Para grande desgosto do PRAIA DE BOTE, a memória do scudim de bronze está mesmo apagada. Ninguém chegou lá, nem perto! E todos os nossos leitores tinham obrigação de saber dizer qualquer coisa sobre ele. Nem que ficassem pela metade...
Mas... estará mesmo apagada? Isso é que era bom!!! Aqui no PB tudo se reaviva, tudo se reaprende, tudo se ressuscita (sobre o Mindelo, "aquel país", claro!). Enfim, dentro do possível que a memória do PB é só de elefante e não de computador...
1 - Comecemo-la num país da América do Sul, o Uruguai. Diga-se em abono da verdade que esta nação não interessa nem um bocadinho ao desenrolar da nossa história, excepto pelo nome da sua capital: Montevideo (em castelhano) ou Montevidéu (em língua portuguesa).
Montevidéu, pois, caro leitor, Montevidéu. Sabia que na nossa ilha de São Vicente há uma pequena zona com esse nome?
Pois, Montevidéu é o morro onde se ergue o Fortim (ou sobrevivem as suas ossadas) e o antigo Miradouro Craveiro Lopes (depois Serviços de Meteorologia). Como diz o Valdemar no seu comentário, dali desfruta-se uma das melhores vistas do Porto Grande e arredores.
|
Presidente Craveiro Lopes (clique na imagem) |
2 - Deixemos Montevidéu em banho-maria e lembremos o Presidente Francisco Higino Craveiro Lopes (1894-1964), aquele que se encontrava em funções quando o administrador do PB chegou a este mundo. Esteve no alto cargo apenas durante um mandato, entre 1951 e 1958. De início apoiante incondicional de Salazar, foi-se afastando progressivamente do ditador, a ponto de este e o regime não lhe terem dado a possibilidade de um segundo mandato, seguindo-se-lhe Américo Thomás, o último presidente do Estado Novo. Não é de estranhar a atitude, visto que Craveiro Lopes chegou ao ponto de conspirar por palavras e actos contra o homem de S. Bento. E isso não podia ter perdão...
|
Berta Craveiro Lopes (clique na imagem) |
Não vem ao caso falarmos agora da biografia deste militar e homem íntegro que quando faleceu conhecia todo o Império, por nele ter tido funções oficiais ou por o ter visitado como PR. Curiosamente, a sua elegante esposa Berta (1889-1958) era natural de Moçambique, onde a conheceu e com ela casou e alguns dos filhos fizeram vida em Angola.
Mais nos interessa a sua visita a Cabo Verde (que também teve a Guiné como destino), entre 15 e 26 de Maio de 1955. Ou muito mais, à ilha de S. Vicente, em 20, 21 e 22 (neste último dia, só de manhã, altura em que assistiu a uma missa na igreja de N.ª Sr.ª da Luz, tendo depois seguido para Santo Antão). Mas não deixemos de lembrar que na Praia, Santiago, ainda existe um bairro com o seu nome. Ver
aqui dados muito interessantes e elucidativos sobre o mesmo.
Montevidéu e Craveiro Lopes, dois pontos cruciais de nôs stóra d'scude... Mas mais haverá!...
|
CMSV - Foto Joaquim Saial (clique na imagem) |
3 - Quando um Presidente da República (português ou de outra nação colonial) visitava um ponto do Império, era de regra lá deixar a sua marca: lápides, inauguração de estátuas ou bustos de heróis, edifícios públicos como escolas, liceus, hospitais, bibliotecas, obras de engenharia como baragens ou pontes, etc. Ora para aqueles dias 20 e 21 de Maio de 1955 em S. Vicente, o programa nesse aspecto era de todo modesto. Uma recepção muito amistosa, como só o povo de S. Vicente sabe oferecer, alegria a rodos, discursos, até uma almoçarada na Baía das Gatas mas... nenhum sumo construtivo ou de progresso que de facto interessasse à ilha. Vejamos do que constava, no essencial, o programa: recepção das chaves do Mindelo, sessão solene na Câmara Municipal de S. Vicente, uma inauguração (que tem a ver com o nosso escudo mas cujo véu ainda não levantamos), uma visita ao Liceu Gil Eanes, outra ao Hospital, um almoço na Baía das Gatas (oferecido pelo Presidente), uma festa desportiva (em que partiparam o Mindelense, o Derby, o Castilho a Académica e o Amarante) e uma recepção no Palácio do Governo (obviamente também patrocinada por Craveiro Lopes).
4 - Ora a primeira vez que ouvimos falar do escudo foi através do "Diário Popular" de 25.Abril.1955. Aqui vai a notícia que, iniciada por melhoramentos que Craveiro Lopes iria inaugurar em Santiago, tinha depois destaque para S. Vicente:
A RECEPÇÃO AO CHEFE DE ESTADO EM CABO VERDE – Cidade da Praia, 25 – Vai por toda a Província grande entusiasmo pela próxima visita do general Craveiro Lopes, trabalhando-se intensamente nos preparativos da recepção a fim de dar-lhe a grandeza que todos desejam.
Na Vila Assomada, sede do concelho de Santa Catarina, a população está a construir um pequeno padrão comemorativo da visita. Ninguém quis deixar de contribuir por todas as formas e meios para a realização da obra, na qual se trabalha com o maior carinho. Entre as obras a inaugurar pelo chefe do Estado, destacam-se o novo abastecimento de água à cidade da Praia; o Posto de Fomento Pecuário de S. Jorge dos Órgãos, [etc.] Está a merecer também grande interesse o desfile pecuário a realizar no concelho de Santa Catarina, em que Cabo Verde mostrará a sua apreciável riqueza pecuária.
A oferta do sr. general Craveiro Lopes de um escudo em bronze, oferecido pelo chefe do Estado com a efígie de Diogo Afonso, causou grande alegria
Cidade do Mindelo (ilha de S. Vicente), 25 – Causou grande alegria a chegada de um escudo de bronze, oferecido pelo chefe do Estado, com a efígie de Diogo Afonso, descobridor da ilha de S. Vicente, e que se destina a ser colocado num padrão que a Câmara Municipal está a erigir em Montevideu, perto do fortim d’El-Rei, que domina toda a baía.
Temos então que o padrão era oferta do município, mimo ao PR que iria chegar ao Mindelo em visita oficial, e iria inaugurá-lo. Este, tendo sabido da coisa, resolvera oferecer um escudo em bronze como retribuição da gentileza sanvicentina. Era o padrão sobretudo memória de um tal Diego Affomso de que fala Duarte Pacheco Pereira, navegador do Infante D. Henrique, homem que fazia uma perninha no negócio da escravatura e que terá descoberto algumas ilhas do arquipélago como a Brava, S. Nicolau, Santo Antão e S. Vicente, para além dos ilhéus Rombo e Raso. Homenagem a Diogo Afonso, portanto, e não ao PR que depois teve de facto nome em miradouro próximo. Vejamos então como se previa que fosse a cerimónia inaugurativa, através do já nosso conhecido "Diário de Notícias" de New Bedford:
"De traço simples mas elegante, com quatro metros e meio de altura, o padrão compõe-se de uma coluna rectangular, encimada pela cruz de Cristo, tendo na face posterior um medalhão em formato de escudo com a inscrição: 'A Diogo Afonso - descobridor desta ilha de S. Vicente'.
Simultaneamente, com a inauguração do monumento, será descerrada uma placa de bronze oferecida pelo sr. general Craveiro Lopes, a qual, afixada na base do padrão, representa, além de uma homenagem do chefe de Estado ao descobridor da ilha, um símbolo comemorativo da viagem do sr. Presidente da República ao arquipélago de Cabo Verde.
O significado histórico deste monumento, que se pode considerar o pagamento de uma dívida de gratidão a um dos maiores navegadores do Portugal de 500, será enaltecido, durante a cerimónia de inauguração, em discurso proferido pelo presidente da Câmara Municipal de S. Vicente, sr. Bento de Oliveira.
A guarda de honra ao monumento será prestada por uma força de marinha sob o comando de um primeiro-tenente e constituída por uma companhia a quatro pelotões; e a guarda de honra ao chefe do Estado por forças do Exército.
|
Foto NJNS, 6.2.1965 (clique na imagem) |
Do alto do Fortim seguirá depois o sr. general para o Liceu Gil Eanes, cujas instalações irá visitar, acompanhado pelo Reitor, sr. Dr. Baltasar Lopes da Silva. (...)"
E aqui está, como aparece o escudo de bronze atrás do qual temos andado às voltas. Resta apresentá-lo aos rapazes esquecidos que não conseguiram dar com ele nos recantos recônditos das suas memórias.
Em foto do pai do nosso amigo Djack, ele aqui nos surge. Hoje, apenas como lembrança perdida, pois pelo menos em 1999 já estava destruído... O Djack, esse está de chinelos com sola articulada de pauzinhos (parte dos mesmos que tocava no chão), cobertura de palha (onde os pés assentavam) e duas tiras de veludo por cima (onde os dedos se enfiavam). Coisa fina, de japonês de maru...
Por altura desta foto, dez anos haviam passado sobre a inauguração. Atrás do padrão, estava agora o Miradouro Craveiro Lopes.
Mas não respirem fundo, porque a história do escudo ainda vai continuar. Prometemos aos nossos leitores que, no ponto 5, desceremos à morada para sabermos o que lhe aconteceu. Podem ir colocando comentários... não façam cerimónia!