ELOS DE LIGAÇÃO (2)
Mateus percorria as ruas de Boston numa incrível solidão interior. Não o incomodava o risco de se perder num meio desconhecido. Perder-se de onde? Perder-se de quê, de quem? Naquele momento irmanava-se a todos, num sentimento de unidade total com todos com que se ia cruzando. Homens, mulheres, crianças. Uma mulher interessante, atraente passou por ele. Olhou para ela sem reservas e a mulher sorriu. Mateus retribui-lhe o sorriso. Que estaria ela a pensar? Possivelmente nunca mais voltaria a vê-la, mas algo fica de cada um no outro por momentos quando se sorri assim um para o outro. O que leva duas pessoas desconhecidas a sorrirem dessa forma… Raro, mas acontece. Quem sabe, se se encontrassem de novo, talvez até conversassem Talvez se criasse entre eles um elo de confiança. Não valia a pena conjecturar, fantasiar. Naquele momento apenas queria reencontrar os caminhos de um rumo perdido nos percursos do erradio.
Foi-se aproximando da estação de metro de Government Center. Lá dentro, um sujeito bem-disposto, entre os trinta e oito e os quarenta anos, tocava viola e cantava
“You are always on my mind…” .
Não, não fazia lembrar nada Willie Nelson, em nada absolutamente. Tinha uma caixa no chão para dentro da qual as pessoas iam deitando moedas e notas.
- Some people can get away with anything…, comentou uma mulher que, também, tinha ali parado para presenciar a cena - Why bother to get a job?
Quem sabe se era assim mesmo que o homem da viola pensava? Trabalho para quê, se assim se desenrascava? Possivelmente, não exigia mais da vida. Ou talvez a própria vida o tivesse atirado para aquela saída. Quem sabia afinal da vida daquele homem?
Tirou algumas moedas do bolso e deixou-as cair dentro da caixa. O tocador de viola agradeceu com um aceno e continuou a cantar, enquanto Mateus seguia o seu caminho e procurava a linha que o levava até Maverick Station.
Fora da estação, o ambiente já lhe parecia familiar, de tanto circular naquele bairro. A maior parte das pessoas que ali viviam eram hispânicas, como eram hispânicos muitos dos estabelecimentos comerciais, sobretudo os pequenos restaurantes, onde serviam “burritos”, “tacos” e outras comidas típicas. Entrou num minimercado e, depois de alguma pesquisa, encontrou um pacote de alimento congelado, daqueles que se aquecem em micro-ondas, apanhou um pacote de pão, pagou e saiu.
Ao aproximar-se da esquina da rua que o conduzia até à casa dos seus amigos onde estava hospedado, viu um casal de meia-idade aí parado com um ar de quem procurava algo. Olhavam para uma rua, depois para outra de um dos cruzamentos da praça e falavam um com o outro. O que aconteceu em seguida foi uma espantosa coincidência, daquelas que contadas deixam dúvidas sobre a sua veracidade. A verdade, porém, é que foi precisamente naquela esquina de uma das ruas de East Boston, que Mateus se encontrou casualmente com aquele casal que ele, imediatamente, identificou como sendo da sua ilha natal pela maneira de vestir, pelo modo de estar e um certo quê instintivamente perceptível logo à sua intuição. E aquele lenço azul claro na cabeça, amarrado à maneira da gente do campo da Brava e aquela saia cor-de-rosa, mais a blusa lilás de um tecido que parecia ser de seda não podiam enganá-lo. Assim que se aproximou deles, a mulher perguntou-lhe no seu inglês se ele sabia onde é que ficava um serviço de seguro social que havia ali perto. Em vez de lhes dar a informação que pediam, que ele tinha, disse-lhes em crioulo, à procura de uma confirmação do seu palpite.
- Nhos pode papia cu mi na criolu…”
Estabelecido o reconhecimento mútuo da sua origem comum, o diálogo assumiu aquele à vontade natural entre patrícios, e a conversa tomou outro rumo. De onde eram lá na ilha, quem eram as respectivas famílias e assim por diante. Mas a coincidência mais feliz para Mateus era ter descoberto no decorrer da conversa que aqueles seus conterrâneos eram inquilinos de uma prima sua que vivia numa localidade não muito longe dali, do outro lado do rio Charles. Quando se despedirem deixaram a Mateus o seu endereço e número de telefone. Domingas, sua prima, tinha alugado àqueles amigos e patrícios o rés-do-chão da sua casa, ficando ela, o marido e o filho a morar no andar de cima.
Naquela mesma tarde Mateus telefonou à prima e dentro de pouco tempo o marido dela foi buscá-lo no seu carro à casa onde residia em Boston.
Mateus não via Domingas desde a sua passagem por Lisboa alguns anos antes, quando tinha emigrado para a América. Tinha ficado em casa dos seus pais durante bastante tempo, enquanto aguardava que a chamassem dos Estados Unidos. Não tinha mudado muito: magra, de modos comedidos, sorria pouco e tinha um timbre de voz forte quase sensual, que contrastava com os seus modos contidos e brandos. Sem elevar o tom de voz, e talvez por isso mesmo, mantinha esse timbre, o que a tornava envolvente ao falar com as pessoas. Não falava muito, mas escutava com muita atenção o que lhe dizia.
- Sabes, Mateus, passei um período muito difícil durante os primeiros anos da minha vida na América. O meu casamento correu mal, perdi um filho. Perdi interesse pela vida…
Domingas interrompeu ali o seu desabafo e ficou a olhar absortamente para um ponto vago da mesa onde estavam sentados.
- Sinto muito - foi a única coisa que Mateus soube dizer, no seu constrangimento.
Domingas levantou os olhos para o primo e continuou, enquanto como um gesto da cabeça apontava para o marido aparentemente entretido a arrumar alguns artigos num armário da sala.
- Esse homem foi a minha salvação. Não sei o que seria de mim se não o tivesse encontrado…
Mateus voltou a Chelsea duas vezes antes de deixar Boston. Da última vez foi para se despedir de Domingas e da família.
- Vou-me embora para a semana. Vim despedir-me de vocês.
- Já para a semana?! Podias ficar connosco mais algum tempo. -, lamentou Domingas.
- Não posso ficar mais tempo. Acho até que já fiquei mais tempo do que previa.
- Estamos muito tristes desde ontem…
- O que é que aconteceu? - perguntou Mateus apreensivo.
- O meu filho foi espancado no meio da rua. Ele que não se mete com ninguém. Como sabes ele dá aulas de Educação Física numa escola de Chelsea.
- Mas como é que foi isso? – quis saber Mateus.
- Foi um grupo de porto-riquenhos. Ele ia a pé, quando sem mais nem menos parou um carro ao lado dele, saíram de lá uns indivíduos que se dirigiram a ele e começaram a dar-lhe socos e pontapés. Ele defendeu-se, mas eles eram três. Deram-lhe tanta pancada que ele caiu para o chão. Depois de ter caído ainda lhe deram pontapés na cara, deixando-o estendido no chão.
- Mas porque é que lhe bateram? O teu filho conhecia-os de algum lado?
- Não, ele diz não os conhecer de lado nenhum, e não faz ideia por que é que o espancaram daquela forma.
- É muito estranho. Ele queixou-se à polícia?
- Queixou-se sim, vão procurar saber quem foram.
Domingas interrompeu o seu relato por alguns instantes, começando a chorar. Quando conseguiu conter o choro, olhou para o primo. O seu rosto reflectia perplexidade e revolta.
- Já vivemos em Chelsea há mais de 15 anos e nunca tivemos qualquer problema com ninguém.
- Não envolve história de mulheres?
- Não, se fosse, ele contava-me. Conheço o meu filho. O que eu sei é que nunca mais vou sentir-me tranquila aqui.
- Porque é que não se mudam para outro lugar?
- Custou-nos muitos sacrifícios e trabalho para ter esta casa. E este sítio é sossegado. Temo-nos dado bem aqui e o Jorge tem um bom emprego. Toda a gente gosta dele na escola onde trabalha.
- Sim, mas pelos vistos nem toda a gente parece gostar dele.
- Coisas dessas acontecem em qualquer parte da América. Fugir para quê? Fugir para onde? O Jorge queixou-se à polícia, pode ser que descubram quem é aquela gente. Têm as suas guerras entre eles e ajustam as contas assim, quando não é pior. Podem até ter confundido o meu filho com outra pessoa. São muito parecidos connosco. Ou então embirrado com ele por qualquer razão.
- Tu é que sabes. Conheces este meio melhor do que eu.
Conversaram ainda durante algum tempo. O marido da Domingas pouco dizia. Mas a certa altura interveio.
- Sabes, Mateus, eu, por mim, era em Portugal que vivia. Foi sempre o meu desejo, mas nunca tive possibilidade de arranjar trabalho lá. Mas não desisto da ideia de um dia ir para lá viver. A Domingas é que prefere ficar cá.
- Sabes, Mateus, eu tenho a minha vida por cá. Já me acostumei, tenho o meu filho que não pensa em sair desta terra, tem um emprego bom, as pessoas da minha família estão todas cá, incluindo a minha irmã, que mora aqui perto, em East Boston, e não pensa em sair. Não vejo o que é que vou fazer em Portugal...
Mateus não insistiu no tema da conversa.
- Bem, tenho mesmo que ir. Fiquem bem por cá. Oxalá um dia vocês decida ir até Lisboa. Era bom ver-vos por lá…
Mateus despediu-se dos seus parentes. Custava deixá-los num momento da vida deles como aquele, pois tinha consciência de que tão cedo não voltaria a vê-los.
Tinha quase que um compulsivo sentimento de dívida por pagar para com os seus parentes emigrados nos Estados Unidos. Dívida de deserção, dívida de não ter continuado com eles, não os ter acompanhado na sua luta, no seu caminho, que também era o dele. O seu afastamento modificou-o em muitas coisas, obrigou-o a adaptações mutiladoras de si próprio. Ao atingir a maturidade necessária, equivalente à capacidade de autonomia nas suas decisões, podia tê-lo feito. Podia ter retomado o seu caminho. Não o fez. Deixou-se arrastar pela sedução de outros caminhos.
Nos tempos da sua infância, brincava com os outros meninos nas ribeiras da ilha do Fogo, secas ao longo de quase todo o ano. Mas no tempo das chuvas corria nos seus leitos água por vezes em torrente. Nessas alturas eram surpreendidos por vezes pelas águas que surgiam subitamente a montante, quando menos esperavam. Corriam em pânico para as vertentes para se livrarem da enxurrada. Então a salvo, livres do perigo, sentaram-se no topo da encosta a ver a água correr, lamacenta, implacável, levando tudo consigo no seu curso para o mar. A incomparável excitação do perigo, a alegria serena de se ver a salvo, contemplando o correr da água o rumor dos cascalhos por onde passava. A Ribeira de Tongon, a Ribeira de São Lourenço. Perder o que fica disso em nós seria como perder algo da nossa própria alma.
Nas suas deambulações pelas ruas de Boston, New Bedford, Providence e Pawtucket, não podia senão reavivar a memória dessas sensações. A Ilha Brava, sua ilha materna, onde só viveu os anos sem memória da sua infância, até aos dois anos, e um único ano, oito anos mais tarde, um ano de regresso à realidade mítica das histórias ouvidos da sua mãe, mas também do seu pai, um ano de fixação de raízes numa terra que nunca, afinal, tinha abandonado. Essa era a sua realidade, essa era a sua marca, quer estivesse lá, quer vivesse na América.
A sua visita a Boston e às outras cidades de Massachussets confirmaram-lhe essa convicção. Até os nomes das ruas lhe eram familiares: Water Street, Purchase Street, Pleasant Street de New Bedford, Tauntan Avenue, que tinha ficado nos seus ouvidos como Tantim, assim como Accushnet, ficara como Akuxineti.
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Mateus voltou à ilha. Mais uma vez, depois de uma ausência, suficientemente longa. para ter perdido o andamento das coisas na terra. Quase tudo tinha emigrado, na sua maioria para a América. Depois da independência de Cabo Verde deu-se um autêntico êxodo, em levas sucessivas. Lembrou-se de um comentário que ouvira de um indivíduo sentado num banco da Praça Nova de São Vicente, ao ouvir, através do altifalante da estação de rádio local anunciando os discos dedicados aos ouvintes. “Vamos agora ouvir” - seguia-se o título da música – “dedicado por fulano da Ilha Brava a sicrano, a caminho da América…»
- Lá vai mais um reaccionário… a caminho da América. -
Ao ouvir o comentário, não pôde deixar de pensar nos parentes e patrícios com quem tinha estado em Massachussets, muitos deles emigrados nessa altura. Muitos possivelmente nunca teriam saído da sua ilha, se não tivessem sofrido as pressões políticas daquele período, fomentadas e estimuladas, directa ou indirectamente, pelos novos donos do poder político e seus esbirros e denunciantes, que muitas vezes o eram mesmo sem que lhes tivessem solicitado essas atribuições.
A viagem de regresso à sua ilha foi diferente desta vez. Num voo de cerca de vinte minutos foi de Santiago para o Fogo, onde passou dois dias em São Filipe, hospedando-se numa pequena pensão que lhe transmitiu. durante aqueles dias. uma sensação de conforto e calma, e a confiança de se encontrar em porto seguro. Nenhuma outra pensão ou hotel onde tinha estado antes criou nele esse estado de espírito e tranquilidade. Os que vivem o seu dia-a-dia na ilha do Fogo em permanência possivelmente não avaliam o que sente quem, tendo ali nascido ou vivido a sua infância, regressa depois de ter passado muitos anos fora.
Uma vez instalado, Mateus deixou a pensão e foi daí até à Praça de São Pedro, onde se postou num ponto do rectângulo donde podia contemplar toda a praça e o ambiente à volta. Teve a sensação de entrar num templo aberto onde o silêncio que o envolvia parecia perguntar: “Onde tinha estado todo aquele tempo? Olha para mim, sou aquele mesmo lugar que tu deixaste”.
Era o mesmo lugar, sim, mas o tempo não parecia ter passado por ele. Sempre bem cuidado, limpo e arrumado. Não se via uma ponta de lixo no chão da praça.
Depois daquele momento de contemplação, quase veneração, começou a andar. Os seus passos encaminharam-no até ao Presídio. A mesma sensação de estar num lugar estimado, impecavelmente cuidado. Aproximou-se do muro de protecção sobre o precipício que descia abrupto até à praia de Fontibila, olhou em frente e viu a silhueta da Ilha Brava, aí tão perto, coroada de nuvens como sempre foi. E viu o mar desse canal entre as duas ilhas por onde era preciso passar para chegar à ilha vizinha. Não era fácil aquele canal, lembrou-se Mateus. Não era manso. Havia alturas em que os pequenos navios à vela em que muitas vezes viajara pareciam estar no fundo de um vale entre montanhas colossais de mar que se erguiam azuis, impressionantes, ante os nossos olhos espantados.
Depois dos dias passados no Fogo entre o saudosismo do passado e a força telúrica do presente foguense, Mateus desceu até ao Vale dos Cavaleiros, designação que, segundo os estudiosos da toponímia local, é um fenómeno de hipercorrecção linguística do que originalmente era Barca Baleeira, e subiu para o ferry que havia de o levar à Ilha Brava, juntando-se aos outros passageiros com o mesmo destino. Depois de uma hora e meia de viagem entre os solavancos do navio e os berros incontroláveis dos que sofriam de enjoo, chegaram ao porto da Furna.
Pelos caminhos de outrora, só que em menos tempo agora, alcançou a Vila Nova Sintra pela sua porta de entrada, a Cruz Grande. Na vila procurou em primeiro lugar os seus parentes mais primos, primos irmãos que viviam na ilha na casa dos seus avós, como conservadores do património ancestral, com a mãe. Esta nova geração que habitava agora a casa emprestava um ar de frescura á antiguidade do prédio, do qual cuidavam com esmero. Todavia Mateus não se instalou nessa casa que tantas recordações lhe traziam. Em vez disso, procurou um amigo da família de nome Tui, comerciante da vila. Foi encontrá-lo sentado à porta da sua loja, no rés-do-chão de um prédio de dois andares. O lugar era-lhe tão familiar, como o eram as casas à volta e as próprias calçadas daquela rua polidas pelo tempo. O prédio não se tinha alterado muito, apesar dos anos passados sobre ele. Graças certamente ao seu novo dono pelo que se conhecia da sua maneira de ser. De seu nome completo António Santos de Pina, mas era conhecido por Tui. Pouca gente provavelmente saberia o nome de registo. O nome Tui, só por si, tinha peso suficiente para dispensar apelidos em série.
A loja de Tui tinha duas portas abertas para rua da frente e uma para a rua do lado. Os que conheciam os primeiros donos diziam que prédio já tinha sido construído com essa estrutura, já calculada para ter um estabelecimento comercial daquele tipo rés-do-chão. Agora pertencia a Tui que, por mérito próprio, espírito de iniciativa e carácter, tinha ascendido a uma posição económica sólida na ilha. Noutra terra que não esta dir-se-ia “uma boa posição social” e assim por diante. Mas naquela ilha as coisas não funcionavam assim. Essa coisa de posição social era coisa estranha que não fazia parte do ambiente. Ilha Brava, a ilha habitada mais pequena do arquipélago de Cabo Verde, mas que já chegou a ser a densa em população.
Alguns estudiosos da história da ilha dizem que ela recebeu esse nome dos navegadores portugueses que a “acharam, porque o mar que a envolvia era bravo e dificultava o acesso à ilha. Sobretudo certas épocas do ano, razão por que, durante o tempo do Equinócio o porto de acesso mudava da Furna para a Fajã de Água, que substituía provisoriamente o primeiro. Durante o resto do ano era na Furna que os navios ancoravam, pois oferecia melhores condições não só em termos de acesso, como de infra-estruturas portuárias, de que a Fajã de Água não dispunha., uma vez que não lhe tinha sido destinada essa função.
A maior parte das pessoas que pertenciam à família de Mateus, tanto do lado paterno como materno tinha emigrado e os mais antigos tinham desaparecido pela ordem natural da vida. Um reduzido núcleo de parentes formado por jovens primos seus de segunda e terceira geração assegurava o prolongamento genético dessa família. na ilha A manter-se todavia a tendência migratória dos habitantes da ilha, é bem possível que estes seus parentes sejam a última geração da família na ilha.
Durante a sua estadia na terra que o viu nascer passou horas esquecidas a ouvir histórias, casos e “passagem”, presentes e passados, que lhe contava Tui tranquilamente sentado à porta da sua loja, enquanto o seu caixeiro, palavra aliás caída em desuso nas cidades de grandes superfícies e centros comerciais, atendia afável e rotineiro a sua freguesia habitual Tei era uma verdadeira biblioteca viva e uma fonte segura de informação sobre a realidade da ilha. Um dia, por exemplo, falando casualmente de Eugénio Tavares, contou uma pequena “passagem” da vida do poeta bravense, daquelas que vão passando de uma geração à outra.
“Um dia” – contou Tui acompanhando a sua narrativa de um sorriso constante nos lábios – “Nhô Eugénio, ao passar pela casa de um vizinho um tanto simplório chamado Benjamim, pachorrentamente sentado junto à soleira da porta, foi interrompido no seu passeio com o seguinte pedido do mesmo: “Nhô Eugénio, nhô fazê-n un versu”.
O poeta aproximou-se dele e respondeu-lhe neste improviso que naquele momento lhe veio à cabeça:
“Lá vem o Benjamim
com calças de cotim
casaco de marfim
sempre no boletim.
gosta de pudim
e quem quer saber de mim
que venha aqui
Benjamim do princípio até ao fim
Tintim por tintim
Estes versos “de brincadeira”, rimados em im são provavelmente inéditos.
Durante a sua estadia, certamente curta para quem se ausentou durante tanto tempo, Mateus ficou hospedado numa pequena residencial instalada numa antiga moradia que dispunha de poucos quartos. O conforto interior da residencial contrastava com a modéstia da moradia. Não que as instalações fossem luxuosas, mas pelo ambiente aconchegado que envolvia o hóspede como um afago.
Logo na primeira noite que Mateus ali passou, acordou de manhã com a sensação de que há muito não dormia tão bem assim. Desfrutou desse conforto durante uma semana como o único ocupante da residencial.
De dia revisitava as povoações e as estradas que outrora percorria a cavalo, quase todo o caminho a subir, aproveitando os percursos planos para uma irresistível corrida do cavalo que já conhecia bem os caminhos e os hábitos do dono. Inevitavelmente corria nas mesmas extensões de estrada e caminhos por entre cardeais e purgueiras.
Agora não se viam nem cavalos, nem mulas, nem burros pelos caminhos da ilha. Apenas automóveis, sobretudo carrinhas.
No último dia da sua estadia, procurou Tui para com ele para se despedir e fazer as contas da sua estadia na residencial. Encontrou-o sentado, como habitualmente, à entrada do seu estabelecimento.
- Tui, vim despedir-me. Parto hoje no Barlavento. Queria agradecer a tua hospitalidade e fazer as contas contigo dos dias que estive hospedado na residencial.
- Tui olhou para ele com uma indescritível expressão no rosto e disse, serenamente:
- Quer dizer, estás aqui há uma semana e temo-nos dado muito bem todo este tempo. E escolheste o último dia para me vires ofender. Achas que eu alguma vez ia cobrar-te?!
Só a Brava – pensou Mateus! E despediu-se com um abraço. Dizer o quê?
Viriato de Barros Fermino de Pina