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Este artigo, que já conhecíamos, foi-nos enviado pelo nosso colaborador Adriano Miranda Lima. Vantajosa colaboração, porque escrita em Word, que facilita imenso o trabalho de aqui o reproduzirmos. É texto demasiado longo para blogue, mas que no caso tem o poderoso aliciante de se referir a personalidade intelectual e científica muito do nosso comum agrado (meu, do Adriano e dos restantes cabo-verdianos interessados pelas coisas da sua terra). Da autoria do Comandante da Armada Portuguesa Conceição Silva, foi publicado na “Revista da Armada” de Junho de 2006. O autor surpreende-se com os profundos conhecimentos náuticos de Teixeira de Sousa e demonstra o seu apreço pelo escritor. E ainda por cima insere duas imagens de barcos nossos velhos conhecidos, o "Ernestina" e o "Maria Sony". Tudo motivos para saborosa leitura em que se rememoram factos da grande (e trágica) história marítima das ilhas.
HOMENS E NAVIOS NA OBRA DE TEIXEIRA DE SOUSA
Em 3 de Março do ano corrente, em Oeiras, quando fazia a sua marcha diária, o escritor Henrique Teixeira de Sousa, de 87 anos de idade, foi atropelado por um automóvel. Poucos meses antes tivera lugar o lançamento de “Ó Mar de Túrbidas Vagas”, o seu ultimo livro. “Último”, no sentido de “mais recente”, pois foi publicado em fins de 2005; mas “último” também como “derradeiro”, já que o escritor veio a falecer em consequência dos ferimentos sofridos. Assim, duma forma cruel e estúpida, perdeu a literatura cabo-verdiana de expressão portuguesa um grande autor, de cujo talento, não obstante a sua idade já avançada, muito havia ainda a esperar.
Teixeira de Sousa era natural da Ilha do Fogo, onde nasceu em 1919. Licenciou-se em Medicina, que exerceu profissionalmente, conciliando essa actividade com a de escritor. Em 1972 escreveu um livro de contos, “Contra Mar e Vento”, ao qual se seguiram vários outros, entre eles “Capitão de Mar e Terra” e “Ilhéu da Contenda” (que alguns consideram a sua melhor obra). E, finalmente, em 2005, o romance “Ó Mar de Túrbidas Vagas”.
A temática marítima é uma constante em toda a sua obra, o que justifica que a “Revista da Armada” lhe dedique uma singela homenagem, comentando-a junto dos seus leitores, que constituem um público muito especial, não só por estarem tecnicamente preparados para a entender e apreciar como também porque alguns deles poderão mesmo recordar factos descritos nos livros ou as realidades que serviram de inspiração a descrições fantasiadas.
Muitos leitores da “Revista da Armada” estiveram em Cabo Verde, em comissões nas Ilhas ou em estadias mais ou menos prolongadas em S. Vicente, especialmente nas décadas de 50 e 60. Por isso, conheceram bem aquelas terras e as suas gentes, e sabem quanto o pessoal da Marinha apreciava as permanências no Mindelo. Cabo Verde e a Marinha de Guerra Portuguesa sempre se relacionaram amigavelmente, processando-se o convívio entre marinheiros e naturais duma forma cordial e simpática. Essa estima recíproca está simbolizada num ícone bem conhecido - a morna “Barca Sagres”, da autoria desse grande compositor que foi B. Léza. Trata-se de uma peça musical só possível num ambiente de fraternidade e respeito mútuo, como o revela a sua letra: o avistamento do navio ao largo é saudado com alegria (“Selô Selô, é barca SAGRES!”), sendo-lhe atribuídos epítetos carinhosos e poéticos (“noiba di mar”, “ama di marinhero”), expressões que a morabeza cabo-verdiana reserva apenas para quem merece a sua afeição - sejam pessoas, sejam navios.
Deve ainda haver quem se recorde dos veleiros que faziam a cabotagem entre as ilhas, ou as viagens mais longas para Dakar ou para a América, em especial para Providence e New Bedford. Estes veleiros eram, na sua maioria, embarcações velhas, adquiridas em segunda-terceira (ou “enésima”) mão, na América e em outros lugares, depois de terem sido postas de parte por extinção das actividades em que eram utilizadas. Assim se explica a insólita presença, na frota de veleiros do Arquipélago, de navios das mais diversas origens, espécies e idades, como o “ERNESTINA”, americano, de 1894; do “MARIA SONY”, canadiano, de 1911; do “MADALAN”, ex-iate de luxo transformado em cargueiro; do “WALKIRIA”, um baleeiro; e até do “CORIOLANUS”, um ex-clipper americano. Todos estavam em fim de vida útil quando foram adquiridos, mas ainda navegaram ao longo de muitos anos, servindo as ilhas na cabotagem e nas viagens de longo curso, transportando passageiros e carga em condições económicas e de segurança muito precárias e difíceis. A última “importação” de um navio da América teve lugar em 1970, mas correu mal: consistiu numa tentativa de trazer para Cabo Verde um veleiro de cerca de trinta metros, chamado “CAPE EAGLE”, que já não navegava há cinco anos: afundou-se a 185` a NW das Bermudas, felizmente sem perda de vidas…
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A saga desse navios e dos homens que os tripulavam e as terríveis dificuldades e perigos de todas as naturezas que enfrentavam constituem uma lição de coragem e perseverança que merecia ser melhor conhecida. Desde os tempos em que a sua actividade marítima no Arquipélago se limitava ao embarque de tripulantes nos baleeiros americanos, até à da construção ou compra dos primeiros veleiros e, posteriormente, da constituição duma pequena frota de cabotagem e de navegação atlântica, os marinheiros de Cabo Verde trabalharam em condições de certo modo assimiláveis, no que às dificuldades e perigos respeita, às enfrentadas pelos marinheiros de séculos anteriores. As condições de sobrevivência económica eram extremamente difíceis e só pessoas de muito rija têmpera as conseguiam suportar.
É precisamente esta a realidade que serve de pano de fundo á obra de Teixeira de Sousa que, a par dos enredos dos contos e dos romances, deixou escritas páginas imorredoiras de literatura marítima de inexcedível perfeição.
Quando um marinheiro lê livros desta natureza, escritos ou traduzidos por quem não é profissional do mar, está de antemão preparado para encontrar erros na aplicação dos termos, incongruências e até, por vezes, autênticos disparates que tornam incompreensível o que o autor quer realmente dizer. É, portanto, com agradável surpresa que quem não conhecia Teixeira de Sousa vai, a pouco e pouco, ao longo da leitura, constatando que tudo o que se refere a temática náutica está exposto com absoluto rigor. E mais: que a descrição dos ambientes e das manobras revela que o autor compreendia perfeitamente aquilo de que estava a falar. As vozes de comando e os termos para se referir às questões de marinharia são correctos, e as manobras complexas de vela, de fundear, de suspender, a subida de um navio a um plano inclinado rudimentar, e todos os mil e um problemas da vida a bordo de um veleiro são descritas tal qual como teriam ocorrido na realidade!
Literatura deste tipo encontra-se num Celestino Soares, num Conrad, e em alguns outros autores. Mas todos eles eram profissionais do mar, pelo que não faria sentido que se exprimissem doutra forma. Teixeira de Sousa era médico, especialista em saúde pública, com muitos trabalhos publicados e larguíssima experiência nesse sector. Como é então possível que tenha alcançado tamanha mestria e domínio em assuntos marítimos a ponto de ser impossível detectar uma única incongruência, ou o mais leve erro técnico, na sua prosa escorreita, simples, levemente irónica mas incontestavelmente rigorosa? Qualquer marinheiro da actualidade aprenderá nos seus livros coisas em que provavelmente nunca pensou – desde a melhor forma de utilizar as velas para aproveitar um aguaceiro e atestar tanques de aguada quase vazios a outras técnicas igualmente inéditas, curiosas e específicas de um ramo de saber hoje já quase esquecido. Por tudo isto me atrevo a comparar Teixeira de Sousa a Patrick O’Brian, que, não sendo marinheiro, atingiu um grau de perfeição na literatura marítima só alcançável por quem conhece profundamente e compreende perfeitamente aquilo sobre que escreve.
Com a morte de Teixeira de Sousa perde-se ainda o sentido de linhas de conexão entre assuntos referidos em obras anteriores que se prolongavam ou completavam noutras mais recentes. Assim sucede, por exemplo, com o naufrágio do “EMA HELENA I”, magistralmente descrito no conto “Contra Mar e Vento”: fica a saber-se, em “O Ilhéu da Contenda”, que afinal o Capitão Fortunato não foi vencido pela adversidade; lutou contra ela e acabou por conseguir vencer, comprando outro navio, o “EMA HELENA II”! A descrição do naufrágio é feita em termos que lhe dariam justo lugar em qualquer antologia trágico-marítima, enriquecendo-a ainda mais a transcrição de um “Protesto de Mar” (comentado) cujo realismo e exactidão formal revelam que Teixeira de Sousa tinha, também, conhecimentos sobre Direito Marítimo, e compreendia perfeitamente as questões jurídicas subjacentes às situações que descrevia.
Igualmente se perde a fonte de curiosos apontamentos de “pequena história”, com interesse para a Marinha (Marinha de Guerra e Marinha Mercante), como por exemplo a questão da intervenção (real?, fictícia?) de “Custódio Rocha”, o competentíssimo capitão de veleiros que andara embarcado no “ARCHIBALD RUSSEL”, e que teria sido convidado, devido aos seus muitos conhecimentos e grande experiência, para treinar a primeira guarnição da primeira “SAGRES”, quando esta entrou ao serviço - assunto a que, de forma pouco clara, Teixeira de Sousa alude em “Capitão de Mar e Terra”.
Interessante é também a referência, no mesmo livro, às actividades dos SOKOLS, (quem imaginaria a sua existência?) e o esclarecimento definitivo do caso do italiano devorado por um tubarão na Matiota, facto que, com o correr dos anos, se não sabia já se tinha acontecido ou se era apenas uma lenda: aconteceu realmente na década de trinta, e deu lugar à colocação da rede que os prestimosos SOKOLS, com a ajuda do Capitão Alfredo Araújo, implantaram na baía!
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O enredo de “Ó Mar de Túrbidas Vagas” é leve e divertido. O escritor Germano de Almeida, outro nome grande da literatura cabo-verdiana contemporânea, descreveu-o sinteticamente como “a luta do capitão Hilário Cardoso, comandante de um veleiro em viagem de Providence e New Bedford para S. Vicente e Brava, entre o sagrado princípio de se manter fiel à sua legitima esposa e as provocações de uma bela passageira que todos os dias inventa novas maneiras de quebrar essa fidelidade persistente…”
O aprofundamento do assunto e o seu desfecho interessaria com certeza aos leitores da “Revista da Armada”, por motivos óbvios; mas, na perspectiva deste texto, contar o que acabou por suceder não constitui prioridade: o que importa é chamar a atenção para a globalidade da obra deste autor e sublinhar o seu interesse para quem goste de boa literatura náutica e/ou, em termos mais gerais, tenha ligações afectivas com a acolhedora e inesquecível terra de Cabo Verde, como sucede certamente com os leitores desta Revista.
Comandante G. Conceição Silva
Nota do PB: Trata-se do comandante Guilherme George Conceição Silva, prestigiado oficial da Armada, filho do conceituado astrónomo, astrofotógrafo e professor da Escola Naval Eugénio Correia Conceição Silva, também oficial da Marinha de Guerra Portuguesa.