.01.1960, p. 2, é difícil a leitura do
montante que parece ser de 5/8 dólares por hora.
[16] Citado no DN de 02.02.1960, p. 1.
[17] Sugeria até que o assunto pudesse ser levado ao
Congresso Internacional de Segurança da Vida nos Mares que se realizaria nesse
anos de 1960, de modo que a lei já existente para os barcos com mais de 500
toneladas de deslocação se pudesse aplicar também aos veleiros e outros navios
de menor porte que realizavam viagens de alto mar.
[18] http://www1.umassd.edu/specialprograms/caboverde/cvpacket.html (texto de Ray Almeida, visto em
27.04.2012)
[19] Só divulgado no DN em 08.08.1962, p. 2.
[20] (sic)
[21] (sic)
[22] Referência aos materiais doados ao povo de Cabo Verde
que o Maria Sony transportava,
aquando do acidente.
[23] DN, 24.08.1964, p. 1.
[24] Por volta de 1980 (ano que não conseguimos confirmar).
[25] Grupo Túlipa
Negra, disco Curtição (1982).
[26] Desenho de M. Schultz, 1987.
Na minha juventude conheci bem "MARIA SONY". Lembro-me vê-lo a manobrar com o motor cujo chaminé fora do habitual, no lado do estibordo, cuja saída virado para água, e em funcionamento saía fumo a água ao mesmo tempo. Achava aquele motor estranho, pois o comum era chaminé sobre a casa das maquinas, e aquela água de refrigeração saindo numa bica no costado do navio."COISAS DE CRIANÇA".
ResponderEliminarConheci bem o seu Proprietário e Armador, era mais conhecido por "Nhô Lela Tilvina" e foi durante muito tempo Presidente do Clube Sportivo Derby. Foi uma tristeza a quando da notícia do naufrágio de Maria Sony
Tal como o companheiro Marcos Soares,também conheci o Maria Sony nos meus tempos de menino e moço. Esta narrativa dá para termos uma ideia do que era lutar pela vida em Cabo Verde derriba d'aga de mar. Hoje, nos tempos em que se cruza o Atlântico em poucas horas, parece inverosímil que em meados do século XX ainda se viajava para a América em cascas de nós. Vivia-se a um ritmo em que o tempo quase parava para se poder respirar e tratar das necessidades mais prosaicas. Vivia-se abdicando-se de qualquer ideia de escala de valores materiais ou de uma verdadeira contabilidade de lucros e perdas. Tenho dificuldade em perceber que verdadeiro rendimento proporcionava a um armador uma viagem destas, a não ser, talvez, o gosto pela aventura ou o apelo às terras longínquas que mora no coração cabo-verdiano. Diria que no fundo tudo isso era coisa de poeta, como nos mostra o Cecílio Andrade com os seus versos.
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