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Adriano Miranda Lima |
De acordo com as regras do blogue, novo post só será lançado quando este e o anterior tiverem cinco comentários de cinco comentadores diferentes (ou mais...). Praia de Bote não voltará a colocar posts sem que isto aconteça. Já que este é um post de futebol, a bola está agora na mão (ou no pé) dos leitores.
Texto saído no número de Maio do jornal "Terra Nova" (Cabo Verde)
Na sua passada habitualmente calma e repousada, o Totói passa todos os dias à minha porta, em direcção ao seu Café preferido para um dedo de conversa com os amigos. Conterrâneos e amigos que somos, porque ambos nascidos em S. Vicente de Cabo Verde, só em Tomar viríamos, no entanto, a ter um conhecimento mais pessoalizado, talvez porque os seis anos de idade que me leva de avanço fossem inibitórios de um relacionamento mais próximo no nosso tempo de menino e moço. Além de concorrer também a circunstância de termos vivido em zonas diferentes da nossa cidade natal, ao contrário da quase vizinhança que partilhamos nesta bela urbe de Tomar.
António Eduardo Fortes, de seu nome de registo, nasceu em 23 de Novembro de 1938, na rua Sá da Bandeira da exótica e cosmopolita cidade do Mindelo. Desde criança, ficou conhecido como “Totói Mãozinha” por ter nascido com uma das mãos atrofiada, dado o hábito generalizado de quase toda a gente ser tratada em Cabo Verde por um “nickname” ou alcunha, obviamente que sem intenção maldosa. Tanto que por vezes não é fácil identificar alguém se apenas é tratado pelo nome de registo. E com jogadores de futebol então é que é muito raro algum ser conhecido pelo nome oficial.
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Clube Sportivo Mindelense |
O Totói mostrou desde cedo aptidão natural para a prática do futebol, assim como o seu irmão gémeo, João Eduardo Fortes (Djunga), infelizmente já falecido, o que os levaria muito jovens ainda para o futebol da então Metrópole.
Tanto ele como o irmão iniciaram a carreira futebolística no Mindelense, o clube de maior historial da ilha de S. Vicente, jogando duas épocas seguidas na equipa principal (o Djunga não completaria a segunda época), nas quais se sagraram campeões. Por essa altura, integraram a selecção de Cabo Verde num torneio realizado na Guiné e em que participaram também a Académica de Coimbra e a selecção do Senegal. A Final foi disputada entre a Académica de Coimbra e a selecção de Cabo Verde, que o clube dos estudantes venceu por 4-2.
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Sede do Clube Sportivo Mindelense. Foto Filipe Conceição e Silva |
Durante o torneio, o treinador da Académica, reparando nas qualidades futebolísticas do Totói, perguntou-lhe se não gostaria de ir para Coimbra estudar e jogar no clube. Perante a possibilidade de ingressar num futebol mais evoluído e, incomparavelmente, com maiores perspectivas de realização desportiva, o Totói não escondeu o seu interesse. Porém, chegado a Portugal, aquele treinador falou do jovem jogador ao seu colega e amigo que treinava o Lusitano, e não tardou que um técnico adjunto do clube eborense e o Du Fialho (*) fossem a Cabo Verde para o convencer a dar o salto.
Aceitou as condições oferecidas e em 1960 viajou para Portugal com destino àquele que era então um clube primodivisionário do futebol português.
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Equipa do Lusitano. Totói é o segundo da fila da frente, a contar da direita |
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Lusitano de Évora |
Jogando uma época no novo clube, foi, no entanto, pouco utilizado porque o titular da posição em que jogava era nem mais nem menos que o Zé Pedro, jogador internacional. No último jogo em que o Totói participou, defrontando o Braga, o técnico que ia treinar o Farense esteve a assistir ao desafio, e, mais tarde, na apresentação da equipa do Farense para a época que ia iniciar-se, falaria no jovem cabo-verdiano ao dirigente do clube. Por sinal, o Djunga, seu irmão gémeo, já era nessa altura jogador do Farense, pelo que, cereja em cima do bolo, o Totói não hesitou em aceitar a oferta e transferir-se para o Algarve. Mas apenas esteve uma época no Farense, visto que o Peniche lhe iria fazer uma oferta mais vantajosa do ponto de vista financeiro, que aceitou, mudando novamente de clube em 1963.
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Totói ao serviço do Farense, marcando um soberbo golo, em grande estilo |
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Ao serviço do Farense, contra o Benfica |
Porém, no ano seguinte, o União de Tomar, sabendo das suas qualidades, fez-lhe uma proposta tentadora, ingressando então no clube tomarense em 1964, e com a circunstância de ter sido o seu primeiro atleta profissional. Estando na III divisão, nesse mesmo ano o clube subiria à II divisão e em 1968 ao mais alto escalão do futebol luso.
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Totói no União de Tomar, campeão da III divisão |
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União de Tomar |
O Totói estabilizaria a sua carreira futebolística no União de Tomar, onde jogou continuamente até 1975, tendo como companheiros de equipa, além do seu irmão Djunga, o Manuel José, padrinho do seu filho, e o Raul Águas, que viriam a seguir a carreira de treinador. A seguir, passou a adjunto do treinador, tendo estreado essa nova fase da sua carreira com o conhecido técnico Fernando Cabrita. Mais tarde, assumiria a responsabilidade daquele cargo por mais de uma vez, mas já numa fase descendente da trajectória do clube, o qual nunca mais viria a ter possibilidade de retornar ao mais alto escalão do futebol, vítima que foi da recessão económica sofrida pelo concelho de Tomar na sequência do 25 de Abril. O União de Tomar teve 6 presenças no Campeonato Nacional de Futebol da I Divisão (1968-69, 1969-70, 1971-72, 1972-73, 1974-75 e 1975-76), com a participação do Totói quer como jogador quer como técnico.
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A equipa primodivisionária do União de Tomar. Totói é o 4.º da fila da frente, a contar da direita para. O irmão Djunga é o segundo a partir da esquerda, na mesma fila |
O União de Tomar é o clube em que o Totói assentou definitivamente e terminou a sua carreira, e a cidade de Tomar a urbe que adoptou para viver, e onde se casou e constituiu família. Pai de um filho e duas filhas, e avô cinco de netos, sente-se plenamente identificado com a sua cidade adoptiva, que, em boa verdade, se rivaliza com a do seu nascimento no amor que dedica a ambas.
No desfiar das suas memórias futebolísticas, muito tem o Totói para contar, mas, para não alongar demasiado esta narrativa, eis apenas dois registos, cada um com o seu próprio significado, a saber. Em 30 de Março de 1969, disputava-se a 24.ª e antepenúltima jornada do campeonato da I Divisão e a luta pelo título de Campeão estava ao rubro, com o F. C. Porto na liderança, distanciado de um único ponto do Benfica (que contava, não obstante, com um jogo em atraso). Ao mesmo tempo que o Benfica tinha uma difícil deslocação a Coimbra, o F. C. Porto recebia, em pleno Estádio das Antas, o União de Tomar. Com o Porto a acusar certo nervosismo frente a um União de Tomar calmo e sereno por já nada ter a perder, o jogo chegaria ao intervalo com o marcador em branco. No segundo tempo, o Porto marca e o União de Tomar empata por Alberto, os da casa voltam a marcar e o jogo prossegue num grande frenesim, com o resultado incerto. A dado passo, o Totói entra impetuosamente na área do Porto e é rasteirado, e o árbitro marca a respectiva penalidade. O Leitão converte e empata o jogo. Numa arremetida furiosa, o Porto tenta virar o resultado e encontra no guarda-redes unionista Conhé um opositor seguro e tranquilo. E se o Porto perdeu mais do que uma oportunidade de voltar a facturar, contudo seria o União de Tomar a desperdiçar no último minuto a possibilidade de conquistar os 3 pontos quando 3 jogadores visitantes se isolaram frente ao guardião portista e o Leitão chutou fraco, no que foi quase um passe ao guarda-redes. O Porto perdeu a oportunidade de ser campeão, entregando o título ao Benfica.
Outro registo. Num jogo em Tomar, em que o União recebia o Benfica, o treinador chamou o jogador que ia marcar o Eusébio e deu-lhe instruções precisas a respeito do joelho de que o jogador adversário ainda não estava completamente recuperado de uma lesão. Para bom entendedor… Então, o Totói aproximou-se discretamente do seu colega e segredou-lhe: - Não faças isso ao Eusébio, que ele não tem culpa de ser melhor que nós. Ao que o seu colega ripostou dizendo-lhe para estar descansado que nunca tinha pensado em cumprir a recomendação do treinador.
Em Julho de 1975, a convite do Grémio Desportivo Amarante, de S. Vicente/Cabo Verde, foi constituída uma selecção com jogadores cabo-verdianos que actuavam em Portugal para participar num torneio no âmbito das festas da Independência de Cabo Verde. Essa selecção venceu as cinco partidas que disputou. O Totói e o Djunga integraram essa selecção, assim como o jogador do Benfica, Carlos Alhinho.
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A selecção de jogadores cabo-verdianos a actuar em Portugal, que participou num torneio organizado durante as festas da independência da ex-colónia |
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Com o irmão Djunga, nos jogos das festas da independência nacional de Cabo Verde |
Refira-se ainda que nesse mesmo ano o Totói seria convocado para a selecção de Cabo Verde, mas teve de declinar o convite por impossibilidade de conciliação com os seus compromissos profissionais e familiares.
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Com o treinador Manul José, seu amigo íntimo, compadre e antigo companheiro de equipa no União de Tomar (botas de jogador, há muito arrumadas) |
“Eusébio do União de Tomar” é como o consideram na cidade, significativo do reconhecimento do seu elevado contributo desportivo na fase ascensional e mais brilhante do historial do clube local. Mas as suas qualidades de homem sério e de boa conduta cívica e familiar são outro motivo de apreço geral, e provam-no a consideração e o carinho que lhe devota a cidade templária. Basta dizer que nas últimas eleições autárquicas foi o mandatário de uma força política que disputou o pleito, tendo assumido o seu papel com dignidade mas também com a discrição própria de quem procura ser amigo de todos, independentemente da cor política. A popularidade do Totói e o apreço em que é tido fizeram-no alvo de várias homenagens depois de pôr fim à sua carreira, em cerimónias participadas pelas forças vivas e pelo povo da cidade.
Mas as saudades do seu Mindelo invadem-no a toda a hora, difíceis de mitigar. As recordações da infância e da adolescência transportam-no amiúde para a sua rua Sá da Bandeira, onde partilhou diabruras sem fim com rapazes da vizinhança, como o Zizim Figueira, cronista de memórias comuns, já falecido. Os rumores do porto, a azáfama das ruas e os cheiros agridoces das lojinhas e tabernas dos lugares típicos fazem parte de uma memória sensível que resiste ao tempo. No Verão, quando as margens do rio Nabão, mais expostas à inclemência do sol, exalam odores vagamente evocativos de maresia, o seu espírito encontra similitudes com a Praia de Bote e outros lugares onde o mar da baía beija amorosamente a cidade do Mindelo. Se a nostalgia é na verdade uma constante da alma de todos os povos diasporenses, acontece que só o cabo-verdiano e o português têm em comum essa maneira muito peculiar de soletrar a palavra saudade.
Porém, elas, as saudades, só se aliviam verdadeiramente quando o coração se aconchega aos lugares amados. Foi com esse pensamento que o Totói viajou para S. Vicente em 1975 para estar presente na celebração da independência nacional e participar em alguns jogos de futebol. Em 2009, revisitaria de novo a sua ilha, dessa vez levando consigo toda a família, mulher, filhos, genros e netos. Calcule-se a emoção de um filho que regressa à terra natal levando todos os que lhe são mais queridos, imagine-se quão sublime é o reencontro entre o passado e o presente.
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Com a família, em Tomar |
Homem de carácter e imbuído de bons princípios, o Totói não ganhou mundos e fundos no futebol, nem pouco mais ou menos, pois os tempos eram bem outros, mas ao longo da vida soube amealhar a riqueza desse valioso capital que é o saber viver com dignidade.
Bem-haja, amigo Totói!
(*) Du Fialho (Alberto António Monteiro), futebolista cabo-verdiano, jogou no Benfica e terminou a carreira no Lusitano.
Tomar, 22 de Fevereiro de 2015