segunda-feira, 14 de novembro de 2011

[0149] Texto de Adriano Miranda Lima _____________ À memória da minha avó materna Rosa Isabel Monteiro RECORDANDO AS MINHAS PRIMEIRAS FÉRIAS EM SANTO ANTÃO

Adriano Miranda Lima
Em outra narrativa evoquei a minha primeira viagem marítima a bordo do lugre “Senhor das Areias”. O destino foi a ilha de Santo Antão e o motivo umas férias na companhia da minha avó materna. O meu deslumbramento com a ilha de Santo Antão e o caudal de emoções despertado no decurso dessas férias tinham de ser também resgatados do fundo do baú da minha memória, onde se conservam quase intactos, passados 62 anos.   

Até ao momento em que embarquei para a ilha vizinha, os arquétipos sobre a realidade erigidos no meu imaginário de criança eram o que permitia a insipiência da idade que eu tinha. A minha noção do mundo físico abrangia apenas o espaço da zona onde morávamos, rua do Matadouro Velho, a orla do porto e o seu cais, e a casa dos avós paternos. Pouco mais, tirando uma ou outra ida ocasional à Cova da Inglesa (1), à Ribeira do Julião e ao Lameirão. A Cova da Inglesa merece, no entanto, e num breve parêntese, uma menção especial nesta introdução porque era o lugar que o meu pai escolhia para me levar a um primeiro contacto com o mar, até aos meus 6 anos. Bom nadador, ele levava-me muitas vezes às costas, que eu agarrava utilizando as mãos como se fossem tenazes, tal a aflição que sentia à medida que entrávamos água dentro. Mas o acontecimento mais importante, se não mesmo o principal móbil das deslocações domingueiras à Cova da Inglesa, era o lançamento de um papagaio que o pai confeccionava na véspera à noite, munido de canas, papel, cola e cordel, com que chegava a casa à noite, no regresso do trabalho. Era excitante ver o papagaio libertar-se da prisão e rasgar a trajectória vertical do seu vaivém ao sabor da linha que o prendia. Foi com essa experiência que comecei a perceber, na sua elementaridade, a noção de distância, escala e perspectiva.

Mas entremos agora em Santo Antão, mais concretamente na Vila de Ribeira Grande. Expliquei na crónica anterior o que foi a deslocação de Ponta de Sol àquela vila. Dias depois de chegar à ilha, comecei logo por notar a diferença fonética no falar das pessoas, com tendência a abrir o “e” mais do que em S. Vicente. Curiosamente, essa especificidade da pronúncia local, em vez de me soar como algo adverso, teve o condão, já naquela tenra idade, de me parecer associada a um falar mais meigo e mais amistoso. E essa impressão ficou-me para sempre impregnada nos sentidos, tanto que, regressando a S. Antão décadas depois, ao dirigir-se-me, com oferta de transporte, o condutor de uma carrinha Toyota Hiace, exclamei para mim mesmo, depois de o ouvir falar: - Pronto, já estou em Santo Antão. E senti-me em casa.

(clique na imagem)
Seguir-se-iam paulatinas descobertas conforme os espaços físicos que me iam sendo permitidos. Desde logo, a sensação mais impressionante foi a visão das montanhas espectaculares e dos belos vales da Ribeira da Torre e do Mompatrás, onde corria água e se apanhavam camarões, sobretudo no último, e onde abundavam culturas e árvores de fruto pouco comuns em S. Vicente. É evidente que tudo isso se foi desvendando à medida que, pela mão da avó ou de outras pessoas, ia sendo levado de visita a esses lugares.

À noite, ocorreu, à certa altura, um acontecimento a que não estava habituado e se repetiria por vários dias. As cagarras demandavam as montanhas defronte ao mar, para se acolherem ou para nidificarem, e a estridência roufenha do seu grito intrigava-me seriamente porque não sabia se eram pássaros de verdade ou se misteriosos seres alados ou almas penadas. Num tempo em que eram férteis as estórias de gongom, pode o leitor crer que a “fantasmagoria” daqueles visitantes nocturnos causava-me perplexidade, ainda que a avó me garantisse que eram mesmo pássaros marinhos. Mas mais confuso viria a ficar ao vê-las à venda em algumas mercearias, depenadas, abertas e secas como o peixe que também se vendia nas mesmas condições de conservação. Algumas pessoas as compravam para consumo humano, mas isso é coisa que nunca provei. Não conseguia vislumbrar naquelas figuras disformes qualquer semelhança com um pássaro.

Em S. Antão, passou a ser menos frequente o consumo de peixe fresco, visto que a pesca artesanal não tinha uma organização e dimensão semelhantes às da minha ilha natal. Se a nossa pesca era artesanal em todo o arquipélago, mais rudimentar era-o ainda em santo Antão. Com frequência, via botes no mar frente à vila a pescar melon (2) com recurso a dinamite, que explodia e deixava o pescado morto a boiar à superfície, o que só por si denuncia as limitações da pesca artesanal local. Com efeito, usar dinamite evitava o risco de aventurar-se por mar dentro e além disso poupava tempo e energia. Lembro-me de que os botes andavam por aí, acima e abaixo, à cata dos cardumes, e quando avistavam um alvo remunerador soavam as explosões, tantas quantas as necessárias para uma pescaria compensadora.

A nossa dieta alimentar passou a revestir algumas particularidades locais, o que a diferenciava um pouco dos hábitos de S. Vicente. Por exemplo, não havia fabrico de pão em S. Antão, consumindo-se bolachas das de trigo fabricadas nas padarias mindelenses do Manuel Matos e do Jonas Wahnon e que eram exportadas para todas ilhas de Cabo Verde, segundo hoje calculo. A batata doce assada no fogão de lenha do quintal era uma iguaria frequente e consumíamo-la às vezes como substituto do pão ou acompanhante de peixe seco assado e outros pratos. Batata doce barrada com manteiga de terra era bem saborosa. A ervilha verde guisada com mandioca, inhame e carne de porco salgada era na altura um prato mais frequente que em S. Vicente. E, é claro, mais manga e papaia passei a consumir, além da goiaba, jambo e outras frutas mais raras que eu desconhecia. Ah, o melaço da cana sacarina por vezes era usado como substituto do açúcar, o que dava ao café um gosto característico que ainda recordo, entrando também na confecção do delicioso doce de papaia verde.

(clique na imagem)
As festas de S. João foram um evento que pela primeira vez vi com outros preparos e envolvimentos. As romarias passavam em grande tropel em direcção a Porto Novo, onde eclodia a festa em todo o seu esplendor profano. Vinha gente do interior da ilha, a maior parte a pé, ostentando ramos de palmeira enfeitados, mas muitas pessoas também a cavalo, de mula ou de burro, em meio ao rufar dos tambores de pele de cabra e apitos ruidosos, tudo em ritmo alucinante e tendo o binómio homem-naviozinho (3) rodopiante como figura central. E era assim que os dias que precediam a festa do S. João logravam quebrar a monotonia rural das vilas, aldeias e lugarejos por onde passavam as ruidosas romarias de colá Sanjom rumando a Porto Novo.

Certo dia, um afilhado da minha avó levou-me de visita a Coculi, à garupa de uma mula. O objectivo era passar uns dias na localidade e foi quando vi pela primeira vez o trapiche em actividade. A certa ocasião, parei, distraído, no trajecto circular do boi, sem me dar conta de que os bichos estavam impossibilitados de desviar-se do seu curso, salvo se algum reflexo do seu instinto animal os travasse. Foi então que me senti repentinamente agarrado no ar por duas mãos adultas, com um circunstante a considerar: - Ah, mas não haveria problema porque os bois paravam. Não sei se paravam ou não, mas, pelo sim pelo não, houve duas mãos salvadoras que em devido tempo acudiram.

Recordar aquele tempo de Santo Antão é também falar nas chuvas torrenciais que nesse ano desabaram com a incontinência a que por vezes se permite a mãe natureza, coincidindo com a minha presença na ilha. O ribombar dos trovões a ecoar medonhamente nas montanhas, assim como a ribeira caudalosa que se formou à entrada da vila, obrigando a que as pessoas fossem transportadas às costas de uns passadores de serviço para poderem transitar para o lado oposto, são registos inesquecíveis. As chuvas ininterruptas por alguns dias foram tão intensas que houve uma procissão nocturna na vila, com velas acesas e o padre Figueiredo (4) à frente, tal o sentimento de apreensão que se apoderou da população. Na sequência dessas violentas chuvas, formou-se uma lagoa numa área de cota baixa, entre a vila e o mar, que mais tarde passaria a ser um local de banhos e divertimento para a meninada. Quando assentou o barro diluído nas cheias, a água ficou límpida e não tardou que, mais tarde, nela surgisse alguma vida aquática. Foi quando também fiquei a conhecer a habilidade de uns rapazes mais velhos que fabricavam muito sugestivos naviozinhos de pau de purgueira que, munidos de uma velinha de farrapo, animavam o lago em porfiadas regatas. Essas mesmas regatas liliputianas via-as em reprodução real no mar em frente quando os veleiros vindos de S. Vicente apanhavam calmaria e imobilizavam-se no mesmo sítio, sedentos de um sopro de aragem, por vezes retrocedendo, por força de correntes contrárias, até imediações da ponta da Sinagoga. Certo dia de grande e prolongada calmaria, um falucho quase que arribava à praia, impelido pelas correntes, tendo sido necessária a força de remos para impedir o seu encalhe.

O mar é um regaço a um tempo atractivo e desafiador. Junto às pedras onde as ondas se quebravam, apanhavam-se com facilidade pequenas moreias com uma linha e um simples anzol improvisado, passatempo proveitoso para o estômago a que assisti na companhia de um rapaz mais velho.

Outras tantas sensações preencheram o meu imaginário de criança em S. Antão, na altura virgem e ávida de descobertas e revelações. Foi essa vivência que me inculcou os primeiros sintomas de um sentimento telúrico que viria a tanger toda a plenitude do meu ser. O que a minha ilha natal não me tinha ainda proporcionado ofereceu-mo a ilha vizinha no deslumbre da sua cosmogonia, com a admirável compleição megalítica das suas fragas abruptas e a generosidade do seu úbere materno jorrando delícias em recantos de suprema beleza. E tal foi a dádiva que nunca a deixei por mãos alheias, ciente de que eu e ela somos feitos do mesmo barro amassado por uma qualquer divindade. É claro que o sentimento místico, entre o espanto e o embevecimento, com que encerro esta narrativa, é o resultado do acúmulo de impressões colhidas em visitas posteriores, mas a verdade é que tudo começou com a inocência pura dos meus 6 anos de idade.

Tomar, 11 de Novembro de 2011

(1) Lugar antigamente muito usado para banhos de mar, como ainda hoje se usa, embora talvez menos. O nome se deve ao facto de ter sido sepultada no lugar, no século XVIII, uma inglesa falecida a bordo de um navio inglês que passava perto da ilha. Lembre-se de que na ilha não existia ainda nenhuma comunidade humana propriamente dita.
(2) Nome que se dava, ou ainda se dá, em S. Antão, ao peixe da espécie cavala.
(3) Um pequeno navio com uma abertura central em que entra um homem para o movimentar como se navegasse.
(4) Nunca me esqueci do nome do pároco porque era amigo da minha avó e foi sendo referido ao longo dos tempos.

sábado, 12 de novembro de 2011

[0148] Velhas recordações do “Novas”…

Zito Azevedo
Ao rever, aqui no PRAIA DE BOTE, as elegantes silhuetas do “Ernestina” e do “Maria Sony” (post anterior), recordei um outro – talvez o mais elegante deles todos – o “Novas de Alegria”, em que, num dia de pouca sorte, resolvi viajar.

Corria o ano de 1956 e estava eu na Brava – Nova Sintra – onde tinha passado breves semanas despedindo-me da que haveria de ser minha esposa no ano seguinte, pois estava de abalada para Angola…

Dizia-se do “Novas” que era navio rápido, ou não fosse um iate a que, claro, haviam sido impostas algumas alterações no sentido de lhe aumentar a capacidade de carga e de espaço para passageiros… Ao fazê-lo, no entanto, julgo que se terá tomado uma iniciativa perigosa – a de diminuir de forma radical o volume da quilha… Como se sabe, a quilha dos iates é muito característica no desenho e no tamanho, creio que necessários para responder a exigências da física de contra-balanço com o altíssimo mastro. Sem parte importante da quilha e do lastro ganhou-se “espaço” para mais carga mas, infelizmente, o navio perdeu, quase por completo, a estabilidade lateral.

"Novas de Alegria" (clique na imagem)
A minha viagem, adiada por diversas vezes pois esta coisa de a gente se despedir da namorada – quase esposa – não é fácil, é doloroso, demorado, tira-nos o sono, aumenta-nos a ansiedade e dá direito ao que eu chamaria de síndrome da orfandade… Creio que há muito de filial no amor de um homem por uma mulher e o objecto do nosso amor acho que tem sempre uma aura de maternidade onde se alojam alguns dos nossos sentimentos mais disponíveis, como o respeito e a admiração… Fica-se absorto, envolto numa espécie de solenidade angelical tão grandiosa como se fosse o último segundo de uma breve eternidade, irrepetível, único, irreal, como o são, afinal todos os segundos da nossa existência.

(clique na imagem)
Quando acordei para a realidade do mundo real, o “Novas” baloiçava, de velas recolhidas e o motor auxiliar roncando lá nas profundezas do casco robusto, abandonando o porto da Furna… Olhando para o largo, foi com alguma apreensão que vislumbrei a imensidade de “carneiros” que se iam acumulando na crista da ondulação cada vez mais cavada, enquanto o veleiro transpunha os obstáculos cinzento-azulados, como se se tratasse de um cavalo branco esvoaçante… Algo me dizia que apesar da beleza telúrica do enquadramento, com aquele tempo e naquele iate, eu jamais chegaria à Praia… É que, se o canal para o Fogo estava daquele jeito eu podia calcular como estaria o Alcatraz!

Então, ali mesmo, à ré do navio, enquanto um reverendo lançava ao mar golfadas de um castanho igualzinho ao da sua capa de franciscano (comigo pensando que lá se ia o leite-com-chocolate…) decidi que desembarcaria em S. Filipe e depois… depois logo se veria!

Costuma dizer-se que todos os malandros têm sorte, muito embora eu não fosse um malandro e já tivesse experimentado dose suficiente de falta de sorte para um só dia!  Eu explico…

Quando havia carga e passageiros que o justificasse, o avião Dragon Rapid (um asa dupla em lona que transportava umas tantas malas, uns tantos garrafões e sete passageiros além, claro, do piloto!). Para o aviãozinho se deslocar, no entanto, era necessário mandar um telegrama e 24 ou 36 horas depois o Dragon lá aparecia. Na época, não havia serviço telefónico para fora do Fogo… Quer dizer: não havia mas ia ser inaugurado nessa manhã! A sorte do malando…

(clique na imagem)
Depois de muita conversa, muito pedido, muitos sapos engolidos, ficou combinado que logo a seguir ao telefonema protocolar de inauguração do serviço, seria feito o primeiro de carácter comercial para os TACV para fazer deslocar o avião, onde havia mais do que suficiente de carga e passageiros a justificar a deslocação.

Enfim, poucas horas depois eu, o piloto mais seis pessoas muito agradecidas, dez malas e seis caixas de pintainhos amarelos que não se calaram a viagem toda, cruzávamos os céus até ao aeroporto da Praia!

Respirei de alívio pela primeira vez nesse dia, mal sabendo que o trajecto seguinte, para S. Vicente, para embarcar, no dia seguinte, para Lisboa a caminho de Angola, ia dar pano para mangas…

Mas isso são contas de outro rosário!

Zito Azevedo

Queluz, 11 de Novembro de 2011
Imagens do arquivo do PRAIA DE BOTE

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

[0147] Ainda Teixeira de Sousa. Texto do comandante Conceição Silva (da Armada portuguesa), por ocasião do lançamento do derradeiro livro do autor cabo-verdiano, "Ó Mar de Túrbidas Vagas", em 2006

(clique e na imagem)
Este artigo, que já conhecíamos, foi-nos enviado pelo nosso colaborador Adriano Miranda Lima. Vantajosa colaboração, porque escrita em Word, que facilita imenso o trabalho de aqui o reproduzirmos. É texto demasiado longo para blogue, mas que no caso tem o poderoso aliciante de se referir a personalidade intelectual e científica muito do nosso comum agrado (meu, do Adriano e dos restantes cabo-verdianos interessados pelas coisas da sua terra). Da autoria do Comandante da Armada Portuguesa Conceição Silva, foi publicado na “Revista da Armada” de Junho de 2006. O autor  surpreende-se com os profundos conhecimentos náuticos de Teixeira de Sousa e demonstra o seu apreço pelo escritor. E ainda por cima insere duas imagens de barcos nossos velhos conhecidos, o "Ernestina" e o "Maria Sony". Tudo motivos para saborosa leitura em que se rememoram factos da grande (e trágica) história marítima das ilhas.


HOMENS E NAVIOS NA OBRA DE TEIXEIRA DE SOUSA

Em 3 de Março do ano corrente, em Oeiras, quando fazia a sua marcha diária, o escritor Henrique Teixeira de Sousa, de 87 anos de idade, foi atropelado por um automóvel. Poucos meses antes tivera lugar o lançamento de “Ó Mar de Túrbidas Vagas”, o seu ultimo livro. “Último”, no sentido de “mais recente”, pois foi publicado em fins de 2005; mas “último” também como “derradeiro”, já que o escritor veio a falecer em consequência dos ferimentos sofridos. Assim, duma forma cruel e estúpida, perdeu a literatura cabo-verdiana de expressão portuguesa um grande autor, de cujo talento, não obstante a sua idade já avançada, muito havia ainda a esperar.

Teixeira de Sousa era natural da Ilha do Fogo, onde nasceu em 1919. Licenciou-se em Medicina, que exerceu profissionalmente, conciliando essa actividade com a de escritor. Em 1972 escreveu um livro de contos, “Contra Mar e Vento”, ao qual se seguiram vários outros, entre eles “Capitão de Mar e Terra” e “Ilhéu da Contenda” (que alguns consideram a sua melhor obra). E, finalmente, em 2005, o romance “Ó Mar de Túrbidas Vagas”.

A temática marítima é uma constante em toda a sua obra, o que justifica que a “Revista da Armada” lhe dedique uma singela homenagem, comentando-a junto dos seus leitores, que constituem um público muito especial, não só por estarem tecnicamente preparados para a entender e apreciar como também porque alguns deles poderão mesmo recordar factos descritos nos livros ou as realidades que serviram de inspiração a descrições fantasiadas.

Muitos leitores da “Revista da Armada” estiveram em Cabo Verde, em comissões nas Ilhas ou em estadias mais ou menos prolongadas em S. Vicente, especialmente nas décadas de 50 e 60. Por isso, conheceram bem aquelas terras e as suas gentes, e sabem quanto o pessoal da Marinha apreciava as permanências no Mindelo. Cabo Verde e a Marinha de Guerra Portuguesa sempre se relacionaram amigavelmente, processando-se o convívio entre marinheiros e naturais duma forma cordial e simpática. Essa estima recíproca está simbolizada num ícone bem conhecido - a morna “Barca Sagres”, da autoria desse grande compositor que foi B. Léza. Trata-se de uma peça musical só possível num ambiente de fraternidade e respeito mútuo, como o revela a sua letra: o avistamento do navio ao largo é saudado com alegria (“Selô Selô, é barca SAGRES!”), sendo-lhe atribuídos epítetos carinhosos e poéticos (“noiba di mar”, “ama di marinhero”), expressões que a morabeza cabo-verdiana reserva apenas para quem merece a sua afeição - sejam pessoas, sejam navios.

Deve ainda haver quem se recorde dos veleiros que faziam a cabotagem entre as ilhas, ou as viagens mais longas para Dakar ou para a América, em especial para Providence e New Bedford. Estes veleiros eram, na sua maioria, embarcações velhas, adquiridas em segunda-terceira (ou “enésima”) mão, na América e em outros lugares, depois de terem sido postas de parte por extinção das actividades em que eram utilizadas. Assim se explica a insólita presença, na frota de veleiros do Arquipélago, de navios das mais diversas origens, espécies e idades, como o “ERNESTINA”, americano, de 1894; do “MARIA SONY”, canadiano, de 1911; do “MADALAN”, ex-iate de luxo transformado em cargueiro; do “WALKIRIA”, um baleeiro; e até do “CORIOLANUS”, um ex-clipper americano. Todos estavam em fim de vida útil quando foram adquiridos, mas ainda navegaram ao longo de muitos anos, servindo as ilhas na cabotagem e nas viagens de longo curso, transportando passageiros e carga em condições económicas e de segurança muito precárias e difíceis. A última “importação” de um navio da América teve lugar em 1970, mas correu mal: consistiu numa tentativa de trazer para Cabo Verde um veleiro de cerca de trinta metros, chamado “CAPE EAGLE”, que já não navegava há cinco anos: afundou-se a 185` a NW das Bermudas, felizmente sem perda de vidas…

Imagem publicada no artigo (clique na imagem)
Imagem publicada no artigo (clique na imagem)
A saga desse navios e dos homens que os tripulavam e as terríveis dificuldades e perigos de todas as naturezas que enfrentavam constituem uma lição de coragem e perseverança que merecia ser melhor conhecida. Desde os tempos em que a sua actividade marítima no Arquipélago se limitava ao embarque de tripulantes nos baleeiros americanos, até à da construção ou compra dos primeiros veleiros e, posteriormente, da constituição duma pequena frota de cabotagem e de navegação atlântica, os marinheiros de Cabo Verde trabalharam em condições de certo modo assimiláveis, no que às dificuldades e perigos respeita, às enfrentadas pelos marinheiros de séculos anteriores. As condições de sobrevivência económica eram extremamente difíceis e só pessoas de muito rija têmpera as conseguiam suportar.

É precisamente esta a realidade que serve de pano de fundo á obra de Teixeira de Sousa que, a par dos enredos dos contos e dos romances, deixou escritas páginas imorredoiras de literatura marítima de inexcedível perfeição.

Quando um marinheiro lê livros desta natureza, escritos ou traduzidos por quem não é profissional do mar, está de antemão preparado para encontrar erros na aplicação dos termos, incongruências e até, por vezes, autênticos disparates que tornam incompreensível o que o autor quer realmente dizer. É, portanto, com agradável surpresa que quem não conhecia Teixeira de Sousa vai, a pouco e pouco, ao longo da leitura, constatando que tudo o que se refere a temática náutica está exposto com absoluto rigor. E mais: que a descrição dos ambientes e das manobras revela que o autor compreendia perfeitamente aquilo de que estava a falar. As vozes de comando e os termos para se referir às questões de marinharia são correctos, e as manobras complexas de vela, de fundear, de suspender, a subida de um navio a um plano inclinado rudimentar, e todos os mil e um problemas da vida a bordo de um veleiro são descritas tal qual como teriam ocorrido na realidade!

Literatura deste tipo encontra-se num Celestino Soares, num Conrad, e em alguns outros autores. Mas todos eles eram profissionais do mar, pelo que não faria sentido que se exprimissem doutra forma. Teixeira de Sousa era médico, especialista em saúde pública, com muitos trabalhos publicados e larguíssima experiência nesse sector. Como é então possível que tenha alcançado tamanha mestria e domínio em assuntos marítimos a ponto de ser impossível detectar uma única incongruência, ou o mais leve erro técnico, na sua prosa escorreita, simples, levemente irónica mas incontestavelmente rigorosa? Qualquer marinheiro da actualidade aprenderá nos seus livros coisas em que provavelmente nunca pensou – desde a melhor forma de utilizar as velas para aproveitar um aguaceiro e atestar tanques de aguada quase vazios a outras técnicas igualmente inéditas, curiosas e específicas de um ramo de saber hoje já quase esquecido. Por tudo isto me atrevo a comparar Teixeira de Sousa a Patrick O’Brian, que, não sendo marinheiro, atingiu um grau de perfeição na literatura marítima só alcançável por quem conhece profundamente e compreende perfeitamente aquilo sobre que escreve.

Com a morte de Teixeira de Sousa perde-se ainda o sentido de linhas de conexão entre assuntos referidos em obras anteriores que se prolongavam ou completavam noutras mais recentes. Assim sucede, por exemplo, com o naufrágio do “EMA HELENA I”, magistralmente descrito no conto “Contra Mar e Vento”: fica a saber-se, em “O Ilhéu da Contenda”, que afinal o Capitão Fortunato não foi vencido pela adversidade; lutou contra ela e acabou por conseguir vencer, comprando outro navio, o “EMA HELENA II”! A descrição do naufrágio é feita em termos que lhe dariam justo lugar em qualquer antologia trágico-marítima, enriquecendo-a ainda mais a transcrição de um “Protesto de Mar” (comentado) cujo realismo e exactidão formal revelam que Teixeira de Sousa tinha, também, conhecimentos sobre Direito Marítimo, e compreendia perfeitamente as questões jurídicas subjacentes às situações que descrevia.

Igualmente se perde a fonte de curiosos apontamentos de “pequena história”, com interesse para a Marinha (Marinha de Guerra e Marinha Mercante), como por exemplo a questão da intervenção (real?, fictícia?) de “Custódio Rocha”, o competentíssimo capitão de veleiros que andara embarcado no “ARCHIBALD RUSSEL”, e que teria sido convidado, devido aos seus muitos conhecimentos e grande experiência, para treinar a primeira guarnição da primeira “SAGRES”, quando esta entrou ao serviço - assunto a que, de forma pouco clara, Teixeira de Sousa alude em “Capitão de Mar e Terra”.

Interessante é também a referência, no mesmo livro, às actividades dos SOKOLS, (quem imaginaria a sua existência?) e o esclarecimento definitivo do caso do italiano devorado por um tubarão na Matiota, facto que, com o correr dos anos, se não sabia já se tinha acontecido ou se era apenas uma lenda: aconteceu realmente na década de trinta, e deu lugar à colocação da rede que os prestimosos SOKOLS, com a ajuda do Capitão Alfredo Araújo, implantaram na baía!

(clique na imagem)
O enredo de “Ó Mar de Túrbidas Vagas” é leve e divertido. O escritor Germano de Almeida, outro nome grande da literatura cabo-verdiana contemporânea, descreveu-o sinteticamente como “a luta do capitão Hilário Cardoso, comandante de um veleiro em viagem de Providence e New Bedford para S. Vicente e Brava, entre o sagrado princípio de se manter fiel à sua legitima esposa e as provocações de uma bela passageira que todos os dias inventa novas maneiras de quebrar essa fidelidade persistente…”

O aprofundamento do assunto e o seu desfecho interessaria com certeza aos leitores da “Revista da Armada”, por motivos óbvios; mas, na perspectiva deste texto, contar o que acabou por suceder não constitui prioridade: o que importa é chamar a atenção para a globalidade da obra deste autor e sublinhar o seu interesse para quem goste de boa literatura náutica e/ou, em termos mais gerais, tenha ligações afectivas com a acolhedora e inesquecível terra de Cabo Verde, como sucede certamente com os leitores desta Revista.

Comandante G. Conceição Silva

Nota do PB: Trata-se do comandante Guilherme George Conceição Silva, prestigiado oficial da Armada, filho do conceituado astrónomo, astrofotógrafo e professor da Escola Naval Eugénio Correia Conceição Silva, também oficial da Marinha de Guerra Portuguesa.

domingo, 6 de novembro de 2011

[0146] Henrique Teixeira de Sousa, quase seis anos... (ver três posts anteriores)

Foto Joaquim Saial. Os meus livros de Henrique Teixeira de Sousa, alguns autografados (clique na imagem)

Conheci Henrique Teixeira de Sousa como presidente da Câmara Municipal de S. Vicente de Cabo Verde e como pai do meu amigo e condiscípulo do Liceu Gil Eanes Aníbal Orlando "Landim" Teixeira de Sousa, nos idos de meados de 60 do século passado. Nunca soube na altura (eu era um simples miúdo de onze ou doze anos, preocupado com outras coisas) da sua importância como médico, homem de letras ou até que era filho de um capitão John da longa carreira à vela entre os Estados Unidos da América e Cabo Verde.

Um dia, súbita e precocemente, a esposa faleceu. Nao fui ao funeral mas estive no velório, realizado na sua casa quase fronteira ao liceu. Lá estava o Landim, a quem dei um abraço, naquele quartinho com beliches onde ele dormia com o irmão mais velho. Dia mais que triste, como não podia deixar de ser...

O tempo passou. A ligação perdeu-se por décadas. Mas foi reatada, algures nos anos 90, lá por 1998, mais ou menos. O Landim, agora médico em Portugal, esteve em minha casa a almoçar, com a esposa. Tarde inesquecível, de reavivar de memórias comuns, sempre com Cabo Verde como pano de fundo.

Em 12 de Novembro de 2005 (há seis anos quase certos), revi o Dr. Henrique Teixeira de Sousa, no Restaurante Caravela de Ouro, em Algés, onde a Associação dos Antigos Alunos do Ensino Secundário de Cabo Verde (da qual sou sócio) lhe fez justa homenagem. 

Foto Joaquim Saial. Henrique Teixeira de Sousa, discursando na homenagem feita pela AAAESCV no restaurante Caravela de Ouro, Algés, em 12.Novembro.2005 (clique na imagem)

Em 14 de Dezembro do mesmo ano, reencontrei-o no lançamento do seu derradeiro livro, "Ó Mar de Túrbidas Vagas", na Casa da Morna, em Lisboa, e fiz aquelas que serão eventualmente as últimas 24 fotos da sua vida.

No dia 3 de Março de 2006, um estúpido acidente ceifou-lhe a vida. Faleceu nessa data, vitima de atropelamento, em Algés. Fui ao seu velório, como já fora ao da primeira esposa, décadas antes. A 9 de Março, foi cremado no cemitério dos Olivais, onde esteve presente um conjunto de cerca de uma centena de pessoas, familiares, amigos e admiradores que o quiseram acompanhar no último acto da sua passagem pela terra. Coube-me, a pedido da presidente da AAAESCV, Nominanda Fonseca, a oração fúnebre, singelas palavras que duraram três ou quatro minutos, antes de o seu corpo se transformar em cinza que agora repousa no Fogo natal.

NOTA: Ver também excelente texto de Adriano Miranda Lima no blogue "Na Esquina do Tempo".

Foto Joaquim Saial. Lançamento de "Ó Mar de Túrbidas Vagas", em 14.Dezembro.2005. Na mesa, Elsa Rodrigues, o editor da Plátano, Henrique Teixeira de Sousa e José Luís Hopffer Almada. Atrás, Tito Paris (clique na imagem)

[0145] Texto muito interessante, sobre um tempo desaparecido, o dos "shipchandlers" do Porto Grande (ver posts 144 e 143)

in jornal "Terra Nova", de Outubro de 2011.

O administrador do PRAIA DE BOTE ainda apanhou os restos destes tempos gloriosos do comércio mindelense. Alguns destes nomes sobreviviam ainda, nos anos 60, mas tinham entrado em cena outros, como o Benvindo, a Loja do Leão e a Casa Serradas (alguns de que ele se lembra). Chegar a "Sagres" ou outro navio de guerra português, por exemplo, era sinal de que era certo e sabido que muitos dos membros das suas guarnições trariam para Lisboa rádios de transistores Sony e Philco, relógios Cauny ou televisões Sony. Sim, televisões Sony, que não serviam para nada na ilha mas que ali eram vendidas a gente dos barcos que as trariam para terras onde o sinal de TV funcionava, por preços incrivelmente mais baratos que na capital do império...

Aqui fica então, com a devida vénia ao autor, o assaz interessante texto de António Nobre Leite (residente em Brockton, Massachusetts), elucidativo e fixador de memórias de um tempo definitivamente perdido.

Clique na imagem)

[0144] O bispo do Mindelo, D. Ildo Fortes, escreve a sua primeira Carta Pastoral (ver posts 143 e 145)

in jornal "Terra Nova", de Outubro de 2011.

(clique na imagem)

(clique na imagem)

[0143] O blogue PRAIA DE BOTE no jornal TERRA NOVA de S. Vicente

Por simpatiquíssima intercessão do nosso colaborador Adriano Miranda Lima, o jornal TERRA NOVA, "órgão cristão de formação e informação de Cabo Verde", propriedade dos Irmãos Capuchinhos e superiormente dirigido pelo nosso amigo Frei António Fidalgo Barros, publicou uma nota propagandística de quase página inteira sobre o PRAIA DE BOTE. Trata-se de algo que o PB agradece penhorado (ao Adriano e ao "Terra Nova"), tanto mais que recebe sempre o agradável jornalinho, onde de onde em onde já tem colaborado e no qual continuará a participar com muito gosto, sempre que possível. 

Tem o número de Outubro do TN vários motivos de interesse, de que hoje aqui reproduzimos dois: a primeira carta pastoral de D. Ildo Fortes, novo bispo do Mindelo e saboroso texto de António Nobre Leite, de Brockton (Massachusetts), à medida dos interesses do PB, isto é, com coisas do Porto Grande, do mar, de navios, de shipchandlers e etc. e tal. Belo texto, com efeito, que regista um passado cheio de aventura e emoção da nossa ilha, S. Vicente. Ver nos posts 144 e 145.

(clique na imagem)

sábado, 5 de novembro de 2011

[0142] Palavras para quê? É um blogue da Praia de Bote, 15.000 vezes clicado

[0141] Carris, comboios, vagonetas e por aí fora, pouca-terra, pouca-terra...

A notícia é de Janeiro de 1956, mas refere-se a tempos muito anteriores, 121 anos atrás. Coisa de Sal e de salinas, obviamente. Mas a nossa ilha também teve linhas ferroviárias, ali bem perto da Praia de Bote. Não só a que o PRIA DE BOTE divulga em duas imagens, instalada no Cais da Alfândega, mas outras de que há felizmente boas fotos (no arquivo Djô Martins, por exemplo), propriedade das companhias carvoeiras também nossas vizinhas.


(clique nas imagens)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

[0140] - Um café cabo-verdiano nos EUA, onde era possível ouvir mornas e se bebia bem, em Setembro de 1944

(clique na imagem)
1944. Mornas, cantadas e acompanhadas por bons instrumentistas e ainda por cima tudo adoçado com "bebidas de primeira qualidade", era no "Gold Key Cafe" de Leo (Leão) Lopes, em Pawtucket, Rhode Island, EUA. A "lei seca" acabara onze anos antes. Não fora a guerra em que o país estava envolvido e seria o paraíso quase total. A coisa que este anúncio celebrava era o "Labor Day", comemorado nos States na primeira segunda-feira de Setembro. Não confundir com o "1st of May" ou "May Day". Em dia de feriado, ouvir umas mornas e beber uns whiskies, nada mau, heim? Enfim, de facto, como diz o texto, que melhor maneira de matar saudades de Cabo Verde poderia haver?

domingo, 30 de outubro de 2011

[0139] Ainda o "Senhor das Areias". Mais um texto sobre este veleiro, da autoria de Zito Azevedo, nosso novo colaborador. Ver post 0138, de Adriano Miranda Lima

A   PEREGRINAÇÃO

Zito Azevedo
Chegado a S. Vicente em 1943 – tinha eu nove anos – a minha primeira tentação, depois de saber que me encontrava numa de dez ilhas que formavam um arquipélago de Cabo Verde, foi conhecê-las a todas… Conheci algumas nos anos 50 mas tive que esperar até 1969 para visitar as mesmas e as que faltavam. Por estranho que possa parecer, no entanto, nunca fui a Sta.Luzia!

Creio que, naquele ano as minhas notas não devem ter agradado a meu pai que, logo em Junho, me foi avisando que me tinha arranjado um emprego para as férias, no escritório do Sr. Mário Nascimento que, imagine-se, era o agente do “Senhor das Areias”… Não fiquei muito aborrecido, até porque o Senhor Mário tinha uma filha bem gira que, por acaso, nunca me ligou nenhuma. E lá fui, sentar-me a uma mesa minúscula, a passar bilhetes de passagem e documentos der carga para aquele que era o “paquete” dos navios que circulavam pelas ilhas no transporte de pessoas e bens, a todos levando a palma com a excepção da velocidade que raramente ultrapassada as três milhas horárias. Mas era um navio quase imponente,  ex-lugre bacalhoeiro, de três mastros e bojo alto, sempre imaculadamente limpo e escovado e com uma tripulação que até incluía um telegrafista residente, o Sr. José Pedro Afonso, que era meu amigo e haveria, anos mais tarde, de ser meu padrinho de casamento.

"Senhor das Areias"
Acontece que devo ter desempenhado muito bem as minhas funções, apesar da tenra idade, pois quando me despedi para regressar às aulas no Liceu Gil Eanes, foi-me oferecida uma viagem no “Senhor das Areias” à minha escolha. Como, na altura, lá namorava a que haveria de vir a ser minha mulher, resolvi ir até à Brava, sua terra natal, onde ela ainda estava de férias. Faltava mais de um mês para as aulas. Só que… enfim,  naquela viagem à Brava, o “Senhor das Areias” iria escalar S. Nicolau e Sal, o que alongava a viagem de forma perigosa. Mas como quem ama não pensa, embarquei nessa peregrinação, numa noite escaldante em que a expectativa me não deixou pregar olho apesar do colchão ser óptimo e o lençol cheirar a lavado… O toque da sineta para o pequeno-almoço apanhou-me debruçado na amurada, tentando apanhar peixes-voadores. Fiquei pasmado ao sentar-me à mesa do capitão, ao lado do meu amigo telegrafista e restantes oficiais de bordo, para um repasto de cachupa refogada com salsichas e ovos estrelados, leite com café, bolachas, manteiga, enfim, um autêntico banquete, isto se se tiver em linha de conta que, até aquele momento, o melhor que eu tinha comido a bordo de um palhabote, fora uma cachupa de olho-largo, em pé, encostado à casa-das-máquinas com toda a força para não ser atirado  borda fora…

A Ribeira Brava era uma vilazinha simpática, silenciosa, pintada de fresco, onde tive a felicidade de ir encontrar a Mary Melo, uma das mais belas pequenas de S.Vicente, que aí estava de férias e a quem tirei uma foto que ainda hoje conservo. Chegados à Pedra-de-Lume preferi aceitar uma boleia para Sta. Maria, tendo passado a noite no Hotel Atlântico que os italianos ali tinham construído e que tinha sempre uma tripulação da Alitália para rendição nos voos para e da África do Sul. Foi muito educativo, vê-los cozinhar a sua própria “pasta” e o molho de tomate em placas eléctricas sobre a mesa que ocupavam e, mais tarde, noite dentro, testemunhar as entradas e saídas, de uns quartos para os outros, das aeromoças italianas, em bicos de pés descalços, envoltas em lençóis brancos esvoaçando ao compasso da brisa nocturna, fantasmas brancos que sugeriam mais promessas do que temores. Um espectáculo…

Mal dormido, com a mente repleta de muitas perguntas e poucas respostas, lá reembarquei no “Senhor das Areias”, onde, recorde-se, se continuava a comer muito bem e a dormir melhor, para uma longuíssima estirada entre o Sal e a Brava. Tão longa e tão lenta que muitas vezes pensei se, para lá daquela onda não iríamos vislumbrar o Brasil…

A chegada à Furna foi, por isso, uma espécie de regresso ao futuro e um bálsamo para o meu equilíbrio emocional, num reencontro com o mundo, com as pessoas, com o ruído das coisas… A bordo de um navio relativamente estável mas extremamente lento e silencioso em que a única coisa que se ouve é o marulhar da ondulação baixa, vendo horas sobre horas, as mesmas caras, os mesmos gestos, a mesma rotina, uma pessoa acaba por se sentir só no mundo e nem olhar à volta resolve porque de norte para sul e de oeste para leste a miragem é a mesma: NADA!

(clique na imagem)

Quando, nessa tarde, cheguei à oficina de Nhô Manelinho, sapateiro, fui acolhido com um largo sorriso e um gesto cúmplice:  foi abrir as portadas da janela que dava para a casa da minha amada e através da qual, depois de revê-la, voltei a subir aos céus pouco tempo depois de ter descido à terra!

Não voltei a viajar no “Senhor das Areias” mas, à fé de quem sou vos digo que, de bom grado, repetiria a minha peregrinação dos anos 50 do século passado…

ZITO AZEVEDO
Queluz, 29.10.2011

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

[0138] O "Senhor das Areias", um senhor entre os barcos do Porto Grande. Texto memorialístico do nosso colaborador Adriano Miranda Lima


O PRAIA DE BOTE conheceu muito bem o "Senhor das Areias"... por fora, fundeado na baía do Porto Grande - que não por dentro, ao contrário deste miúdo felizardo (e dorminhoco), o pequeno Adriano. Era de facto um navio pesado e lento, mas belo na sua imponência poderosa, um dos mais característicos que fizeram a cabotagem das ilhas e em carreiras mais longas como a Guiné e o Senegal. Como se pode ler no blogue "Navios e Navegadores", o "Senhor das Areias" chamou-se antes "Villalonga". Com 120 toneladas, fora construído em 1920 nos estaleiros de Noya-Obrés na Galiza. Vendido a João Alves Cerqueira, passou depois para as mãos de José Amador que o matriculou na praça de Luanda. Só tomou o seu derradeiro nome em Cabo Verde, onde acabou por ser abatido em 1968.

"Senhor das Areias", atracado ao cais de Bissau. Foto Crocodilo, reproduzida com a devida vénia  (clique na imagem)

“SENHOR DAS AREIAS”  E A MEMÓRIA DA MINHA PRIMEIRA VIAGEM MARÍTIMA

Adriano Miranda Lima
Em Maio de 1950, aos meus 6 anos de idade, a minha avó materna, nascida em S. Antão, convenceu os meus pais a levar-me consigo para uma temporada que ela desejava passar na ilha natal, para matar as saudades dos tempos de menina e moça nela vividos. Essas férias iriam durar até Setembro seguinte, altura estabelecida para o meu regresso, já que eu tinha compromissos com a preparação pré-escolar.

Essa viagem, a primeira da minha vida, ficou-me imperecível na memória e seria o início de uma cumplicidade telúrica com uma ilha que volta e meia me solta asas para devaneios poéticos. Lembro-me como se fosse hoje, decorridas já 6 décadas, de ínfimos pormenores relacionados com essa viagem e da excitação que ela injectou no meu coração infantil.

Saímos de casa por volta das vinte e uma horas, em direcção ao cais de embarque (antigo Cais Novo), acompanhados dos meus pais. Entrámos num bote dos muitos que freneticamente disputavam passageiros no cais, e lá nos dirigimos de remada em remada, sacolejando as águas nocturnas da baía, em direcção ao lugre “Senhor das Areias”, o navio da nossa viagem. O mar estava calmíssimo, como azeite em repouso. À medida que a distância se consumia, sob o impulso do músculo dos remadores, o “Senhor das Areias” ia ficando cada vez mais nítido de pormenores, até que o bote se lhe acostou e o seu imenso casco em plano destacado derrogou todas as minhas referências visuais precedentes. Içado para o interior do navio, fiquei espantado com a grandeza do seu deck e a altura da mastreação e confusão do cordame, mais ainda quando entrei para o subterrâneo dos camarotes. Eu não tinha nem podia ter noção dessa realidade orgânica intrínseca aos navios quando os via ancorados na baía ou a navegar ao largo, porque as noções de escala e perspectiva espacial não eram ainda do meu domínio.

Descemos a escada que conduzia aos camarotes e nunca me esqueci do reparo de um tripulante: «- Não ponham a mão no corrimão que ele está envernizado de fresco.» Ocupámos os nossos beliches, e, como já seria hora para isso, foi entrar na cama e cair logo nos braços de Morfeu, embora a minha avó talvez se não tenha dispensado das suas habituais rezas antes de dormir, dessa vez com justa razão para pedir protecção “aos que andam em cima da água do mar”. E assim foi que nem dei pela largada do navio, apenas ouvindo, sempre que a espaços acordava, sons de música oriundos de um aparelho de rádio algures situado. Decerto que àquela hora não seria emissão das rádios cabo-verdianas. A minha avó se queixaria mais tarde do aparelho de rádio que a não deixou dormir.

O “Senhor das Areias” era um navio penosamente lento, por razões que mais adiante explicarei com base em informação recentemente recebida. Por esse seu andamento de caracol é que só na manhã seguinte fundeámos frente a Paul, altura em que fomos acordados para ir apanhar um ar puro em cima. Mas admito que tenhamos escalado antes disso o porto de Janela, a avaliar pela duração da viagem.

Ao chegarmos ao piso superior do navio, pude ver as casinhas de Paul recortando-se ao longe, no sopé de uma imponente montanha, coqueiros bordejando a ourela do mar, onde as ondas se espraiavam em espuma branca. Botes recebiam carga transportada no navio, subindo e descendo ao longo do costado, depois remando agilmente de regresso ao cais da localidade. Tivemos de recolher de novo ao camarote, antes da retoma da viagem com destino a Ponta do Sol, e é bem possível que eu tenha voltado a adormecer porque não guardo qualquer memória do que aconteceu a seguir até aportarmos àquela vila.

Penso que seriam mais ou menos doze horas quando, de novo no deck, avistei o casario esbranquiçado de Ponta de Sol. Do que se seguiu até chegarmos à vila de Ribeira Grande, nosso destino, poucos pormenores guardo a não ser a estrada sinuosa e alcandorada ao longo da encosta da montanha, por onde seguimos, com as ondas lá em baixo a desfazerem-se em ruído abafado. Não me lembro se ingerimos algum alimento, desde o embarque em S. Vicente, sendo que o navio não fornecia refeições aos passageiros naquelas curtas viagens, tanto quanto hoje penso. E se a minha avó levou alguma merenda também não me recordo, mas pode ter acontecido.

O meu deslumbramento infantil com a ilha de Santo Antão é matéria para outra crónica, para não alongar demasiado este texto. Os meses que lá passei tinham de me deixar marcas indeléveis na memória, porque não é em vão que um menino vê alteradas as suas rotinas, mormente quando tudo corre de feição, na paz e no sossego da relação familiar entre um neto e uma avó.

Chegou o dia em que tive de regressar a S. Vicente. A minha avó ia permanecer mais algum tempo, pelo que fui entregue aos cuidados de um seu afilhado que também viajava para S. Vicente. De novo, o “Senhor das Areias” era o senhor do meu regresso à casa paterna. Partimos para Ponta de Sol e à chegada lá deparei com o navio fundeado no porto da vila, altaneiro como sempre, fazendo jus à sua imponência. A avó acompanhou-nos, com uma “carregadeira” atrás transportando à cabeça um enorme cesto de cana entretecida e com a boca tapada com um pano de serapilheira cosido no bordo periférico. No cesto iam aquelas coisinhas que se produzem nas “meradas” (*) das ribeiras da Ilha das Montanhas, muito apreciadas na ilha irmã, e, por isso mesmo, a avó recomendou-me para dizer ao meu pai, quando me fosse buscar a bordo, que ia uma encomenda. Desconheço por que não encarregara directamente o afilhado dessa incumbência, mas o certo é eu ter recebido o encargo do recado.

Ao despedir-me da avó, antes de ser transferido para o bote, desfiz-me em pranto convulsivo, ela própria contagiando-se visivelmente com a emoção do neto. Sentia uma especial ligação espiritual a essa avó, que ainda hoje perdura intacta naquele limbo misterioso em que radica a essência do ser e suas múltiplas fulgurações. De facto, não era coisa pouca para um coração de menino iludir a nostalgia da despedida, que no caso era suscitada simultaneamente pela avó e pela ilha. Ao longo da minha vida, as duas imagens se têm confundido, ambas exalando fecunda maternidade, numa visão existencial em que vejo a alma humana como o reverso ontológico da terra em que labuta e lavra o seu destino. 

Mal entrámos no navio, o afilhado levou-me a um bote salva-vidas colocado no deck do “Senhor das Areias” e disse-me para me deitar no seu fundo raso e não sair de lá durante a viagem. Está mais que claro que nessa feita não houve o aconchego de camarote. O navio partiu por volta das treze horas e haveria de largar ferro no Porto Grande de S. Vicente cerca das vinte e uma seguintes, tanto quanto me lembro. Como mergulhei logo no sono, desconheço se houve paragem pelo caminho, nos portos de Paul e Janela, mas admito que não, a avaliar pela duração do trajecto e se a comparamos com a da viagem anterior feita em sentido inverso. É irrecusável registar que essas minhas duas viagens a bordo do “Senhor das Areias” decorreram sob a égide de boas sonecas.

Só acordei no fundo do salva-vidas com a presença do meu pai que, ainda me lembro, pareceu indignado por eu ter viajado em tais condições, interpelando o tal afilhado da minha avó, que lhe retorquiu ser esse o lugar mais seguro. Mas tive o cuidado de logo o advertir que ia uma encomenda a bordo, pressuroso como estava em cumprir a recomendação da avó, ao que ele se riu com gosto. E lá fomos a pé até casa, com a sacramental “carregadeira” atrás levando a encomenda à cabeça. Chegados a casa, e acolhido emotivamente nos braços da minha mãe, voltei a cair no pranto de saudade quando ela me perguntou se a avó tinha ficado bem. Como, muito emocionado, não me dominava, ela, para me distrair, levou-me ao nosso quintal ao fundo qual havia uma recente aquisição: uns patos, novos inquilinos de suposto galinheiro. Outra lembrança do meu regresso é o riso gozado dos meus pais quando viram o fato que a minha avó mandara confeccionar numa costureira local para a minha viagem de regresso. Eram umas calças e casaco de cor creme, mas creio que de um corte muito desactualizado, talvez de modelo dos anos 20 ou 30, e de tão desadequado que nunca mais mo vestiram.

E assim se encerra esta memória da minha primeira viagem marítima. Nunca mais voltaria a viajar no “Senhor das Areias”.

Resta concluir esta crónica de viagem, inserindo a seguinte informação que me foi prestada pelo meu amigo Vladimir Koenig, professor universitário aposentado no Brasil, e que teve a gentileza de me enviar também, a meu pedido, uma fotografia do “Senhor das Areias”:

“O Areias era lento e aproveitava muito pouco a força do vento porque na última viagem que fez regressando da Terra Nova (era lugre bacalhoeiro) para Portugal, o casco foi posteriormente modificado aumentando o calado (altura da linha de água para o convés) para poder transportar passageiros entre as ilhas e transformar as câmaras frigoríficas em porões para transporte de carga. O motor era um enorme e ultrapassado motor auxiliar que servia apenas para manter o rumo em caso de o vento provocar algum desvio e evitar que o navio bolinasse. Por isso é que o máximo da velocidade do Areias era de 3 milhas / hora.”

(*) Merada – Nome que se dava a horta ou terra cultivada, em Santo Antão. Não sei se ainda se usa.

Tomar, 27 de Outubro de 2011
"Senhor das Areias"

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

[0137] Janeiro de 1943: o "São Miguel", com comida para Cabo Verde

O PRAIA DE BOTE está com alguma falta de tempo (trabalho, trabalho e sobretudo... trabalho). Por isso, nos últimos dias, não tem sido actualizado. Mas agora mesmo surgiu-lhe este petisco, relacionado com a grande fome do início da década de 40. Aqui fica então a imagem e o texto.


(clique na imagem)


sábado, 22 de outubro de 2011

[0136] «Bô ta sabe nesse roça!», lembram-se da frase?

A verdade é que, como sabemos, estar «sabe» em S. Tomé era mais para os donos das roças que para os infelizes trabalhadores cabo-verdianos. Alguns destes conseguiam de facto um pequeno pecúlio que lhes permitia regressar às suas ilhas e recomeçar a vida com mais esperança - o que era demasiado raro. Estar em S. Tomé, também significava de algum modo fugir à fome que ciclicamente grassava em Cabo Verde. Mas, comummente, os resultados finais eram estes que o jornal «O Futuro de Cabo Verde» assinalava em 4 de Fevereiro de 1915. Esta é que era a triste realidade da emigração para as roças do café e cacau.

O PRAIA DE BOTE é militante das coisas da Praia de Bote, do Mindelo e de S. Vicente. Porém, Santo Antão é a ilha irmã e por isso ela também aqui pode ter um lugar de carinho. E se iam muitos santantonenses para as roças, a nossa ilha também para lá enviou muitos dos seus filhos.

(clique na imagem)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

[0135] Dezembro de 1939. Quem diria? Cabo Verde território colonizador da Guiné... assim se matando dois coelhos de uma cajadada!

O governador de Cabo Verde era Amadeu Gomes de Figueiredo, o mesmo que em 1933 mudou o nome de Porto Carvoeiros em Santo Antão para Porto Novo e que em 1940 mandou colocar uma lápide no túmulo de Eugénio Tavares, inserindo-o em discurso no panteão dos heróis da língua portuguesa. Foi também durante a vigência do seu governo, em 7 de Junho de 1934, que se deu a famosa revolta de Nhô Ambrose contra a fome que grassava no arquipélago, nomeadamente em S. Vicente.

O governador da Guiné, nesta altura, era Luís António de Carvalho Viegas, oficial do Exército, como o anterior.

(clique na imagem)

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

[0134] Patacho "Ildut". Ver poema de Adriano Miranda Lima no post 0132

Eis uma preciosidade que o PRAIA DE BOTE muito se orgulha de divulgar, por obra e graça do seu colaborador Adriano Miranda Lima que ao blogue a ofereceu: o patacho "Ildut", de velame desfraldado, cortando os mares, toda garbosa.

Grandes tempos, de coisas boas e más, como sempre. A pior de todas, o quase inevitável naufrágio. Nos últimos meses, temos conhecido, na nossa investigação diária, inúmeras escunas e barcas da carreira de Cabo Verde (EUA-CV). A maior parte naufragou, algures no vasto Atlântico, perto nas ilhas ou no regresso aos States, já perto de terra, com perda de vidas e carga. Muitos capitães se celebrizaram pelo seu heroísmo, sabedoria ou desgraça e pela tentativa quase sempre gorada de introduzir emigrantes ilegais na terra do Tia Sam. Multas e prisão eram vulgares entre eles e os seus passageiros.

Pouco sabemos do "Ildut". Os dados disponíveis são escassíssimos. Pensamos até que ela terá sido aplicada na cabotagem apenas em Cabo Verde ou eventualmente em solitária viagem a Dacar. Contudo, esta rara fotografia agora cedida por AML dá aos leitores do PB pelo menos a sua corporização, facto que muito agradecemos ao ofertante.

"Ildut" (clique na imagem)

domingo, 16 de outubro de 2011

[0132] Um poema de Adriano Miranda Lima

(clique na imagem)
Em memória do navio cabo-verdiano "Ildut", do seu capitão João Pedro Martins e de todos os antigos marinheiros das águas das ilhas, o PRAIA DE BOTE republica um conhecido poema do nosso colaborador Adriano Miranda Lima. Vale a pena a coisa, não só pela elegância e engenho do verbo limiano como pelo gosto do blogue pelas coisas do mar e dos navios.

Indica AML que a composição não é a  reprodução fiel de qualquer acontecimento da realidade. Contudo, no seu fundo temático, e com o adorno ficcionista apropriado à circunstância, faz o poeta o aproveitamento do episódio real do naufrágio do "Ildut" e da atitude dramática do seu valoroso capitão.

Não tendo conhecimento de qualquer foto do "Ildut", o PRAIA DE BOTE conseguiu apenas saber, embora sem confirmação, que o veleiro pesava 105 toneladas e que naufragou em 17 de Março de 1970.


NA ROTA DO DESTINO
                     
                     
 - Santa Luzia, vós que estais hoje oculta na bruma,
 vós que no céu sabeis que nunca é vã coisa alguma,
 rogai por este navio da nossa inteira e fiel devoção,
 assim como vos dedicamos o amor que vai no seu porão!
 Prece de capitão é assim mesmo com força de mar bravo,
 proferida com a fé de marinheiro que vive sem agravo,
 em convés perfumado de breu, cordame e maresia,
 varrido às vezes por ondas que não têm  cortesia.
 Velas enfunadas vão agora na soltura do vento em desatino,
 estai e bujarrona, irmãs desfraldadas no mesmo destino,
 em mar que balança desaforado em ritmo extremo,
 com  espuma oscilante a marcar o compasso supremo.
 S. Nicolau é  destino para lá dum mar que não está chão,
 mas capitão não precisa de instrumentos de navegação,
 ele menino-moço-homem-feito nestas rotas de cabotagem:
-Ah, tanta saudade dos tempos caloiros de aprendizagem,
 tempos  de sonhar com horizontes longes e dilatados,
 de tanto sangue na guelra e tantos namoros salteados,
 tempos de viagens constantes àquelas águas do Paul,
 de noites perdidas a ver a lua cheia a  pratear o mar azul
 e a iluminar o perfil de garça do  nostálgico navio;
 Oh, longe vai  a vida solta de moço de coração vadio!...
 - Toninhas, para onde ides hoje apressadas, criaturas,
vós que pareceis sempre incansáveis de aventuras?
Capitão é despertado com esta ralação de marinheiro
quando os animais passam velozes desafiando o veleiro.
Mais logo nuvens negras se acastelam em jeito traiçoeiro
e vagas se agigantam ameaçadoras além a bombordo.
- Capitão, ouvi um presságio antes de entrar a bordo!
Exclama alguém entre o gemido sofrido das enxárcias
presas com a mestria precavida para  as circunstâncias.
- Qual história, qual carapuça, marinheiro de água doce,
onde já se viu ânimo de gente de mar que assim desfalece?!
Estamos abençoados por S. Vicente, Santa Luzia e S. Nicolau,
e desconfiar de  santo é coisa de grogue a pedir sova de pau!
Nunca se saberá se houve mau agoiro ou simples premonição
ou se apenas a má cara do tempo inspirou simples intuição;
a verdade é que uma vaga alterosa baldeia o convés inteiro
de um modo em que o mar nem sempre é useiro e vezeiro,
e o  marinheiro volta a falar no presságio ouvido em terra.
- Fechar escotilha e segurar leme que tempo está de guerra,
brada alto  capitão no meio do rugido do mar e do vento,
mas mar e vento mostram aos santos a feição do seu portento,
e a água já tudo inunda com a força líquida do seu contágio.
- Adé capitão, juro que ouvi mesmo um mau presságio...
Irado,  capitão grita seu impropério aos quatro ventos:
- Ó gente receosa, este navio foi abençoado por três santos!
Contudo o lobo-do-mar olha já de soslaio para os cantos,
como querendo esconjurar uma maligna fatalidade
já vidrada nos olhos cansados e rendidos à verdade.
Ordena ainda mais um bombeamento ao porão do navio,
com a água já a roçar a orla das vidas presas por um fio.
E o veleiro começa a afundar-se no mar do tormento,
Mas ainda à espera de socorro náutico a todo o momento,
quando alguém jura ouvir a voz celestial de Santa Luzia,
como algo que entra fundo no espírito e não é pura fantasia,
voz que  parecia emergir do oceano para tudo  acalmar,
a rogar ao Todo Poderoso pela sorte dos filhos do mar.
Hora de esperança renascida na fé finalmente devolvida?
Mas capitão já vê seu navio com olhos de despedida,
e quer também mergulhar no abismo sua alma sofrida:
- Ó perda irreparável, deixem-me ir no último  amplexo!
Mas vozes amigas lembram-lhe  que ainda há mais nexo
em seu amor à terra chã e nas promessas de vida por viver,
e há um instante em que tudo se reconcilia no fundo do seu ser.
Abstrai-se completamente da procela e do corrupio a bordo,
e chegam-lhe ecos de longe trazidos pelo vento  a estibordo,
qual  canto mavioso de sereia  embalando  seu espírito,
levando-o de regresso a imagens e sentimentos do pretérito,
um mundo de afectos que  procela não pode destroçar,
mais fiel  e mais duradouro  que o navio prestes a soçobrar.
- Adé capitão, gostamos do senhor como nosso pai de verdade...
É confissão de corações próximos numa hora de fatalidade.
 - Abandonar o navio! Ordena vibrante e já recomposto o capitão,
olhos postos além no socorro náutico, presença visível da salvação,
afinal, prova provada  que Santa Luzia foi mesmo ouvida
por Aquele que controla  mar e vento e o poder sobre a vida.
Capitão sabe como são sempre efémeras todas as glórias,
mas sabe que o seu navio navegará sempre nas suas memórias,
sagradas memórias como a fé que alumia a sua paixão,
doces memórias como a bondade que irradia do seu coração.


Adriano Miranda Lima
Tomar, 1 de Abril de 2003

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

[0130] Conservas...

Agora se percebe o motivo que fez um "mnine" muito nosso conhecido ir para Génova, abandonando o Mindelo. A notícia tem a ver com a Praia, mas ele é "mnine de Soncente". De certeza que está metido neste "negoce". Quem é, quem é?

(clique na imagem)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

[0129] Terá a noiva sujado o seu vestido branco no pó do carvão? Ou de como os ingleses também "adquiriam" gente da terra

(clique na imagem)
A coisa foi feita à moda da época. Alguém de importância, por conta do noivo, pediu a mão da noiva, menina da burguesia comercial mindelense, com a poderosa carvoeira inglesa Miller's & Cory como cenário - o que dava acrescida importância ao acto. E bifes, pelo meio, obviamente. Um "bife" querer uma local (ainda que da classe alta), era algo raro. Nunca foram muito dessas avarias os rapazes da britânica ilha, mais de apetites por carne nacional que não poucas vezes importavam para as suas colónias ou para outros lugares onde assentavam arraiais, como aqui. Ao contrário dos portugueses que nunca foram desses preconceitos e bastante se misturaram, originando excelentes produções genéticas...

Aqui fica então esta notícia (de Dezembro de 1932, mas só publicada em Janeiro de 1933), bem demonstrativa de que todas as regras têm excepção. Esperemos que a lua-de-mel em Cardiff tenha sido bem agradável. Pena nem ali o par se ter escapado ao carvão, produto mais abundante na época nessa cidade. Má escolha, má escolha...

domingo, 2 de outubro de 2011

[0127] (vídeo) Porto Grande mexe

[0126] Adriano Duarte Silva: pequena (grande) nota...

(clique na imagem)
Escarneceram a sua memória, derrubaram-lhe o busto de bronze (depois, com inteligência reerguido) e do modo mais canalha (que é o da força bruta e cega), destruíram a casa onda viveu.

Mas não conseguirão apagar a sua memória, a de um bom cabo-verdiano, de coração e alma, que sempre pugnou pelo bem-estar da sua terra. Aqui fica um exemplo, nota de discurso realizado a 14 de Dezembro de 1948.

(clique na imagem)