Há coincidências MESMO... coincidentes. Acabado o Pd'B de anunciar a próxima expedição ao vulcão do Fogo em que participará amigo nosso na companhia de conceituado alpinista português (este, empenhado em subir ao ponto mais alto de cada um dos PALOP), eis que temos notícia da saída para breve do novel livro do premiadíssimo poeta santiaguense (e tarrafalense) José Luiz Tavares. A lançar no Fogo, Santiago e São Vicente, terá aqui lugar de destaque de cada vez que houver desenvolvimentos sobre o mesmo.
Com lugar nas letras cabo-verdianas equivalente ao desempenhado por Germano Almeida no campo da prosa, José Luíz Tavares autor de escrita límpida e erudita, brinda-nos desta feita com "Coração de Lava", alusivo ao Fogo e dedicado a Antero de Barros. Resultante de colaboração com Duarte Belo, autor das belíssimas fotografias que ilustram a obra, ela é peça que (mais uma vez) honra o autor e a poesia das ilhas.
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José Luiz Tavares - Foto Joaquim Saial |
O poeta José Luiz Tavares publicou
Paraíso apagado por um trovão (2003),
Agreste matéria mundo (2004),
Lisbon blues (2008) e
Cidade do mais antigo nome (2009).
É provavelmente o poeta mais inusitado que surgiu nas literaturas africanas de língua portuguesa após as independências dos países. Cáustico, irreverente, aliando o classicismo das fontes e o conhecimento vasto da poesia universal ao canto da terra pátria, numa linguagem simultaneamente antiga e moderna, tem uma voz poderosa e altissonante, de uma criatividade completamente fora do habitual, que surpreende pela eloquência e ironia, como se uma raiva profunda chegasse em forma de soneto, domada, feliz, e, paradoxalmente, cuspindo fogo e melancolia.
Por isso, o que poderia parecer uma poética exacerbada, egolátrica, bebendo nas vísceras dos sentimentos e sensações (inadequação à sociedade, insulação, revolta individual, afirmação narcísica, prazer gratuito de chocar, todos os tipos de catarse e expiação), aparece com toda a força de um processo épico de metamorfose da história em matéria de nação e do esforço ético para a desconstrução do sofrimento psíquico: “combatendo a babugem/sou poeta de verso brabo”. Mas um “verso brabo” domado pelo soneto, em que o azul recorrente do arrebatamento romântico, no sentido da liberdade e da procura de vastidão, se associa à vigilante consciência de que “dar brilho aos reflexos é apenas literatura”. Este descer do azul alado dos céus, que exprimia o “horror à normalidade”, e que a busca alquímica da “matéria negra” compensava, para enfrentar, não as “ridentes metáforas”, mas a “pólvora/de muitos medos”, desarmado com um “coração dissonante”, consagra no poeta o “obstinado peso das raízes”.
Pires Laranjeira - professor de Literaturas e Culturas Africanas e investigador do Centro de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
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A propósito de José Luiz Tavares, ver AQUI entrevista de 14 de Maio de 2012 ao programa "Mar de Letras", da RTP.
Poema inicial do livro
PRELÚDIOS
I.
No princípio era o fogo.
E as mãos do deus sobre a água fervente.
E o poeta com seus poucos dons na cabeça
obscura. E o canto das estrelas alheias
às reticências do destino.
Pousado nas margens como um barco imóvel,
vigia de fiel resfolegar, lá estavas tu,
silencioso colosso para o julgamento do tempo,
sem as evasivas que um corpo quebradiço
oferece ao escrutínio incontroverso da perenidade.
Ainda o lume vivo não se mudara
em fogo frio, à pacatez que embebe
os olhos no mar de aspereza vieram
as máquinas rasgar para que, cumprida
a voz da natureza, outro destino
mais humano ali nascesse:
traziam os construtores para junto
das searas os seus martelos rangentes;
encantados por esse ofício de paciência
viam a posteridade espelhada na pedra
lavrada, com seus sólidos vínculos
atando massa a massa.
Mas tu ergues-te sobre o chão do teu
destino, que eu bem vi prolongar-se
nesse parto de cinzas, esse grito austero
sobre as águas mergulhando num sonho
de catástrofe a minha cabeça de deus mortal,
ali onde a ilha se afunda ao bafo inclemente
de tal colosso, embora sejas a face límpida
que acolhe o peregrino alheio ao pio que incubas
nas entranhas e sagra-se nessa fala trôpega
subindo desde as reentrâncias onde tudo
solicita o afago da nossa terrena angústia.
Com os copiosos dedos assinala-se agora o teu
perímetro sobre os mapas. Vorazmente, os meus
olhos perseguem as curvas do teu destino
no labirinto dos dias descarnados, longe da névoa
dos sentimentos, como convém a um poeta
das pedras, sem os louros da conquista, mas imerso
na veemência com que tudo aqui cita o nascer da vida.