Crónica de Março.2014
CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DAS RELAÇÕES CULTURAIS ENTRE CABO VERDE E O BRASIL (2/2)
O gosto de Jorge Barbosa pela cultura brasileira
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Jorge Barbosa |
Quando em 15 de Junho de 2013 mostrámos em público no Fórum Municipal Romeu Correia, Almada, em sessão de homenagem a Jorge Barbosa (1), alguma documentação inédita alusiva ao poeta, estavam entre ela dois exemplares curiosos: o livro de poesia do brasileiro Jorge de Lima (2)
A Túnica Inconsutil (1938), cuja dedicatória
"A Jorge Barbosa com o apreço e admiração de Jorge de Lima", com indicação do seu endereço (3), mostra conhecimento mútuo e suposta troca de correspondência (4) e a reprodução do envelope de uma carta que o autor enviou do Sal ao colega de letras brasileiro Manuel Bandeira (5), em 1948. Mais provas há deste interesse de Barbosa pela cultura do país irmão que aliás era de certo modo correspondido do outro lado do Atlântico, como podemos deduzir através deste poema de Ribeiro Couto (6): "Jorge Barbosa, / Em Cabo Verde te imagino / Olhando o céu – triste menino da ilha do Sal / Ah! horizontes do destino! / Ah! solidão da água amargosa, / Nascer poeta é sempre um mal / Seja onde for – Jorge Barbosa! / Águas e Céu é tudo estreito, / Jorge Barbosa: / Cada um de nós leva no peito / A Ilha do Sal."
Quanto a Barbosa, são conhecidos vários exemplos poéticos desta paixão pelo país sul-americano, desde logo "Carnaval do Rio de Janeiro" (1950), onde fala de Linda (Linda Batista), Dircinha (irmã mais nova de Linda) e Emilinha (Emilinha Borba), todas rainhas da rádio brasileira por longos anos e de Oscarito, actor que Barbosa terá eventualmente visto no filme
Aviso aos Navegantes nesse mesmo ano de 1950 em que foi realizado e os mindelenses reviram vezes sem conta nos meados dos 60, no Park Mira Mar de Tuta Melo em altura de defeso de outros filmes que demoravam a chegar à terra. Para além disso, remata o poema com quatro versos significativos: "E o verso de Manuel Bandeira / ecoando cá dentro / deste folião que eu já fui: /- Evoé Momo!"
Três outros poemas de Caderno de um ilhéu (1956), "Carta para Manuel Bandeira", "Carta para o Brasil" (este ao cuidado de Gilberto Freyre) e "Você Brasil" (para o poeta Ribeiro Couto) são a confirmação cabal desse namoro cabo-verdiano-brasileiro. Os dois últimos, cheios de energia, são no entanto imensamente tristes, na certeza que Barbosa tinha de jamais poder atravessar o longo oceano que separava as suas ilhas da sul-américa. Em "Carta para o Brasil", diz: "Estou a ver-me entrando no Guanabara / para essa visita finalmente / que eu tenho há muito tempo / guardada no meu desejo! / Não sei quando será. / Algum dia, meu Amigo, / algum dia." (…). E nesse fabuloso "Você Brasil" o remate, depois de enumerar as parecenças entre os dois territórios e de confessar ao Brasil "Eu desejava fazer-lhe uma vista", é: "Mas tudo isso são cousas impossíveis – Você sabe? – Impossíveis".
Apesar destes sinais óbvios da admiração barbosiana pela cultura do lado de lá do Atlântico, procurámos em jornais brasileiros outras confirmações, o que acabou por acontecer. A mais antiga referência conhecida está no
Dom Casmurro (Rio), de 26 de Agosto de 1939. Sob o título "Livros e revistas do Brasil em Cabo Verde", o texto alude às reportagens de Arnon de Melo, jornalista brasileiro que acompanhou nesse Verão a viagem do Presidente português Óscar Carmona a África. Ali se escreve, a dado passo: "Queremos falar é do trecho da crónica em que Arnon de Carvalho diz da admiração dos filhos de Cabo Verde por uma gente brasileira bem menos importante que os jogadores de
football: os intelectuais. A moderna literatura brasileira é conhecida e amada em Cabo Verde. O poeta Jorge Barbosa – poeta de rara sensibilidade cujas melhores produções
Dom Casmurro pretende divulgar em breve no Brasil através de uma página de poesia – tem mesmo esta frase que Arnon transcreve: 'A bem dizer, só lemos aqui livros brasileiros'. E cita os autores mais divulgados: Jorge de Lima, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Amando Fontes, José Lins do Rego, Ronaldo de Carvalho. Diz também da admiração que existe pelas obras de Nina Rodrigues, Gilberto Freyre e Arthur Ramos. (…) E apontando o livreiro da terra [Praia], que se aproxima, diz ao jornalista brasileiro: 'É o dono da nossa livraria. Ele sabe que o senhor está aqui e quer falar-lhe. Não sabe a dificuldade que temos em receber livros brasileiros. Se pedimos de livrarias de lá não nos mandam.' (…) Continuando a falar da dificuldade da venda dos livros brasileiros em Cabo Verde, Arnon de Melo informa que os cabo-verdianos resolveram o problema pelo sistema de empréstimo. E [faz] referência aos escritores brasileiros mais populares em Cabo Verde. 'De todos os escritores brasileiros notei que Jorge Amado é o preferido. Os seus romances em que o mar e o preto entram de maneira tão viva penetram mais a sensibilidade de Cabo Verde'. Cita logo a seguir os livros de José Lins do Rego. E mais [adiante] vai achar na biblioteca de um advogado Júlio Monteiro Júnior a
Casa Grande e Senzala onde, no dizer do próprio advogado, são encontrados inúmeros trechos que se ajustam perfeitamente a Cabo Verde. E é ainda Jorge Barbosa quem declara ao jornalista brasileiro que existe uma infinidade de termos empregados na literatura brasileira que são comuns no dialecto cabo-verdiano. O interesse pela literatura brasileira vai em Cabo Verde ao extremo de esses leitores tomarem partido nas coisas daqui. Assim, o poeta Jorge Barbosa é pelos escritores do Norte (nesta briga inventada e tola que deu margem a tanta exploração cretina): 'Gostei da réplica dos escritores do Norte do Brasil aos do Sul. Os nortistas têm realmente muito talento e imaginação.'"
Este texto iria ser reproduzido com pequenas alterações em 12 de Julho de 1964 no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, em longo artigo de João Alves das Neves "Os escritores cabo-verdianos e o Brasil", com referências a Baltasar Lopes, Teixeira de Sousa, António Aurélio Gonçalves e outros. Seria longo comentar aqui esse artigo mas reproduzimos a sua parte final, significativa do pensamento da elite intelectual das ilhas da altura: "A maioria defende aliás a autonomia da literatura cabo-verdiana, proclamando alguns escritores que ela não se integra na chamada 'literatura da negritude', pois em Cabo Verde se tem procurado realizar única e exclusivamente 'cabo-verdianidade', ainda que reconhecendo as influências que podem ter vindo da África, de Portugal ou do Brasil."
Quanto a Jorge Barbosa, se mais sinais não existissem do seu gosto brasileiro, o início do poema "Viagens" seria suficiente para o atestar: "Lembro as viagens que fazia nos paquetes da Blue Star / quando escalavam o porto da ilha de S. Vicente. / Eram viagens que não passavam nunca do cais / mas punham um alvoroço bem grande no meu coração. / Ora seguia rumo à Europa, / Hamburgo, Paris, Londres… / Ora para Cuba, México, Argentina… / Mas para o Rio de Janeiro é que ia sempre de preferência (…)". Esse gosto foi assaz retribuído por colegas brasileiros, como vimos, mas também a nível académico, quando foi convidado pela Universidade da Baía, para participar no Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros que se realizou em São Salvador, em 1959 (7) no qual participaram Agostinho da Silva, auto-exilado no Brasil, em fuga ao regime salazarista e Eduardo Lourenço, entre outros oposicionistas, mas também Marcelo Caetano...
Notas: