Crónica publicada nos meses de Julho e Setembro.2013
A BARCA "CORIOLANUS" FASCINANTE E AZARADO NAVIO DA CARREIRA DE CABO VERDE
Com casco de ferro, três mastros e cerca de 1000 toneladas brutas, o "Coriolanus" era um veleiro elegante, extremamente rápido [1] e dedicava-se ao transporte de mercadorias e passageiros. O barco teve longa história de 60 anos e passou por várias bandeiras e donos, entre os quais alguns portugueses, até que em Agosto de 1936 chegou a um sucateiro em Fall River, Massachusetts, para abate. Lançado à água em Maio de 1876 nos estaleiros escoceses de Archibald McMillan & Son, em Dumbarton, passou em 1891 para mãos alemãs e em 1903 arvorava pavilhão norueguês (sob o nome "Lina") para pouco depois voltar a ser britânico e logo a seguir americano (como "Tiburon"). Só em 1921, já com 45 anos de mar, tem proprietário português que o compra por 7525 dólares e o rebaptiza de "Eugénia Emília". Vejamos então o seu historial lusitano, a partir desse momento.
O navio chegou a New Bedford a 17 de Dezembro de 1921, proveniente de Boston. Uma notícia do Alvorada Diária dava a conhecer que o anterior dono o tinha vendido em hasta pública nesta cidade, uma vez que fora arrestado por causa de um carregamento ilegal de álcool [2]. Comprado pelo capitão Luís Oliveira, estava desde logo destinado à carreira New Bedford – Cabo Verde. Não se sabia então quando se realizaria a sua primeira viagem para as ilhas [3]. Encontramo-lo de novo em Janeiro 1923, sob o comando do seu proprietário, a regressar de Cabo Verde com carga de sal [4].
Pouco depois, em meados de Fevereiro [5], revelava-se um facto que iria complicar a vida do "Eugénia Emília". A 12, o governo dos Estados Unidos apresentara um libelo no tribunal contra o veleiro, que estava no porto de New Bedford, para que o proprietário deste pagasse uma multa aduaneira. Fora-lhe apreendida carga, estimada em 8970 dólares, montante pelo qual ia ser obrigatoriamente posto à venda. E porquê, esta medida? É que em plena lei seca, no "Eugénia" haviam sido encontradas 262 caixas de bebidas alcoólicas, cujo valor era calculado em 7860 dólares, mais 66 garrafas de álcool soltas (150 dólares) e 16 garrafas contendo… cocaína (480 dólares). Para além disso, também não declaradas, jóias que compreendiam relógios, correntes, braceletes, brincos e bolsas de filigrana, 36 peças de âmbar e perfumes. O barco acabou por ser vendido em 21 de Março a Januário O. Amarante, morador em Rotch St., 64, por apenas 6700 dólares [6]. A notícia dava a ficha técnica do navio que era a seguinte: 1050 toneladas brutas, 952 líquidas, 47 pés de comprimento, 35 de largura e 25 de profundidade. E lembrava-se que fora de Luís Oliveira, sob cujo comando fizera uma única viagem, de azarado desfecho. A 23, no tribunal federal, este confessar-se-ia culpado de contrabando de whisky, cocaína e jóias que pretendia fazer passar no porto de New Bedford e seria multado em 200 dólares [7]. A 6 de Julho anunciava-se a sua saída para dia 15, levando carga e passageiros destinados a Cabo Verde com bilhetes de ida por 50 dólares e de ida e volta por 125 mas com validade para seis meses. Os fretes para mil pés de madeira custavam 20 dólares, cada barril dólar e meio e um por cada saca transportada. O comando era agora da responsabilidade do capitão João Correia [8]. Quanto ao capitão Luís Oliveira, vemo-lo em 30 de Dezembro de 1926 a responder por vadiagem, desordem e embriaguez, em repetição de factos semelhantes que se haviam passado no Novembro anterior. O relato do estado em que o marítimo se apresentou é confrangedor: "Sujo, com a barba crescida, cabelo grisalho desgrenhado, coberto de andrajos, o homem que em tempo se orgulhava de ser comandante dum dos mais belos barcos da carreira cabo-verdiana, causava dó pela forma como se apresentou ontem no tribunal. Até aparentava estar um tanto confuso das suas ideias, e compreender bem pouco do que se passava em redor de si [9]."
|
Como "Eugénia Emília", no cais estatal de New Bedford - Créditos das Colecções Especiais da Biblioteca da Universidade Estatal da Pensilvânia, EUA |
Voltamos a encontrar o veleiro em Maio de 1928, com o nome original de "Coriolanus" que terá até ao fim dos seus dias [1]. Procedente de Cabo Verde, estava em Block Island, a cerca de 13 milhas da costa de Rhode Island, com 48 passageiros e 32 tripulantes. No dia seguinte chegou a New Bedford e fundeou junto ao farol de Butler Flats [11]. Depois de longa viagem de 34 dias entre o Fogo e aquele local, foi ainda necessário aguardar a visita do médico do porto (que inspeccionou os passageiros no cais do Estado) e dos inspectores da imigração e da alfândega, acompanhados por um intérprete, no caso, um tal António F. Dias. Só em Janeiro de 1929 saberemos de novo do barco. Em carta enviada de S. Vicente ou do Fogo e recebida na redacção do Diário de Notícias, contava-se o conjunto de desaires sofridos na no entanto curta viagem de 23 dias, entre New Bedford e a ilha do Monte Cara [12]. Devido a forte temporal e deficiente acondicionamento da carga, a tripulação fora forçada a lançar ao mar grande parte desta, entre a qual madeira e camionetas…E da carga que fora desembarcada em S. Vicente, significativa quantidade estava em más condições, coberta de areia. O anónimo autor da carta terminava-a com a seguinte frase: «O descontentamento dos passageiros é enorme e o arrependimento de viajar em navio à vela é ainda maior.»
A verdade é que a competir com os veleiros havia então as carreiras de vapores da companhia francesa Fabre Line [13], da qual Guilherme Luiz, proprietário do DN, era agente. E contra a de Cabo Verde, à vela, e afinal com razão, ele fazia campanha repetida no jornal. Leiamos, por exemplo, parte do longo texto que vinha agregado a um anúncio que propagandeava a viagem do S.S. "Roma" de Nova Iorque e Providence directamente para S. Vicente, em finais de Setembro de 1927: (…) Com um serviço desta natureza, um paquete capaz de fazer a viagem em 8 dias, proporcionando ao mesmo tempo ao passageiro todos os confortos modernos e com segurança, além de uma alimentação abundante e de primeira ordem, cozinhada à portuguesa e servida por criados portugueses, seria um contra-senso, mesmo uma loucura, pensar em navios de vela que tanta miséria e tragédia têm levado ao seio das famílias cabo-verdianas. Os navios de vela são uma coisa do passado e já há muito tempo deviam estar em exposição nos museus.[14] » Mas se por um lado paquetes como o "Roma", o "Asia", o "Saturnia" e outros iam cumprindo esse desiderato, o cruzamento do Atlântico à vela havia de durar até bem tarde. Após os meados do século XX, em finais de 1965, por exemplo, ainda o "Ernestina" fazia viagens para a América…
A 25 de Abril de 1929, o "Coriolanus", que saíra sete dias antes do Fogo, praça à qual pertencia, estava para chegar a New Bedford [15]. Após longa viagem de cerca de 25 dias, ancorou a 13 de Maio, pelas 10 da noite, à entrada da baía. A longa demora e a ansiedade derivada da mesma provocaram descontentamento entre a colónia cabo-verdiana local. Avistado cerca do meio-dia a leste de Cuttyhunk [16], foi acompanhado a partir das 6 da tarde por um barco da Guarda Costeira e logo depois pelo rebocador "John Duff", até ao farol Butler Flats, como habitualmente, onde lançou ferro. A 14, como também era costume, recebeu a visita das autoridades do porto e funcionários da alfândega e da emigração [17]. Transportava o "Coriolanus" nada menos que 134 passageiros e tripulantes, quantidade considerável de pessoas que pelo menos em parte haviam viajado com condições substancialmente melhores que as permitidas por outros veleiros da carreira de Cabo Verde. Pertencia agora a uma sociedade constituída por Roy Teixeira [18], António Macedo e um tal Albio (?) [19]. Com capacidade para 200 passageiros mais a tripulação, possuía casas de banho pavimentadas a mosaico, luz eléctrica, rádio, e uma orquestra, bem como um jornal que divulgava as actividades diárias. E havia festas constantes a bordo, como o "baptismo" do macaco, muito estimado pela tripulação – o qual acabou por morrer ao cair de uma verga durante uma tempestade [20]…
Ainda em 1929, mas em Junho, previa-se para breve nova partida da barca para Cabo Verde, desta feita carregada de automóveis, bicicletas e mais carga diversa. Seguiam para as ilhas 70 viaturas mas também oito cabo-verdianos deportados [21] e apenas dois passageiros regulares [22]. Comandava-a o capitão Alfredo Piedade e a carga destinava-se sobretudo à cidade da Praia. Esta viagem, também longa, levaria mais de 30 dias [23]…
|
Como "Coriolanus" - Créditos da Universidade de Massachusetts, Dartmouth, EUA |
Tal como sucedia com outros veleiros desta carreira, nem sempre as viagens do "Coriolanus" se faziam entre New Bedford e Cabo Verde. Em princípios de Outubro de 29, o navio estava a fazer o percurso entre as ilhas e a Flórida, onde ia buscar madeira, com passagem pelas Bermudas. Disso mesmo era informado o DN pelo telegrafista de bordo, Olavo M. Cardoso [24], que também dizia em radiograma enviado para o jornal que de Cabo Verde trouxera Manuel Sacramento Monteiro, sobrinho de um dos donos do barco, Abílio Monteiro [25].
No ano seguinte, o "Coriolanus" seria motivo de notícia devido a problemas legais da entrada de passageiros e tripulantes nos Estados Unidos da América [26]. A 24 de Setembro já haviam desembarcado cinco passageiros mas diversos outros estavam em vias de ter de regressar às ilhas, a não ser que conseguissem provar o seu direito de entrada no país. O assunto meteu uma junta especial composta pelos inspectores da imigração de New Bedford George Y. Parker e John G. Hagberg e Miss Florence Welsh, da de Boston, que despacharam favoravelmente o caso de Adílio Gomes mas que remeteram dois para as autoridades de Washington. Na semana anterior, outros casos haviam sido vistos, com pouco sucesso para os interessados, nomeadamente o de Marcelo Quintino Galvão que inscrito como tripulante, estivera na cidade pela primeira vez em 1906. Após ter sido ferido, fora-lhe amputada uma perna. Munido de uma prótese, regressou a Cabo Verde, voltando aos EUA em 1912 para a consertar, o que agora pretendia de novo. No DN de 5 de Março de 1931 [27] ficamos a saber um pouco mais sobre as desventuras do barco e a sorte de significativa parte dos seus tripulantes. Nesse mesmo dia seguiram de autocarro para Boston e embarcariam no "Pátria", repatriados, vinte e seis tripulantes do "Coriolanus". Seis meses antes, o navio arribara muito danificado a New Bedford, onde ficara amarrado no Merril's Warf [28]. Grandes temporais tinham-lhe levado o velame e partido os mastros, para além de terem causado outros prejuízos importantes. Mas as reparações demoraram, porque os proprietários estavam sem fundos para o efeito – inclusive para o pagamento de ordenados à tripulação. Assim, esta passou grandes dificuldades, até ao momento em que o consulado português, tendo tomado conhecimento do drama, resolveu prover a sua alimentação. Na altura, ficaram a bordo apenas o capitão Francisco José Rosário, o contramestre Pedro Maria Andrade, o marinheiro José Baptista Jr. e o cozinheiro Nicolau Moniz [29]. Nesse mesmo dia, notícia de última hora dava conta do libelo interposto junto do United States District Court de Boston pelo causídico Joseph F. Francis, contratado pelo cônsul português, de modo que o navio fosse embargado e vendido e que a receita revertesse a favor da tripulação, colmatando assim os vencimentos em falta e as despesas do repatriamento. Contudo, a odisseia destes homens não acaba aqui. Chegados a Lisboa (o "Pátria" não escalou Cabo Verde), foram internados como náufragos (!) no asilo de Marvila, juntamente com loucos e doentes de outra natureza, como contava o Diário de Lisboa, em notícia de primeira página, reprovando tamanho atentado contra esses "portugueses de lei e de coragem" [30]. O Diário de Notícias de New Bedford, que divulgava esta nota do DL, dizia com razão que os homens do "Coriolanus" não eram náufragos. E adiantava: "No próprio dia do seu embarque foi embargada a 'Coriolanus' pelos salários devidos aos tripulantes. O resultado foi a barca ser vendida em hasta pública no último sábado, rendendo $690 para mais de $6000 de dívidas. No rateio que será necessário fazer, os salários devidos aos marinheiros que foram repatriados e que em Lisboa foram internados como doidos, serão reduzidos a nada. Eis o prémio de tanto sofrimento. É de crer que o governo português já terá atendido, ou cedo atenderá ao seu pedido, transportando-os para Cabo Verde"[31].
Em Dezembro de 1931, o "Coriolanus" passou a Clarence Nelson Rogers de Boston, por 250 dólares. E em Agosto de 1936, com a sua venda aos sucateiros da General Iron Smelting Co. de Fall River, acabava sem chama a vida deste garboso mas desafortunado navio que durante décadas sulcou o Atlântico, escrevendo um pouco da história trágico-marítima de Cabo Verde. Deixou porém saudades, como se pode comprovar pela inauguração de um modelo do veleiro no Museu da Baleia de New Bedford, em 19 de Maio de 1972 [32].
NOTAS