Adriano Miranda Lima |
(conto cabo-verdiano de passagem do ano)
Apesar dos seus 90 anos de idade, nhô Amancinho ainda se encontrava suficientemente rijo para cuidar de si. Pequeno e magro, só as costas um pouco dobradas e as pernas já menos expeditas denunciavam a sua bonita idade. Dispensava ajuda nas lidas diárias, e ele próprio confeccionava as suas morigeradas refeições. Morava num cutelo, habitando uma casinha da grande propriedade agrícola onde durante largos anos foi o feitor, muito bem considerado pelo dono e sua família. Foi pelo seu merecimento que lhe outorgaram o direito de viver ali até ao fim dos seus dias. Naquela zona do interior do Paul, ilha de Santo Antão, o habitat humano era disperso, como o era na generalidade da ilha, com as pequenas casinhas rurais salientando-se no meio das meradas (1) talhadas nos socalcos das encostas. Como vizinhança mais próxima, nhô Amancinho tinha nha Clarisse e a sua filha, de nome Joana. Volta e meia, uma ou outra apareciam por lá para saber se estava tudo bem com ele, e sempre que calhava levavam-lhe uns pequenos mimos, como um pouco de cuscuz, uma batata-doce assada, uma canequinha de mel de cana, ou mesmo um caldinho quente acabado de fazer. Nessas alturas, trocavam sempre dois dedos de conversa e o tema era invariavelmente a família, o estado do tempo ou as lembranças dos tempos antigos. Nhô Amancinho habituara-se há muitos anos a viver em solidão, depois da morte da sua companheira e mãe dos seus dois filhos, um que morreu ainda rapaz e outro, o Mário, que vivia actualmente na Praia.
Apesar dos seus 90 anos de idade, nhô Amancinho ainda se encontrava suficientemente rijo para cuidar de si. Pequeno e magro, só as costas um pouco dobradas e as pernas já menos expeditas denunciavam a sua bonita idade. Dispensava ajuda nas lidas diárias, e ele próprio confeccionava as suas morigeradas refeições. Morava num cutelo, habitando uma casinha da grande propriedade agrícola onde durante largos anos foi o feitor, muito bem considerado pelo dono e sua família. Foi pelo seu merecimento que lhe outorgaram o direito de viver ali até ao fim dos seus dias. Naquela zona do interior do Paul, ilha de Santo Antão, o habitat humano era disperso, como o era na generalidade da ilha, com as pequenas casinhas rurais salientando-se no meio das meradas (1) talhadas nos socalcos das encostas. Como vizinhança mais próxima, nhô Amancinho tinha nha Clarisse e a sua filha, de nome Joana. Volta e meia, uma ou outra apareciam por lá para saber se estava tudo bem com ele, e sempre que calhava levavam-lhe uns pequenos mimos, como um pouco de cuscuz, uma batata-doce assada, uma canequinha de mel de cana, ou mesmo um caldinho quente acabado de fazer. Nessas alturas, trocavam sempre dois dedos de conversa e o tema era invariavelmente a família, o estado do tempo ou as lembranças dos tempos antigos. Nhô Amancinho habituara-se há muitos anos a viver em solidão, depois da morte da sua companheira e mãe dos seus dois filhos, um que morreu ainda rapaz e outro, o Mário, que vivia actualmente na Praia.
Nesse dia 31 de Dezembro, nhô Amancinho levantou-se à hora habitual, com o Sol ainda sem despontar por trás do cume da montanha sobranceira ao lugar. Tomou o cafezinho da manhã e a seguir foi logo regar a hortinha de onde colhia a batata-doce, o inhame e as couves das suas refeições diárias, sendo a principal normalmente restringida ao almoço. O dia de São Silvestre era para ele como outro qualquer. À excepção de alguns foguetes que um ou outro entusiasta costumava atirar aqui e além pelos pequenos aglomerados das encostas, pouco ou nada diferenciava esse dia dos restantes do calendário. Ah, haveria também aquele bater de pilão logo à noite a moer a farinha de milho para o cuscuz, que ecoaria então por todo o lado. Sim, porque mesmo no interior de Santo Antão, o cuscuz tradicional não se dispensava na noite de São Silvestre.
Imagem de Santo Antão (saída de Ribeira Grande, para Ponta do Sol) Foto Joaquim Saial, 1999 |
Foi com estes pensamentos em tropel que o velho viu passar as horas vertiginosamente até que o Sol, já a meio do seu percurso rumo ao poente, lhe anunciava que o seu filho não tardaria a galgar a ladeira pela única trilha nela rasgada. Mas a verdade é que o Sol se pôs e do Mário nenhum sinal. A nha Clarisse, já no quintalinho a depenar a galinha, estranhando a demora da aguardada visita, procurou no entanto tranquilizar nhô Amancinho:
─ Ó vizinho, num dia como hoje muita gente desembarca no Porto Novo e os carros não dão para levar tudo duma só vez. O Mário pode não ter tido lugar mas há sempre uma segunda leva...
─ Deus a ouça, Clarisse, Deus a ouça…
─ Bem, melhor dizendo, que ouça São Silvestre, que é santo da nossa alegria ─ respondeu a Clarisse.
Mas nhô Amancinho começou a ver passar as horas e já não via motivo para grande optimismo. Começou a ficar pensativo, ensimesmado, principalmente depois da poalha do crepúsculo cair sobre o lugar, antecipando a noite, que não tardou a instalar-se. No entanto, não quis que se alterasse o que estava previsto e pediu para as suas amigas avançarem com o jantar, na esperança de que o Mário sempre viria para completar a moldura humana à volta da mesa. As duas vizinhas iam fazer-lhes companhia nessa noite e a Joana começou a pôr a mesa, sobre a qual estendeu uma toalhinha lavada que estava guardada na arca do dono da casa, enquanto nha Clarisse acendia o lume e adiantava os preparativos para confeccionar o repasto.
A dado momento, viram alguém a aproximar-se ao longe em passo acelerado. Mas tanto quanto permitia a escassa visibilidade, o vulto não parecia ser o do Mário, que é pessoa bem mais alta e encorpada. E nha Clarisse não demorou a reconhecer o rapaz da pequena mercearia a meia légua de distância, de onde é normalmente redistribuída a correspondência destinada às redondezas. Era, sim, o portador de um telegrama. Aberta a missiva, a Joana foi chamada a ler o seu conteúdo: o Mário explicava que lamentavelmente perdeu o avião na Praia e pedia imensas desculpas ao pai, prometendo visitá-lo numa próxima oportunidade.
Nhô Amancinho ouviu tudo com ar dorido, não proferindo uma única palavra ou esboçando qualquer gesto. Procuraram animá-lo dizendo-lhe que o filho não tardaria a agendar outra visita. Mas, como se mais ninguém ali estivesse, sem proferir palavra, o velho foi a uma prateleira buscar a sua rabeca, instrumento que possuía desde os seus tempos de rapaz e com que animava as pequenas festarolas das redondezas. Costumava contar que foi isso que o ajudou quando, em tempo de seca prolongada, ainda muito novo, foi numa leva de contratados para as roças de São Tomé. Para ele, sem esse passatempo teria morrido de saudade ou mirrado de corpo e alma, explicando que a alma mantida viva foi a salvação do corpo. Porém, com a rabeca na mão direita e o arco na esquerda, e tomando a pose de quem ia começar a tocar, nhô Amancinho ficou repentinamente estático, sem esboçar o mínimo movimento, parecendo uma daquelas estátuas-vivas que se postam nas ruas movimentadas das grandes cidades. Surpreendidas com a cena oferecida pelo seu vizinho, mais ainda ficaram as duas mulheres quando ele subitamente deu um grito e pousou o instrumento, clamando em voz alta:
─ Meninas, tristezas não pagam dívidas! Vamos ao jantar, quem está, está, quem não está que estivesse! ─ E sentaram-se os três para atacar o que cheirava bem na panela que nha Clarisse colocara sobre a mesa. A conversa animou-se como sempre com as peripécias que o idoso contava sobre as águas que correram debaixo da ponte da sua vida; as dificuldades que sentiu nas suas andanças por São Tomé, coisa para esquecer, conforme acentuava sempre; a amizade do dono da propriedade onde trabalhou quase toda a vida e desde o regresso de São Tomé; a mágoa pela perda do filho em idade jovem e mais tarde da mulher; em suma, passou em revista praticamente aquilo que as suas interlocutoras já conheciam, de tão repetido, de conversas anteriores. Por fim, lamentou a ausência do Mário, tanto mais depois da expectativa criada à volta da sua visita.
Terminado o jantar, levantou-se, mostrando já o efeito indisfarçável de três grogues bem aviados, e disse, desafiando as suas vizinhas: ─ Meninas, vamos ao baile! ─ Nisto, pegou na rabeca e atacou freneticamente as suas cordas tocando as modinhas dos bailes populares antigos, enquanto incitava as companheiras a dançar dentro do espaço restrito da habitação. Elas não se fizeram rogadas e enlaçaram-se em jeito de dança ao ritmo da música mexida derramada pela rabeca. O tocador, que não tinha par disponível, ao mesmo tempo que fazia vibrar o instrumento fez dele o seu par envolvendo-o num estreito amplexo, após o que o seu corpo franzino começou a rodopiar à volta das duas mulheres, como se tivesse sido insuflado de uma carga eléctrica, a desmentir os seus 90 anos. Assim foi durante cerca de uma hora, sem que sinais de cansaço aflorassem ao seu rosto.
A páginas tantas, e depois de tanto dar ao pé, nhô Amancinho disse: ─ Alto e pára o baile, raparigas! Então, a música da rabeca transitou do ritmo acelerado dos bailinhos para a dolência dos momentos graves. O tocador, de olhos vidrados e fixos na rabeca, qual cobra fitando a presa, parecia ter-se transferido para outra dimensão da realidade. Agora, a música arrastava-se em notas prolongadas e carregadas de melancolia, numa espécie de rapsódia que percorria o registo cabo-verdiano do sentimento magoado, da dor da saudade, da tristeza da hora di bai (2), dos males do amor. Nhô Amancinho e a sua rabeca formavam uma mesma entidade, homem e instrumento unidos na mesma vibração de alma, não se distinguindo onde estavam as cordas musicais e onde estavam as mãos febris que as faziam vibrar. Tal era o estado catatónico do seu vizinho que nha Clarisse e a filha perceberam que ali havia coisa para durar e não se sentiram com coragem para desfazer aquele quebranto. Se assim o pensaram melhor procederam quando saíram em silêncio, pé ante pé, apenas com um leve sinal de mão dirigido ao seu anfitrião.
Horas depois, já em sua casa, elas ainda ouviam os acordes da rabeca de nhô Amancinho a escapar-se pelas frinchas do seu tugúrio, como que procurando auditório entre o povo das cercanias.
(1) Designação de horta na expressão popular santantonense.
(2) Hora de partida, em crioulo cabo-verdiano.
Tomar, Dezembro de 2015
Adriano Miranda Lima