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Arsénio Fermino de Pina |
Acto de lançamento do livro "Cabo Verde, os caminhos da regionalização"
Depois de termos ouvido os oradores anteriores, pouco há a acrescentar. Todavia cabe-me a vez para vos dizer algo da minha justiça como um dos coautores.
Como noutras ocasiões escrevi, por a democracia nos ter sido ofertado, a todos, o espaço à liberdade propício ao confronto de ideias opostas, reincido neste livro, de braço dado com amigos sem medo de gongons. Por ser matéria de que pouca gente fala, mesmo pessoas com conhecimentos e peso intelectual, com receio de cair em más graças do poder centralizado, eu, que não tenho nada a ganhar pessoalmente, podendo, até, perder, meto-me no que foi transformado em reola nacional. Não que seja um valentão das dúzias, mas por mero dever intelectual, como activista da sociedade civil.
Os governantes podem estar contra ou a favor da regionalização, mas o que não podem, nem devem, como fizeram, é ignorá-la durante tanto tempo com derivativos. Não devem, tão pouco, eternizar o impasse em que ficou a regionalização, relegando-a às calendas gregas, com cumplicidades que desacreditam as instituições e o regime, por ser política furtiva, esquiva, no seu pior.
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Aspecto do público - Foto José Fortes Lopes |
Há muito que eu e outros elementos da sociedade civil e até do topo do Estado, e ultimamente, partidos políticos um tanto sobressaltados com a nossa iniciativa que deveria caber-lhes, vimos fazendo propostas e falando da necessidade de estudo da aplicabilidade da regionalização e descentralização entre nós. Recentemente, o nosso Primeiro-Ministro, parecendo admiti-la sem reservas, aplicou-nos, futebolisticamente falando, um suposto valente cravo, garantindo reforço ao Municipalismo, o que, sem nos atrapalhar na jogada e sem árbitro para lhe exibir um cartão amarelo, nem é má decisão de todo, por os municípios poderem participar na regionalização, sem se subverterem, pelo contrário, com proveitos mútuos, embora achemos demasiado o número de municípios criados em períodos pré-eleitorais por motivos, convenhamos, pouco convincentes e suspeitos. Não temos nada contra o municipalismo por ser, com a descentralização, vector do ideário republicano e democrático, mas não manipulado como Cavalo de Troia.
Não vou escorar-me em citações de políticos, filósofos e economistas para reunir argumentos favoráveis à regionalização, nem ela disso necessita. Servir-me-ei de uma freira de clausura, Teresa Forcades, catalã, do Mosteiro em Montserrat, Barcelona, onde vive e lhe é permitido sair para as suas acções de ensino e escrita de livros, sem descurar a meditação e as orações na intimidade da sua clausura, quando antes ajudava na enfermagem. Visitou, há pouco tempo, Portugal para o lançamento do seu livro, "Teologia Feminista na História", traduzido em Português. Provoca quase sempre controvérsia quando abre a boca, por ser muito culta e humana, ter ideias próprias, e dizer procurar simplesmente justiça social. Freira feminista, não parou de defender a igualdade de géneros, dentro e fora da Igreja. Não admira, pois, que escandalize e irrite muita gente, por defender o direito ao casamento homossexual, a ordenação de mulheres na Igreja Católica, entre outros direitos considerados, por alguns conservadores, autêntica heresia. Enfim, uma avis rara no contexto católico a esse nível.
Ela, ainda por riba, não se fica na religião. Lidera um movimento que defende o conceito de “anticapitalismo”, muito antes da declaração do Papa Francisco de que “o capitalismo selvagem mata” e uma democracia mais próxima das pessoas que garanta um verdadeiro Estado social. Teresa Forcades acredita na regionalização, onde os executantes estejam próximos das comunidades, aceites - quando nomeados e escolhidos em eleições - por membros dessas comunidades, e não pela conveniência dos partidos políticos. “Assim é provável que venham a ter mais vergonha se lhes for apontado o dedo, quando cometem irregularidade e ilegalidades”, explica ela. Os políticos actuais, diz ela, “estão demasiado longe dos cidadãos, nunca são responsabilizados pelas decisões, deitam as culpas nos outros quando as coisas correm mal, não tendo o povo maneira de os sancionar”. Pelas suas posições desassombradas, chamam-na de freira vermelha.
Realmente já é tempo de reformar o centralismo, mesmo o democraticamente adjectivado, aceitável no início da nossa independência, mas por período limitado – máximo de dez anos – por ter havido necessidade, nessa altura, de um poder central forte, reconhecido internacionalmente, que angariasse, recolhesse, gerisse a ajuda da solidariedade internacional e desse um pontapé de saída na criação do Estado, mesmo enviesado, como foi, a completar a Nação já constituída. Obviamente que a regionalização terá de ser administrativa, política, económica, financeira, ambiental e cultural. Com a regionalização, grande parte do aparelho do Estado terá de ser transferido para as regiões, ficando o Estado central com os Macro-Sectores do país e as principais funções inerentes à soberania – Negócios Estrangeiros, Defesa, Planificação Financeira Macro-Económica, etc. Não há que ter medo da vertente política, dado que os poderes e funções serão delegados às regiões pelo poder central, devendo estabelecer-se uma sã articulação entre as esferas do poder local e estatal central, e não arbitrariamente decididos pelas regiões, que as exercerão sob supervisão do poder central quanto ao seu cabal cumprimento, sem outras interferências das tradicionais burocráticas, tão estimadas e cultivadas para emperrar o andamento dos processos, criando condições propícias à corrupção. A delegação de alguns poderes, conferindo liberdade aos cidadãos da periferia de escolher e eleger os seus representantes para a governação regional e local é, simplesmente, o ponto exacto em que a Democracia se separa da não-democracia e o poder central transpõe o Rubicão. O nosso Governo parece não querer transpor o Rubicão nesta matéria. A travessia do Rubicão, é bom de ver, não convém ao centralismo Praiense por não beneficiar Santiago e os detentores do poder. As razões da decadência económica de S. Vicente e do marasmo de algumas ilhas residem nessa prioridade absoluta atribuída a Santiago que, além do orçamento do Estado, mama, sozinho, no úbere da cooperação. A ilha de S. Vicente vem sofrendo a condenação, sem culpa, e pasmo-me com a inércia da sociedade mindelense. Onde teria ido parar a tradição de irreverência e de contestação dos mindelenses, a qual, parafraseando o nosso filósofo do povo, Djunga Fotógrafo, nem têm a liberdade e a genica para dar murros na mesa face a tamanha injustiça?
Uma outra limitação à regionalização apontada pelo Governo, a que o nosso Primeiro-Ministro denominou de falta de enquadramento constitucional, é a necessidade de revisão da Constituição. Contra argumentei, por escrito, citando esse bodona da política e da ronha, Charles-Maurice Talleyrand, que foi ministro, embaixador e primeiro-ministro, durante a Monarquia absoluta francesa, atravessou incólume a Revolução Francesa, prestando os seus bons serviços, prosseguindo pelo período napoleónico e a Monarquia dos Bourbons, que não prescindiram dos seus serviços, que ensinou que não é de legalidade que se trata para se rever a Constituição, porque os preceitos constitucionais costumam ter elasticidade suficiente para consagrarem o que a necessidade exige. Afinal, a constituição é a expressão da vontade do povo num dado momento e contexto e há necessidade de ser revista.
Outrossim, embora se tenha lançado na opinião pública a confusão entre autonomia política, reclamada pela regionalização, que é compatível com Estado unitário de direito democrático, e separatismo, que não o é, cabe-nos esclarecer essa tramoia, razão pela qual nos mobilizámos para compor este livro – Cabo Verde, Caminhos da Regionalização – dedicado aos governantes e à sociedade civil, onde os mais diversos aspectos da descentralização e regionalização são examinados por vários autores, com referências detalhadas a experiências noutros países, particularmente na Alemanha, Suiça e França, bem como o importante papel dos emigrantes, a história da nossa emigração, o papel do cinema e teatro, iniciados em S. Vicente, no famoso Eden Park, da família Marques, marco importante da memória colectiva do Mindelo, como bem escreveu Luiz Silva, para a consciencialização nacional como autêntica universidade popular, entre outros assuntos palpitantes de interesse geral, como, por exemplo, o Crioulo e o Português, e o integrismo étnico de alguns santiaguenses.
Boa leitura.
Obrigado pela atenção.
Lisboa, 25 de Julho de 2014
Arsénio Fermino de Pina