quarta-feira, 16 de outubro de 2013

[0599] Post n.º 300 de 2013 - "Crónica do Norte Atlântico" de Junho deste ano. Ultrapassada por outros assuntos, só agora aqui surge



Crónica de Junho.2013
 
VELEIROS DA "CARREIRA DE CABO VERDE - EUA" E OUTROS NAVIOS AMERICANOS RELACIONADOS COM AS ILHAS


Adelaide

Uma das mais antigas notícias que até agora encontrámos alusivas à "carreira de Cabo Verde" é a do iate Adelaide, de Outubro de 1885 [1]. Dizia o jornal americano de língua portuguesa O Progresso Californiense que este barco saíra a 2 desse mês de New Bedford, com destino à Brava. Comandava-o o capitão Lopes (pelo apelido, eventualmente cabo-verdiano) e transportava oito passageiros e mercadorias. Os consignatários do navio eram Loum Snow e o filho [2], também proprietários da barca Verónica.

Spring Bird

No dia 12 de Novembro de 1885 saía de New Bedford o iate de 80 toneladas Spring Bird [3], para a Brava. Comandava-o João Tiago Gomes, simultaneamente dono de uma hospedaria na rua South Water. O navio fora fretado em Provincetown, Mass., por João T. Gomes, António Faria e Arsénio Freitas, tudo gente de Cabo Verde. Levava a bordo 44 pessoas, sendo 19 delas passageiros. A carga era constituída por milho ensacado, farinha e petróleo.

Na Portuguese Passenger Master List indica-se que o Spring Bird chega a New Bedford em 30 de Abril de 1886, obviamente de regresso de Cabo Verde [4]. É então que rebenta uma polémica envolvendo o próprio João Gomes que pretensamente ganhara dinheiro à custa de excesso de passageiros trazidos das ilhas em condições degradantes [5]. Um telegrama vindo de Boston, divulgado pelo Progresso Californiense a 15 de Maio, dava conta pormenorizada dos acontecimentos. Ao que parece, não tendo conseguido carga para a viagem de regresso de Cabo Verde, tinha no entanto ali arranjado 75 passageiros «de ambos os sexos e de todas as idades» com pagamentos que oscilavam entre os 20 e os 25 dólares. Alguns, sem dinheiro, tinham-lhe pago em géneros e em propriedades. Mas para esses passageiros, não se tinham adquirido provisões e a cama, no porão, era o lastro do navio, onde se deitavam sem qualquer outro conforto. Pior que isso, quatro raparigas entre os 13 e os 15 anos tinham ficado na pequena câmara do capitão… Três dias depois da partida do arquipélago, a ração diária seria apenas constituída por um bolo do milho, água, chá e café. Agravando a situação, a viagem que se esperava que durasse 20 dias prolongara-se por um mês, pelo que os passageiros tinham chegado aos Estados Unidos depauperados. O capitão foi por esse motivo acusado de ter violado as normas de transporte de passageiros e metido na cadeia, a aguardar julgamento. Porém, a 12 de Junho, o mesmo periódico suavizava as acusações feitas ao capitão [6]. O exemplar do jornal está em muito mau estado, com partes em falta, mas ainda assim percebe-se que agora se considerava que a situação fora empolada: «À sua chegada, tudo se encontrou legal: um ou dois dias depois é que os passageiros, alguns, se queixaram, apresentando como causa terem passado privações, de má acomodação e não sei de que mais. O facto é, segundo narra a crítica, que João Gomes é vítima de vindicta mesquinha e que alguns passageiros que vieram para (…) pagarem as passagens e querendo (…) …[esqui]var-se a isso foram aconselhados (…) daqueles meios para o conseguir (…) questão está nos tribunais, esperando-se solução, que será publicada.» Mas o certo é que o desfecho deste imbróglio não foi favorável a João Tiago Gomes. A 26 [7], o Progresso informava que o capitão fora condenado no U. S. Circuit de Boston a três meses de prisão, a mil dólares de multa e ao pagamento das custas do processo. Na altura, estava encarcerado na prisão de Worcester, Mass. Não bastando isso, o homem enlouquecera. E o Progresso avançava com as causas: «Foram uns tipos ignorantes, sem o menor viso de sentimentos humanos, que promoveram esta causa contra o honrado João Gomes o qual, durante a sua estada na Brava, quando prevalecia ali uma terrível seca e que o povo se encontrava em circunstâncias desgraçadas, desmaiando pelas ruas, tal era a fome, tomou os passageiros que a lotação do navio permitiu e trouxe-os para este país, livrando-os de uma morte lenta e horrível. Alguns deles, senão a maior parte, hipotecaram a João Gomes alguma propriedade que possuíam, como garantia do pagamento da passagem quando chegassem a este país. Destes, foram alguns aconselhados ao chegarem aqui que, para se esquivarem ao pagamento das passagens deviam acusar o capitão do navio de mau tratamento, de péssimas acomodações e de ter trazido excesso de passageiros.»

Santo ou demónio, altruísta ou usurário, João Tiago Gomes fica como personagem dramática da carreira de Cabo Verde. A história de que foi protagonista parece mostrar-nos nas entrelinhas facetas de aparente mau estar e rivalidades existentes no meio marítimo local. Por outro lado, não podemos deixar de sentir algum desconforto com o processo como os desgraçados famintos da Brava pagaram a sua viagem para os Estados Unidos…

Navios baleeiros e barris de óleo de baleia no porto de New Bedford (cerca de 1940)

Napoleon

O Progresso Californiense de 6 de Agosto de 1885 [8] relatava que a escuna James A. Garfield, vinda do Ártico, trouxera notícias dos naufrágios da baleeira Napoleon, de New Bedford [9], e da Gazelle, de S. Francisco. Mas se esta não perdera homem nenhum, a Napoleon tivera sorte diversa: 22 tripulantes haviam perecido. A 13 [10], a notícia era mais desenvolvida e dava conta da identificação dos náufragos. Entre eles, havia vários do Massachusetts, Maine, Ohio, Nova Iorque, Japão, Peru, Áustria, Irlanda (Dublin), Dinamarca, Inglaterra, Índias Ocidentais, Holanda e mais de uma dezena de Cabo Verde: António Gomes, António Lourenço, Joaquim Coelho, José António, José Joaquim, António Manuel, António Melander, João Borba [11], José Manuel, Domingos Borges, Pedro Wilson, Francisco António e João Lomba, este especificamente identificado como sendo da Brava.

Mary E. Simmons

A 29 de Novembro de 1885 [12], o capitão Mandley da escuna baleeira Mary E. Simmons informava de New Bedford que perto de Cabo Verde, um bote comandado pelo terceiro-piloto João Pereira fora afundado por uma baleia, não tornando a ser visto nenhum dos seus tripulantes, quase todos naturais dos Açores e de Cabo Verde. Mas as relações da Mary E. Simmons com o arquipélago africano não acabaram neste episódio. A 7 de Janeiro de 1886, quando seis dos tripulantes regressaram a New Bedford  [13] – entre os quais os cabo-verdianos Lourenço Ludovino e António Manuel de Lima –, soube-se o resto da sua saga: no final do Novembro anterior, ao avistarem baleia, deitaram três botes ao mar. Dois deles fisgaram cada um seu cetáceo que trouxeram para perto do Mary. Porém, depois de terem trancado uma baleia, esta mergulhou e subiu em seguida debaixo de um dos botes que lançou pelos ares, bem como os tripulantes do mesmo. Por um acaso da sorte conseguiram virá-lo e reentrar nele, tendo ficado à mercê do destino três dias e duas noites sem água nem comida. Valeu-lhes serem salvos por uma galera inglesa que os levou para Pernambuco, de onde seguiram para Nova Iorque e daí, de regresso a casa.

Eis pois um curto relato resultante de longa e profunda investigação que temos vindo a realizar, relativa às relações do arquipélago cabo-verdiano com a América – no caso vertente, a sua história trágico-marítima. Em função do extenso material recolhido, podemos assegurar aos leitores muitas outras crónicas do género, sempre eivadas de dramatismo e angústia, mas também plenas de heroísmo e de persistente esperança numa vida melhor.

NOTAS

[1] O Progresso Californiense, 15.10.1885, p. 2.
[2] Loum Snow & Son, de New Bedford. Antes, este Snow fizera parte da firma Cook & Snow, sempre ligados ao negócio baleeiro e à marinha mercante.
[3] Notícia do New York Times, 13.11.1871, dá-o como sendo então de Canning, Nova Escócia, neste ano de 1871, a carregar café.
[4] http://www.dholmes.com/ships.html (visto em 28.04.2012).
[5] O Progresso Californiense, 15.05.1886, p. 2.
[6] O Progresso Californiense, 12.06.1886, p. 1.
[7] O Progresso Californiense, 26.06.1886, p. 2.
[8] P. 2.
[9] A 5 de Maio.
[10] O Progresso Californiense, 13.08.1885, p. 2
[11] Alguns destes tripulantes podem não ser de origem cabo-verdiana. Por exemplo, o apelido Borba é relativamente frequente nos Açores.
[12] O Progresso Californiense, 14.01.1886, p. 2.
[13] O Progresso Californiense, 04.02.1886, p. 2.

2 comentários:

  1. A aventura trágico marítima cabo-verdiana ou o caminho marítimo para a América este novo mundo onde se recriou a maior comunidade diaspórica cabo-verdiana.... Trabalho interessante para os sociólogos e os historiadores

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  2. Todo este trabalho que o Joaquim está a fazer sobre o passado da nossa navegação atlântica é de um valor enorme. Antes disso eu não fazia a mínima ideia das circunstâncias em que se viajava para a América a bordo destes veleiros, e é surpreendente saber que no século XIX estas viagens eram quase uma rotina. Bem gostaria de saber se nos Açores acontecia o mesmo.

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