A propósito da nota ontem inserida no PRAIA DE BOTE sobre o médico e escritor cabo-verdiano Henrique Teixeira de Sousa (com foto da casa onde viveu em S. Filipe, Fogo), o nosso colaborador Adriano Miranda Lima enviou-nos este texto escrito a 7 de Março de 2006, escassos quatro dias após a morte do médico e escritor de Ilhéu de Contenda.
Aqui oferecemos aos leitores do blogue a excelente prosa de AML, com a qualidade a que nos tem habituado. A foto, de nossa autoria, regista um momento do almoço promovido pela Associação dos Antigos Alunos do Ensino Secundário de Cabo Verde, no Restaurante Caravela, em Algés, Portugal, em 12 de Novembro de 2005. Está truncada, pois na original surge uma terceira pessoa muito nossa amiga. Mas é política do PB não colocar fotos de terceiros sem pedir autorização aos mesmos (excepto em casos de fotos com mais ou menos meio século). E para isso não houve tempo, dado que era imperioso colocar o texto de AML já, por questão de oportunidade.
HENRIQUE TEIXEIRA DE SOUSA
Singelo testemunho de um amigo
|
Adriano Miranda Lima |
No passado dia 3 deste mês, um brutal atropelamento ceifou a vida do médico e escritor cabo-verdiano Henrique Teixeira de Sousa, deixando o país em que nasceu mergulhado em profundo luto e na mais sentida consternação. Henrique Teixeira de Sousa era médico conceituado e um alto expoente das letras cabo-verdianas, de que era escritor dos mais produtivos. Especializado em nutricionismo, a ele se deve o principal contributo na elaboração de um estudo publicado sob o título “Plano de Abastecimento de Cabo Verde em Época de Seca”. Para além deste plano, outras mais intervenções e publicações pontificaram o seu empenho em servir Cabo Verde com o melhor do seu saber científico nesta vertente do conhecimento médico – o nutricionismo, particularmente útil numa terra marcada por séculos de dolorosas secas. Escritor influenciado pelo Movimento Claridoso e pelas correntes libertárias do homem, Teixeira de Sousa deixa-nos belos romances que retratam de forma sublime a realidade cabo-verdiana, com os seus costumes e as suas peculiaridades existenciais, com os seus sonhos e as suas angústias.
Tinha 86 anos, idade em que o comum das pessoas se acolhe ao aconchego do lar a aguardar o fim da vida. Mas Teixeira de Sousa não era desses. Vendia saúde, graças à sua boa condição genética, e, homem de têmpera, continuava a viver intensamente, exercendo ainda clínica privada e intervindo activamente na literatura. Ainda no ano passado, publicou o seu último romance
Oh Mar de Túrbidas Vagas e, segundo as suas palavras em entrevista publicada no suplemento “Kriolidadi” do jornal
A Semana, tinha na forja uma obra de carácter histórico e um romance lírico. Intervinha ainda em colóquios, como aconteceu, em Lisboa, em fins do ano passado, sobre Miguel de Cervantes e a sua obra.
Durante o meu tempo de menino e moço em Cabo Verde não me aconteceu qualquer contacto pessoal com o doutor Henrique Teixeira de Sousa, nem sequer por recurso aos seus serviços clínicos. Contudo, não ignorava a projecção social da sua carreira médica e a sua intervenção na literatura cabo-verdiana.
Mais tarde, em Portugal, o lançamento dos seus sucessivos romances viria a torná-lo alvo da minha especial atenção, leitor interessado que sou de temáticas sobre a realidade cabo-verdiana. À minha curiosidade como leitor começou a juntar-se uma grande simpatia por alguém a quem a distância não parecia arrefecer o amor acrisolado à terra onde nasceu, nem desarmar a busca incessante de temas originais para as suas criações literárias. O conteúdo das suas obras denotava um louvável esforço para manter vivo e estuante o filão da literatura genuinamente cabo-verdiana.
|
Foto Joaquim Saial - AML e Teixeira de Sousa (clique na imagem) |
O início da minha relação com o doutor Teixeira de Sousa tem apenas cerca de 5 anos. Depois de uma releitura de
Capitão de Mar e Terra, contactei o doutor a fim de lhe solicitar alguns esclarecimentos sobre certas figuras e factos referidos nesse romance, ao mesmo tempo que lhe manifestava o meu reconhecimento e apreço pelo seu contributo para a valorização da nossa literatura. A partir daí iniciámos uma regular troca de correspondência postal, além de esporádicos contactos telefónicos, relação que parecia destinada a prosseguir, sempre renovada de motivos de interesse, enquanto vida e saúde houvesse. Porém, jamais me passaria pela cabeça que tudo isso viria a ser brutalmente interrompido por um maldito atropelamento. Todos temos consciência da nossa finitude e a idade é o barómetro que, sem ilusões, nos vai dando o distanciamento da esperança de vida. Todavia, a energia física que o doutor alardeava e o vigor mental que animava todos os seus actos quase faziam dele um jovem no viço da idade, para quem a vida reservava ainda muitas páginas por virar, sedento das realizações espirituais que são o verdadeiro substrato da existência humana. Estava sempre atento aos fenómenos sociais e políticos da actualidade, aquém e além fronteiras, demonstrando uma perfeita sintonia com os novos tempos e emitindo juízos e opiniões em coerência com os princípios em que acreditava e os valores em que construiu e cimentou a sua vida.
Uma nota curiosa da personalidade do doutor Teixeira de Sousa era também o seu notável espírito de humor, aliado a uma surpreendente jovialidade, invulgar num homem já octogenário, assim como a sua simpatia e simplicidade como pessoa humana. Disso tive provas sobejas, em toda a nossa correspondência e no único encontro ocorrido entre nós – em homenagem que lhe foi prestada em Lisboa.
Merece ser ainda destacada a sua rica memória histórica, dotado que era de um extenso reportório de factos, situações e personagens, desde os mais variados sectores da cultura até às realidades e facetas mais singulares do povo da sua terra. Muito desse reportório foi publicado nas páginas do jornal
Terra Nova, sob a forma de crónicas ricas de conteúdos factuais e existenciais.
Pela sua profícua acção como médico, pelo seu importante papel na literatura e pela grandeza da sua postura cívica, Teixeira de Sousa é, sem dúvida, um grande vulto da cultura cabo-verdiana e um dos arquitectos do imaginário do povo das ilhas. Dele não consigo dizer mais palavras que não pertençam a essa imensa ovação que, em Cabo Verde e na diáspora, se ouvirá na hora di bai.
Doutor, obrigado pela sua amizade e consideração e obrigado também pelo exemplo de vida que a todos nos lega. Até sempre.