A noite decorreu bem, em cama confortável, e a manhã acordou sorridente e soalheira. O dia parece perfeito para a passeata prevista. Dirijo-me à casa de banho ao fundo do corredor e enfrento a primeira grande decepção em Ribeira Grande – e afinal única, como depois verificarei. Não há palavras para descrever o antro, bem equipado mas incrivelmente imundo pela passagem de hóspedes desconhecedores dos mínimos requisitos civilizacionais. Em bicos de pés, num chão alagado, com a toalha num ombro e um sabonete (meu) na mão esquerda, lavo-me com a outra, em malabarismos que nunca pensei praticar. Barba feita e cara lavada, constituem a reduzida ablução matinal. Impossível tomar duche em tais condições…
Saio do hotel e passo de novo pela igreja matriz que agora fotografo. Alguém abre a porta do templo, para a missa da manhã. Entram os poucos fiéis que já estavam por ali e eu também. Olham-me com curiosidade, mas nenhum me interpela. Daí a pouco entram mais pessoas, algumas das quais encontrara no dia anterior. Minutos após, volto à rua, para continuar a minha volta. O Fony deve estar a chegar. Tem coisas para resolver e o nosso passeio está previsto para a parte da tarde mas combinámos encontrar-nos antes para acertarmos pormenores, pois reservei a manhã para ir a pé a Ponta do Sol.
Foto Joaquim Saial - Igreja de N.ª Sr.ª do Rosário, Ribeira Grande |
Antes, ainda vou procurar a casa onde nasceu o reputado químico Roberto Duarte Silva (1837-1889), uma das maiores personalidades científicas que as ilhas cabo-verdianas deram ao mundo. Como a terra é pequena, não demoro a encontrá-la. Mais uma vez verifico que para se ser um grande homem não é necessário nascer em rico palácio. A casa, modestíssima e a precisar de pintura, alberga hoje a Mercearia Cipriano Cruz. Registando a memória do notável ribeiragrandense que passou pela China e por Lisboa e em Paris atingiu raras honrarias, subsiste uma placa indicativa por cima da porta da loja.
Foto Joaquim Saial - Casa natal de Roberto Duarte Silva, Ribeira Grande |
Junto a escola primária próxima, encontro o Fony. Estamos a conversar, quando chega uma senhora, a professora primária D. Isabel, que o conhece. Trocamos impressões sobre a Ribeira Grande e o que eu já vira naquele e no dia anterior. Nisto, ela aponta-me para o pedaço de calçada sobre o qual nos encontramos. Custa-me acreditar no que os meus olhos vêem: um escudo português, em pedra branca, remanescente dos tempos coloniais, incrustado no negro vulcânico do pavimento. A D. Isabel descreve ponto por ponto os sinais do símbolo nacional lusitano. Não me admiro, pois é de uma geração próxima da minha, em que nas escolas do Império os miúdos eram obrigados a ter esse e outros conhecimentos. É famosa, pelo seu ridículo, a situação que obrigava alunos dos confins de Angola ou Moçambique, para não falar dos da Índia, Macau e Timor, a saberem todas as linhas de comboio de Portugal continental… São cerca de dez horas. Despeço-me e dirijo-me para o lado do oceano, para bordejar a ilha pela estrada que leva à Ponta do Sol. Aproveito para fazer fotografias, entre as quais venho a encontrar duas das mais interessantes da campanha de Cabo Verde: a primeira retrata a ravina junto à estrada, por onde passa um homem carregado com lenha e a outra duas crianças que observam uma galinha a correr em velocidade acelerada, sem motivo aparente que o justifique (que não coloco aqui, por motivos óbvios, embora já se tenham passado mais de dez anos). No percurso, ainda perto da cidade e junto ao mar, repetem-se as pocilgas, cada uma com um ou dois porcos. A estrada vai subindo, o ar torna-se cada vez mais puro. Montanhas pela esquerda, sol por cima, Atlântico à direita. A paisagem é perfeita.
Foto Joaquim Saial - Estrada Ribeira Grande / Ponta do Sol |
Foto Joaquim Saial - Estrada Ribeira Grande / Ponta do Sol (pocilgas)
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Foto Joaquim Saial - Estrada Ribeira Grande / Ponta do Sol (pocilgas)
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Foto Joaquim Saial - Estrada Ribeira Grande / Ponta do Sol (ao fundo, a últimas casas de Ribeira Grande) |
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